terça-feira, outubro 26, 2021

Quando o amor vira totalitarismo tecnológico na série 'Made for Love'


O messianismo tecnológico da gigantes tecnológicas sempre foi cheio de boas intenções - dar às pessoas o que supostamente querem: o menor esforço, facilidades e conveniências. Por que pegar um ônibus até o trabalho se posso fazer um home office? Para quê encarar uma discussão de relacionamento se um aplicativo pode garantir um relacionamento amoroso transparente e sem mentiras? Mas também, abolir qualquer sigilo ou privacidade. Como as melhores intenções como amor, felicidade e comunhão podem resultar num pesadelo totalitário? Esse é o tema da sátira ao Vale do Silício “Made for Love” (2021- ), série de humor negro na qual acompanhamos uma jovem em fuga depois de dez anos de um relacionamento tóxico, cujo marido é um híbrido de Jeff Bezos, Elon Musk e a gigante Google. O problema é que ela é a “usuária número 1”, com chip implantado em seu cérebro, de um aplicativo revolucionário do amor, monitorada 24 horas a partir de um campus tecnológico chamado “The Hub”. 

 

Não é fácil fazer uma sátira ou crítica cinematográfica do Vale do Silício. A indústria de tecnologia se movimenta sempre de forma tão rápida que fica difícil aos cineastas fazerem uma narrativa crítica durável, que não acabe se tornando datada. 

Pegue dois exemplos: Matrix (1999) e A Rede Social (2010): o imaginário e a estética cyberpunk do primeiro superados pela natureza mais insidiosa da IA, algoritmos e machine learnings; e o segundo, na época considerado um retrato fulminante do Facebook sobre a sua suposta falha fatal (a incompreensão da verdadeira natureza da amizade), hoje superado pelas notícias de como Mark Zuckenberg facilitou as coisas para QAnon e as minerações de big data da extrema-direita global. 

As vertentes narrativas hipo-utópicas da chamada “Ficção Científica do Sul” (conjunto de produções feitas nas bordas de Hollywood como Distrito 9 ou Settlers) são as mais bem-sucedidas: ao invés de criar futurismo utópicos ou distópicos, propõem a hipo-utopia: projetam todas as mazelas do presente num futuro próximo, numa proposta paródica, hiperbólica e paroxista.

A hipo-utopia propõe fazer declarações definitivas das relações da humanidade com a tecnologia ao encarar o futuro como um simples desdobramento de fatos e tendências já atuais.

Um exemplo é a surpreendente série da HBO Max Made for Love (2021- ). Não é exatamente um “sci-fi do Sul” (foi produzido pela Paramount Television, dentro da indústria hollywoodiana), mas consegue capturar essa perspectiva hipo-utópica. Certamente porque o trio de criação (Dean Bakapoulos, Christina Lee e Alissa Nutting) buscava fazer uma paródia que não se tornasse tão rapidamente datada. Com a vantagem de proporcionar uma sátira com boas risadas. 

Embora Made for Love seja flagrante paródia aos barões da tecnologia como Jeff Bezos, Elon Musk e a Big Tech Google, a série busca explorar o porquê das nossas relações com a tecnologia serem tão fetichistas – máquinas, interfaces, chips e tecnociência como espécies de atalhos que resolveriam num piscar de olhos todas as nossas questões existenciais e filosóficas: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, limitação existencial etc. 

A série acompanha as desventuras de Hazel (Cristin Milioti) que tenta fugir da masculinidade tóxica do seu marido Byron Gogol (Billy Magnussen) que, para azar dela, é um bilionário mago da tecnologia que pilota uma empresa gigantesca que constrói máquinas e gadgets para o mundo para “tornar melhor a vida das pessoas”.



Byron concentra todo o seu tempo e energia tentando expandir o alcance e a capacidade da empresa que deu o seu nome, Gogol (alusão nada sutil). Ele até mora no Gogol Hub, uma espécie de campus de tecnologia que é basicamente uma simulação expansiva em realidade virtual. Quase um Metaverso. Quer ir a Paris? Estale os dedos e o mundo ao seu redor fará com que pareça que você está sentado perto da Torre Eiffel. 

Por isso, para Byron, não há motivo para sair dali, já que o mundo lá fora é tão triste, doloroso e imprevisível. Razão pela qual há dez anos Hazel não tem permissão para isso, desde primeiro encontro com o possessivo Byron.

Ao longo dos seus curtos oito episódios (com uma média de meia hora), Made for Love consegue fazer uma síntese enxuta daquilo que este Cinegnose chama de “religião das máquinas do Vale do Silício”, o Tecnognosticismo – como esse atalho tecnológico para a gnose, embora imbuída das melhores intenções (transparência, felicidade, amor, transcendência etc.), pode se transformar num pesadelo totalitário com traços bem sombrios.




E como essa tecno-religião (que não busca mais a imortalidade da alma, mas a imortalidade aqui e agora transcendo as limitações físicas e existenciais da corporalidade) cria uma ramificação de distorções que ameaçam as próprias relações humanas que pretendia favorecer: o fetichismo, a amoralidade, relações abusivas etc.

A Série

Depois de escapar, Hazel descobre, para seu horror, que seu marido implantou um chip de vigilância dentro de seu cérebro sem seu consentimento, permitindo que ele monitore seus sinais vitais e veja e ouça o que ela está vendo e ouvindo a qualquer momento. 

O chip faz parte do lançamento de um futuro produto que promete criar uma “rede de duas pessoas que se amam”: ferramenta que permitirá que os casais se comuniquem com mais honestidade, não deixando espaço para mentiras e incompreensões. Porém, ao custo de acabar com qualquer privacidade ou sigilo pessoal. Com um misto de ingenuidade feliz e o desejo secreto por poder, Byron não vê problemas nessa honestidade radical – o programa faz detalhada biometria do companheiro, chegando a avaliar seus orgasmos com uma detalhada interface de dados.

Como tantos barões da tecnologia antes dele, ele logo percebe que sua tentativa de criar a comunicação perfeita entre amantes o levou a inventar uma ferramenta ideal para perseguir e dominar: e ele começa a observar obsessivamente como Hazel tenta reconstruir sua vida. Enquanto planeja uma maneira de trazê-la de volta, já que em sua cabeça estão milhões de dólares investidos.




Essa é uma premissa que poderia facilmente resultar num filme de terror. Mas Made for Loveo interpreta como uma comédia de humor negro – para propositalmente enojar seu marido voyeurista, Hazel consegue emprego para limpeza de banheiros em uma pista de boliche - para dissuadir o asséptico Byron de vigiá-la, Hazel aproxima seus olhos de mictórios, vasos sanitários e sujeira, muita sujeira.

Esse é justamente o primeiro tema que a série suscita: a aversão à matéria, ao corpo e à realidade fora do The Hub é o drive místico que alavanca a engenharia computacional do Vale do Silício: o dualismo gnóstico radical entre corpo e espírito. Para Byron, a realidade é caótica, imperfeita, porque tem “muitas variáveis”. 

Tudo no mundo físico é caótico e desorganizado. Assim como nas relações amorosas: o corpo é o que atrapalha - não é por menos que Byron não quer ter orgasmos – o que chama de “celibato criativo” – para não prejudicar sua concentração no sucesso da empresa Gogol). Por isso todas as “variáveis” têm que ser biometrizadas para serem controladas. E Hazel é apenas uma delas.

A aversão à fragilidade da carne, à mortalidade, à velhice tem uma relação direta com a sua relação fetichista com a tecnologia: a realidade é triste e dolorosa. É o que Hazel descobre depois de fugir e voltar à sua vida sem sentido numa típica cidadezinha de interior dos EUA, pobre, provinciana e sem perspectivas.

Herbert (Ray Romano), seu pai viúvo, é ausente. Depois que sua esposa morreu vendeu seu jazigo no cemitério para comprar uma boneca erótica e ter com ela uma vida conjugal – leva a boneca para todos os lugares, como fosse uma companheira real.




Made for Love faz esse interessante paralelo entre o fetichismo erótico de Herbert e o fetichismo tecnológico de Byron. De certa forma, Hazel era como uma boneca erótica para Bayron. Mas há algo mais aqui: o trio criativo da série parece querer sugerir uma natureza comum entre os dois tipos de fetiches.

O cientista computacional e criador do conceito de realidade virtual, Jaron Lanier, acredita que há a antiga busca gnóstica em transcender a carne é o emocional subtexto por trás da eufórica reação a cada novidade em informática no mercado e a cada website ou blog com frivolidades que é lançado. Lernier chega a sugerir um conceito que definiria essa relação com a tecnologia: a “nerdice” - intelectualmente busca-se digitalizar qualquer distinção de qualidade, sentimento e afeto. Emocionalmente, procura abrigo que o proteja da intimidade humana e das demandas corporais. Alegremente, o sujeito se despoja do corpo para viver uma fantasia de poder sem limites.

Tanto Herbert quanto Byron, cada uma ao seu grau, são sociopatas – são absolutamente incapazes de travar relações sociais reais e optam pela mediação dos gadgets fetiches para escapar da realidade.

Igualmente interessante é a certa altura na série a entrada em cena de uma freira (Kym Whitley), que se oferece para ajudar Hazel a escapar de Byron. Ela é conhecida na Igreja como “caçadora de torres” – uma impiedosa perseguidora de corruptos e pedófilos na organização católica.




Decide enfrentar o “corrupto” Byron. Afinal, ele cometeu a maior heresia que um mortal poderia cometer: através da Ciência, querer se equiparar a Deus tornando-se tão onisciente quanto Ele. Ao invés de vigiar a Criação do Céu, Byron o faz do campus tecnológico The Hub.

O único problema de Made for Love é que a média de meia hora dos oito episódios parece não dar conta para desenvolver tantos altos conceitos que são apresentados nos cinco primeiros episódios – a segunda metade da temporada deixa muitas lacunas narrativas, sem aprofundar os temas que provoca.

Porém, a atriz Cristin Milioti compensa todas as lacunas e superficialidades: parece que a atriz se tornou uma especialista em produções ambiciosas em altos conceitos: suas brilhantes aparições na série Black Mirror, no episódio “USS Callister”, e no subestimado filme Palm Springs (2020, clique aqui), no qual é prisioneira em um loop temporal.

A grande virtude de Made for Love é o seu futurismo hipo-utópico: extrapola num futuro próximo a agenda atual das gigantes tecnológicas. Mas, principalmente, a motivação místico-fetichista que anima a tecnociência do Vale do Silício: o simbolismo teológico da cruz substituído pelos gadgets tecnológicos.


 

Ficha Técnica 

Título: Made for Love

Criadores: Dean Bakopoulos, Christina Lee, Alissa Nutting

Roteiro: Stephanie Laing

Elenco: Cristin Milioti, Billy Magnussen, Ray Romano, Noma Dumezweni, Caleb Foote

Produção: Paramount Television

Distribuição:  HBO Max

Ano: 2021

País: EUA

 

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