A série “Succession” (2018-2023) encerrou sua quarta e última temporada com o seu criador, Jesse Armstrong, sem a menor intenção de criar personagens que arranquem alguma empatia do espectador. “Succession” é um show sobre a amoralidade corporativa de uma família, CEOs e acionistas que disputam o controle de uma gigante de mídia e entretenimento. Explicitamente inspirada na família Redstone (Viacom) e Murdoch (Fox News/News Corp), acompanha irmãos disfuncionais com personalidades formadas em infâncias super ricas, mas que cresceram emocionalmente pobres. Um drama shakespeariano sobre a disputa da coroa do patriarca Logan Roy, numa competição de crueldades, traições e mentiras que sempre termina da pior forma possível. “Succession” apresenta uma tendência atual no cinema e audiovisual: o prazer do público em ver o quão tristemente ridículos podem ser super ricos mimados. A questão é que são eles que controlam a informação e entretenimento globais.
A principal característica dos clássicos filmes noir (gêneros de filme norte-americano dos anos 1940-50 notabilizado pela fotografia em preto e branco com alto contraste e personagens com motivações cínicas em um mundo que se desfaz em névoas e chuva) é que sua narrativa não era maniqueísta, isto é, não havia mocinhos e bandidos – todos tinham algo para esconder do passado e eram suspeitos desde o início em um mundo de aparências, desconfiança e paranoia.
Porém, o gênero noir apontava para uma saída: o detetive podia levantar o véu da ilusão (representado por neblina, fumaça dos cigarros e chuva) e descobrir a verdade.
Ao contrário da série HBO Sucession (2018-2023), encerrada recentemente na sua quarta temporada e criada por Jesse Armstrong. A série nos apresenta um drama shakespeariano ao estilo Rei Lear sobre uma fictícia família bilionária à frente do conglomerado de mídia e entretenimento Waystar Royco, dirigida por um velho patriarca grosseiro e politicamente reacionário do tipo Rupert Murdoch chamado Logan Roy (Brian Cox). Quatro filhos que disputam a linha de sucessão do controle da gigante midiática. Mas que, como o patriarca, se tornou pesada e tecnologicamente ultrapassada – ainda que tente de forma canhestra e desajeitada se enveredar pelas tecnologias de convergência.
A série é sobre um mar corporativo infestado de tubarões no qual os filhos de Roy, apesar de toda arrogância com unhas e dentes afiados, não passam de tubarões com dentes de leite. A metáfora do sangue espelhado na água que atrai tubarões é repetida por Logan Roy diversas vezes nas temporadas. E como no meio dessas turbulências, Shiv (Sarah Snook), Kendall (Jeremy Strong) e Roman (Kieran Culkin) duelam entre si pelo cargo de novo CEO. Enquanto o filho mais velho, Connor (Alan Ruck), vive o sonho de virar um Think Tank conservador e eventual candidato à presidente.
Succession se tornou uma série famosa por vermos todos os personagens fazerem coisas condenáveis. Parece que o criador Jesse Armstrong é inflexível em seu propósito de não fazer o público sentir a menor empatia por todos. Ninguém se salva e todos parecem, desde o início, condenados: Roman e seu senso cínico, personalidade pervertida e humor autodepreciativo; Shiv, a filha que mais herdou do pai a frieza desbocada; Kendall, um amontoado de clichês do jargão corporativo que vive nas bolhas das redes sociais e culpado por ser um pai ausente; e Connor que apenas quer ser, assim como o pai, uma eminência parda de presidentes dos EUA. Mas tudo o que consegue é torrar dinheiro com sua noiva, uma ex-garota de programa, que vive o sonho de ser uma dramaturga, montando peças de teatro caríssimas que são destruídas pela crítica e pelo fracasso de público.
Por isso, Succession parece nos apresentar a clássica narrativa noir, porém sem névoas e chuva: não há mocinhos e bandidos. Ninguém presta! Mas, ao contrário do clássico noir, a série não apresenta uma saída: é uma cadeia alimentar na qual um devora o outro.
Não há um plot twist que revele alguma verdade ou algum “rosebud” oculto ou esquecido que mostre algum propósito recôndito mais nobre, estoico ou idealista.
Ao contrário, Succession parece mais outro clássico, o filme Feitiço do Tempo. Isso porque a todas as temporadas terminam da mesma maneira: o fracasso dos filhos em virar a mesa, fazendo-os sempre voltar à velha prancheta de planejamento de golpes e mentiras. Sendo o final da quarta temporada, a derrota final: serem devorados pelo maior tubarão de todos, a gigante tecnológica sueca chamada GoJo que finalmente faz a Waystar Royco migrar para o século XXI. Mas da pior maneira para os filhos, após o patriarca morrer.
Por isso, Succession é uma série assustadora. Sabendo-se que os roteiristas se inspiraram nos casos reais das famílias Redstone (conglomerado Viacom) e Murdoch (News Corp/Fox News/Wall Street Journal) passamos a refletir sobre a bizarra situação das comunicações globais: monopólios midiáticos nas mãos de famílias e acionistas imersos em um niilismo corporativo tautista – sistemas fechados e autofágicos, manipuladoras das linhas editoriais dos seus diversos veículos e completamente alheios à responsabilidade social das mídias. Ou da própria realidade.
Quarta Temporada - alerta de spoilers à frente
Depois de três temporadas descrevendo um mundo corporativo e familiar de traições, enganos e ambição dos Roy (isso sem falar no psiquismo dos irmãos formados em infâncias materialmente ricas e emocionalmente pobres), Succession termina com um adeus ao mesmo tempo terrível e perfeito.
A temporada abre com Roy em circunstâncias bastantes recorrentes na série: o patriarca entrincheirado em lados opostos. Roy na sua festa de aniversário. Ele continua o mesmo, proferindo insultos dos quais não conseguimos segurar o riso. Mas já uma tristeza subjacente ao personagem: durante uma sessão de terapia familiar em uma sala de karaokê iluminada por néon, ele olha para seus filhos com desdém, o tempo todo tentando reparar seus relacionamentos quebrados, embora os motivos sejam novamente misturados com necessidades comerciais e pessoais.
Ele, como seus filhos, não sabe como articular seus sentimentos e, em vez disso, sucumbe à raiva, repreendendo também sua equipe de diretores veteranos experientes, quase como se fossem apenas substitutos de seus filhos. Ele é um mestre gaslighter.
Como se pressentisse seu próprio final, Roy está decidido em finalmente vender por bilhões a Waystar Royco. E o principal pretendente é a GoJo, cujo CEO é um tubarão jovem, mas tão duro e frio quanto ele, Lukas Matsson (Alexander Skarsgård).
O que acende mais uma vez o espírito de corpo dos filhos – a ameaça deles jamais herdarem a coroa do pai. E a perspectiva de não se tornarem relevantes em coisa alguma na vida, mesmo com uma fortuna bilionária.
Mais uma temporada de traições e jogos de enganos e mentiras, com dois elementos novos: a morte natural do patriarca e a gravidez de Shiv, fazendo o marido saco de pancadas da esposa Tom (Matthew Macfadyen), como mais um player para disputar o cargo de CEO da futura empresa adquirida.
O final brutal para os filhos apenas comprova melancolicamente que sempre foram desde o início: mimados que literalmente nunca fizeram nada, a não ser encontrarem soluções corporativas que a curto prazo até salvavam a empresa – mas que apenas entregava nacos cada vez maiores para acionistas rivais da família e agiotas das finanças globais.
Kendall é um sociopata, sem controle perceptível dos negócios. Ele é um viciado, tem o semblante infeliz de um viciado mesmo quando está limpo, e, muitas vezes, transforma seus pronunciamentos públicos em show de vergonha alheia. Com a capacidade de atenção de um hamster, ele não exibe nenhuma das qualidades de um líder de negócios de sucesso e tem uma personalidade completamente desagradável.
Shiv é realmente a mais inteligente. Ela é a mais liberal e estava separada da família reacionária com tendências à extrema-direita. Mas ela compartilha a alma do pai, com crescentes manobras de crueldade até que ela agarra o primeiro lugar e o controle do tabuleiro. No clímax, ela foge de ambos os irmãos e reinstala o marido Tom de volta como chefe da rede de notícias de direita na nova Waystar Royco adquirida pela GoJo.
Succession é um show sobre a amoralidade corporativa, aquela que controla conglomerados de informação e entretenimento. Embora em muitos momentos da série vemos jornalistas chefes de canais de TV em defesa da independência editorial, tudo é recebido com um sorriso cínico de Logan Roy e até dos próprios filhos.
Claro, ninguém quer ser a favor do nazismo e do antissemitismo. Mas o que fica claro é que o limite editorial está no xadrez corporativo amoral dos interesses dos acionistas e da família Roy. E a tradução política está no filho wanna be de falcão conservador Connor: um neoliberal com tendências extremistas de direita.
Talvez daí venha o único prazer dos fãs da série Sucession: o de se divertir sadicamente com os perrengues dos super-ricos. Tendência iniciada com o premiado com o Oscar Parasita. Mais recentemente, vimos um monte deles em um iate de luxo vomitando uns nos outros em Triangle of Sadness (2022) e na série Glass Onion: A Knives of Mystery (2022), multimilionários presos em uma ilha grega particular tentando descobrir quem entre eles é um assassino – com toda carga de ironia sobre como os muito ricos podem ser tristemente ridículos.
É o mesmo prazer em Sucession: ver o quão tristemente ridículos são super ricos mimados aos trancos e barrancos pelo poder. Para depois assistirmos a tragicômica derrocada final.
O mesmo prazer sádico do público que se interessou através da TV na história de também super ricos que morreram esmagados pela pressão nas profundezas do oceano, tentando se aproximar dos restos do Titanic no interior de um milionário submarino da Ocean Gate.
Ficha Técnica |
Título: Sucession (série) |
Diretor: Mark Mylod |
Roteiro: Jesse Armstrong, Miriam Battye, Jamie Carragher |
Elenco: Brian Cox, Kieran Culkin, Sarah Snook, Matthew Mcfayden, Alan Ruck, Jeremy Strong |
Produção: Gary Sanchez Productions, Project Zeus |
Distribuição: HBO Max |
Ano: 2018-2023 |
País: EUA |