Com três anos de atraso, chega a sexta temporada da série “Black Mirror” (2011-). Que enfrenta uma dúvida existencial: se o mundo real e a série atingiram um ponto tão elevado de convergência, o que resta à série dizer sobre o nosso futuro? Parece que todos os dias vemos uma nova profecia de “Black Mirror” sendo realizada. Por isso, nessa sexta temporada há uma estranha atmosfera na maioria dos episódios: ao invés de imaginar futuros hipo-utópicos (futuros que projetam de forma exagerada mazelas já existentes no presente), vemos narrativas em uma espécie de futuro do passado ou histórias fora dos temas clássicos da série. O criador Charlie Brooker estaria encontrado seu limite: a estranheza do mundo parece superar a imaginação ficcional.
Em 2020, Charlie Brooker, o criador da série Black Mirror, admitia que a sexta temporada não seria lançada tão cedo: "No momento, eu não sei se tenho estômago para lidar com histórias sobre sociedades desmoronando, então não estou trabalhando com nenhuma delas", dizia ele em meio à pandemia global do coronavírus.
Brooker observava que naquele momento muitos fãs estavam se sentindo como se estivessem vivendo num dos mundos imaginados por Black Mirror – programas de TV nos ensinando formas de evitar a contaminação, policiais patrulhando as ruas e conduzindo as pessoas para dentro de suas casas, a proibição das pessoas tocarem umas as outras etc. – clique aqui.
As cinco temporadas da série parecem que tiveram um tom premonitório, porque a realização dos cenários de pesadelos tecnológicos não terminou com o fim da pandemia. Desdobraram-se ainda mais: a tentativa de derrubar o sistema político norte-americano pelas mãos de uma multidão enlouquecida pelas conspirações na Internet e a evolução disruptiva da inteligência artificial – entre outras coisas, ironicamente responsável pela greve em andamento de roteiristas e escritores de Hollywood diante da perspectiva de serem substituídos por um ChatGPT.
E os próprios cientistas e engenheiros desenvolvedores de IA temendo o extermínio da humanidade e clamando pela paralização da corrida tecnológica.
Parece que todos os dias vemos uma nova profecia de Black Mirror sendo realizada. Em abril, o Departamento de Polícia de Nova York anunciou o retorno de "controversos cães robôs Black Mirror'" (clique aqui, veja: "Metalhead", quarta temporada). As startups de tecnologia estão ressuscitando os mortos com os chatbots da A.I. (clique aqui, veja: “Be Right Back”, Segunda Temporada).
Apenas há algumas semanas, a Apple lançou o fone de ouvido de realidade mista “Vision Pro” que possui a capacidade de “reviver momentos estimados” em 3D (clique aqui, veja: “História Inteira de Você”, Primeira Temporada). Ao ver o novo dispositivo da Apple, Charlie Brooker pensou a mesma coisa que o resto de nós: "Oh meu Deus, isso é tão Black Mirror!".
É nessa atmosfera de perplexidade quase diária que é lançada a tão aguardada sexta temporada. Ao assistir aos seis episódios que compõem a temporada, é inevitável ficarmos o tempo todo com uma pergunta em mente: se o mundo real e a série Black Mirror atingiram um ponto tão elevado de convergência, o que resta à série dizer sobre o nosso fuuro?
Convém relembrar que a série não era um programa distópico comum. Ela se enquadra num novo tipo de futurologia: a hipo-utopia, tendência nas duas últimas décadas no cinema e audiovisual, principalmente desde Distrito 9 (2009).
Na hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) ou negativos (distópicos). “Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topos”, “lugar”. Os futuros refletem mais as mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros próximos. Na verdade, o futuro não existe: ele é apenas uma tela paródica ou cínica do presente.
Não é por menos que metade dos cinco episódios são ambientados nas décadas de 1990, 1970 e 1960. O ímpeto hipo-utópico de Black Mirror parece ter se esgotado, paradoxalmente pelas virtudes dos criadores e roteiristas. Pela proposta inovadora de uma série lançada há mais de dez anos.
Excetuando-se os dois primeiros episódios, que permanecem ainda dentro do paradigma hipo-utópico clássico (parecem ter sido concebidos ainda antes da pandemia), o restante parece se ressentir do esgotamento da proposta inicial de Black Mirror – afinal, o mundo parece ter alcançado a imaginação da ficção.
A sexta temporada – sem spoilers
“Joan is Awful” é o episódio mais clássico na nova temporada, que retrata um mundo em que a produção de TV acelerou até o ponto em que uma série pode ser - com a ajuda da IA - escrita, filmada, editada e lançada em um serviço de streaming no espaço de um único dia.
O elemento hipo-utópico é os perigos de nunca lermos os “termos e condições” ao assinarmos, no caso, uma plataforma de streaming chamada “Streamberry” – com o mesmo design da Netflix.
De repente a protagonista (Annie Murphy) vê horrorizada a sua própria vida transformada em série na plataforma, com o material dos acontecimentos do mesmo dia – tudo impulsionado por um computador quântico na sede da plataforma, capaz de transformar a vida dos usuários em material para novas séries. E como falamos em mecânica quântica, não podemos esquecer a capacidade dessa tecnologia em criar mundos paralelos virtuais que se acumulam como camadas de uma cebola.
Em “Loch Henry”, novamente a plataforma fictícia Streamberry está no centro dos acontecimentos - examina os perigos de explorar o próprio trauma por escolha para alimentar a máquina de conteúdo audiovisual.
Um documentarista (Samuel Blenkin) visita, junto com sua namorada (Myha’la Herrold), sua cidade natal na Escócia em 1997. Outrora um polo turístico, mas agora abandonada devido a uma série de assassinatos horríveis. Claro, que os crimes serão o tema do seu documentário, mas, seguindo a sina do detetive pós-moderno, a verdade se voltará contra ele. E seu trauma, conteúdo de sucesso para os lucros da Streamberry.
“Beyond the Sea” é o melhor episódio da temporada. Situado na década de 60, em meio à corrida espacial da Guerra Fria. Na qual estranhamente há uma tecnologia de natureza tecnognóstica que permite astronautas (Aaron Paul e Josh Harnett) em uma missão distante, transferirem suas consciências para suas réplicas na Terra. Para dividirem seu tempo entre a missão interplanetária e seus afazeres familiares. Há até alusão a um dos episódios mais icônicos da década: o massacre da gangue do líder religioso Charles Mason.
“Mazey Day” não envolve nenhuma nova tecnologia: é ambientada nos anos 1990, nos tempos da Internet ainda discada. É o episódio mais estranho e atípico da série, envolvendo as relações tensas entre paparazzis (Zazie Beetz), celebridades hollywoodianas e... uma celebridade (Clara Rugaard) que vira lobisomem, depois de ter rodado um filme da Tchecoslováquia.
“Demon 79” é o último episódio, ambientado no final da década de 1970 com a ascensão de Magaret Thatcher e tendo como um dos personagens um político que tenta esconder de todos suas inclinações xenófobas e anti-imigração.
A protagonista (Anjana Vasan) é uma tímida funcionária hindu de uma loja de departamentos, cercado de colegas racistas, e que sem querer desencadeia o aparecimento de um demônio descolado (Paapa Essiedu): negro e com roupa no estilo Motown, vestindo um felpudo casaco de pele e sapato plataforma purpurinado. Uma tragicômica história de terror que cruza com a ameaça da guerra nuclear entre OTAN e União Soviética.
Claramente a sexta temporada divide-se em três sessões. Os dois primeiros episódios aproximam-se do Black Mirror clássico, discutindo o fenômeno da tela do entretenimento em streaming. É o tema que sempre esteve na mente do criador Charlie Brooker. Os dois últimos são histórias de terror, fora dos temas clássicos da série.
O que deixa o episódio três, “Beyond the Sea”, ser uma história com estranha atmosfera de futuro do passado, contendo uma tecnologia tecnognóstica que em temporadas passadas estaria num dos futuros Black Mirror. Mas que parece aqui fora do lugar (assim como a própria missão espacial) no longínquo mundo analógico dos anos 1960.
Das duas uma. Ou a série Black Mirror está dando o seu “canto do cisne”, ressentindo-se de ver o seu núcleo criativo hipo-utópico ser esvaziado pela convergência entre realidade e ficção; ou, como demonstrariam os dois últimos episódios, os criadores estariam sondando alternativas narrativas para possíveis novas temporadas.
Black Mirror parece ter sido atingida por aquilo que o escritor underground Charles Bukowski mais temia: que o mundo, no qual notícias e acontecimentos são cada vez mais estranhos, supere a imaginação ficcional.
Ficha Técnica |
Título: Black Mirror (série) |
Criador: Charles Brooker |
Roteiro: Charlie Brooker |
Elenco: Annie Murphy, Samuel Blenkin, Aaron Paul, Zazie Beetz, Anjana Vasan |
Produção: Zeepotron, Channel 4 Television Corporation |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2011- |
País: Reino Unido/EUA |