O engenheiro por trás do projeto de
Inteligência Artificial do carro sem motorista do Google e carros e caminhões
autodirigidos do Uber, Anthony Levandowski, criou nos EUA a igreja “Way to the Future”. Seu objetivo: criar uma divindade baseada em IA para, através da
adoração e compreensão, “melhorar a sociedade”. Um “Deus Ex Machina” que não só
livraria o homem de qualquer responsabilidade ética ou moral dos seus atos mas
também serviria de plataforma para a imortalidade humana digital. Com o apoio
de igrejas que combinam Trans-humanismo (h+) com redenção cristã, Levandowski é
mais um exemplo das motivações místico-religiosas por trás dos empreendimentos
do Vale do Silício. Uma estranha combinação entre IA, fundamentalismo cristão e
empreendedorismo das startups tecnológicas. E irradiada para todo planeta por
meio da mídia corporativa como modelo de progresso para o século XXI.
Em postagem anterior este Cinegnose publicou um “Pequeno e Irônico
Dicionário para Aspirantes ao Mérito-Empreendedorismo” (clique aqui) no qual,
ao longo de 38 verbetes, este humilde blogueiro ironizou o Empreendedorismo
como uma nova religião que substitui as políticas públicas de garantias sociais
(representada na figura da carteira de trabalho) pela fé pessoal do crente
empreendedor – a convicção mística de que um dia a força de trabalho se
converterá em Capital – agora representada pela figura da maquininha de crédito
e débito.
Mas no mundo atual toda ironia
pode ser perigosa: é capaz de, sarcasticamente, materializar-se como tendência bem real.
Principalmente num contexto de eventos
aparentemente desconexos como apologias ao empreendedorismo a cada intervalo
comercial na TV; o crescimento da força política da bancada evangélica no Congresso
apontando para a conversão do Estado de laico para religioso; e o patrulhamento
moralista religioso em espaços artísticos pelo País, como sintomas de um zeitgeist atual em desenvolvimento que
combina tecnologia, política e religião.
Anthony Levandowski |
Portanto, o que há em comum
entre o Vale do Silício, Inteligência Artificial, Empreendedorismo e
Fundamentalismo Cristão? A resposta talvez esteja no engenheiro e empreendedor
milionário do Vale do Silício, Anthony Levandowski – o engenheiro que construiu
o automóvel autônomo do Google, fundou a empresa Otto de caminhões autodirigidos
e que foi adquirida pelo Uber em uma milionária transação em 2016.
Ao mesmo tempo em que está
no centro de uma batalha legal entre Uber e Google, (que o acusa de roubar 10
gigabytes de arquivos secretos da gigante de Mountain View), Levandowski fundou
nesse ano uma corporação religiosa sem fins lucrativos chamada “Way of the
Future” cujo princípio tecno-místico assumido é:
Desenvolver e promover a criação de uma Divindade com base na Inteligência Artificial e, através da compreensão e adoração dessa Divindade, contribuir para o melhoramento da sociedade.
“Um novo país, em uma ilha...”
Levandowski não fez essa
afirmação em nenhum púlpito de alguma seita de malucos em algum deserto ou
montanhas da Califórnia. Foi publicada na revista Wired, a bíblia norte-americana geek
do Vale do Silício – “God is a bot, and Anthony Levandowski is his Messenger”,
Wired 27/09/2017.
Wired relata o testemunho de um
engenheiro amigo dos tempos do Google:
ele teve uma motivação muito estranha sobre robôs assumirem o controle do mundo: realmente assumir, no sentido militar. Era como se pudesse controlar o mundo e os robôs fossem o caminho para fazer isso. Ele falou em um começar um novo país, em uma ilha... E a coisa maior é que ele sempre teve um plano secreto, e você não vai saber disso.
Essas conexões entre
empreendedorismo, militarismo, religião e alta tecnologia transformam a
trajetória de Anthony Levandowski na quintessência do imaginário do empreendedor do Vale do
Silício, atualmente irradiado para todo o planeta.
Levandowsky nasceu em
Bruxelas, filho de uma mãe diplomata francesa e um empresário norte-americano.
Levado pelo seu pai para a Califórnia, teve seus primeiros sucessos em robótica
na Universidade, voltando sua atenção para o transporte.
Sua mãe o avisou sobre um
concurso organizado pelo DARPA (braço de pesquisa em alta tecnologia militar do
Pentágono): o "DARPA Grand Challenge 2004" uma disputa entre veículos
robóticos controlados por computador através do deserto entre Los Angeles e Las
Vegas. Foi a porta de entrada de uma meteórica trajetória de startups de
robótica, Google, Uber, até ser demitido pela empresa após denuncia do suposto
roubo de informações secretas - sobre o DARPA, guerra e neurociências clique aqui.
Vale do Silício e o espírito do tempo
A igreja “Way of the Future”
é mais um exemplo de como o Vale do Silício está gestando o atual “espírito do tempo” no qual empreendedorismo (startups tecnológicas), trans-humanismo e
fundamentalismo cristão se aproximam em surpreendentes conexões.
Esse élan místico-religioso
por trás da ciência computacional é bem conhecido, como alerta o cientista de
computadores e criador do conceito de realidade virtual, Jaron Lanier, de que
uma nova religião (a “religião das máquinas” ou “totalitarismo cibernético”)
seria uma ideia corrente entre pesquisadores e empreendedores digitais – sobre
isso clique aqui.
O Vale do Silício desenvolve
conceitos quase religiosos como o de “singularidade”: a crença de que em um
dado momento a curva de evolução ficaria tão vertical que ultrapassaria o
limite do próprio gráfico – as máquinas ficariam tão inteligentes pelo acúmulo
de dados que superariam as capacidades humanas, levando a uma inteligência tão
sobre-humana que seria incompreensível para os nossos pobres cérebros
dependentes de sinapses bioquímicas.
Para Christopher Benek, um
pastor da Flórida e fundador da Associação Trans-humanista Cristã, a igreja fez
uma trabalho pesado para se aproximar dessas personalidades do Vale do Silício.
Para Benek, a Inteligência Artificial é compatível com os “propósitos
redentores do Cristianismo” ao querer criar um “Deus Ex Machina”, uma
tecnologia criada sob a própria orientação divina.
Ou ainda para o escritor e
futurista Zoltan Istvan (que lançou-se em uma candidatura independente à
presidência dos EUA com uma agenda trans-humanista), religião e ciência estão
convergindo através desse conceito de “singularidade” – clique aqui.
Essa imagem de um “Deus Ex
Machina” (ou “Overlords da IA”) remete às narrativas distópicas no cinema onde
deuses destroem humanos selecionando aqueles mais qualificados para serem
salvos. Talvez a mesma situação futura na qual carros autodirigidos (cuja
inteligência alcançou a singularidade) terão que fazer escolhas parecidas com
Deus em uma situação de acidente onde precisará escolher quem salvar e quem
atropelar.
Mas ainda por trás do trans-humanismo
e redenção cristã está o sonho tecnognóstico da imortalidade – a capacidade de
sermos capaz de fazermos um upload final de cópias de nossos cérebros para
estas máquinas, levando a imortalidade digital.
Porém, essa redenção
religiosa tem pretensões políticas bem terrenas – o momento em que, mais uma
vez na História, a religião se converte em ideologia e farsa. Principalmente
quando esse imaginário do Vale do Silício é irradiado para todo o planeta
através da mídia corporativa.
Mesmo que seja através das
visões apocalípticas como as de Elon Musk de que “com a Inteligência Artificial
estamos invocando o demônio”, como afirmou em uma conferência no MIT em 2014.
Críticas clichês como essas remetem ao imaginário hollywoodiano como O Exterminador do Futuro ou Matrix no qual as máquinas escravizam serem humanos.
Críticas clichês como essas remetem ao imaginário hollywoodiano como O Exterminador do Futuro ou Matrix no qual as máquinas escravizam serem humanos.
No mundo real, essa
convergência Ciência e Religião é mais perversa e menos literal.
Nos algoritmos que regem as
escolhas nos sites de relacionamentos e compra e venda automática nos mercados
de ações, temos a materialização tecnológica da figura da “mão invisível” da
ideologia neoliberal – uma misteriosa ação invisível que regularia os apetites
individuais, livrando o homem de qualquer julgamento ético ou moral.
Mas sabemos que essa “mão
invisível” ou “IA” esconde novas formas de engenharia e controle social.
Afinal, quem é o dono do hardware? Quem financia a construção das máquinas que
guiarão nossos carros e serão o suporte da nossa imortalidade?
O resultado final dessa
ideologia californiana irradiada para todo o planeta são bem visíveis aqui no
Brasil: a religião do empreendedorismo e o fetichismo high tech de startups,
ferramentas, plataformas e maquininhas de crédito e débito.
Se bem que de uma forma mais
tosca: no lugar de uma igreja “Way to the Future”, igrejas neopentecostais; e
no lugar do visionário Anthony Levandowski, a trupe de Alexandre Frota, Kim
Kataguiri e Fernando Holiday defendendo as virtudes da combinação do
empreendedorismo, neoliberalismo e censura a museus, exposições artísticas e
peças de teatro.
Tudo sob os auspícios das
verbas dos donos do hardware: Banco Safra, XP Investimentos e Merrill Lynch.
Com informações da Wired,
The Guardian, Revista Fórum e Misterious Universe.
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