Como assim? Um golpe de Estado sendo discutido em um grupo de WhatsApp? E o roteiro encontrado no celular do ajudante de ordens de Bolsonaro? Golpe Tabajara? jornalistas acreditam em qualquer coisa, talvez por assistirem a muitos filmes da Netflix. Ou porque estão dominados pelo vício epistemológico de que as notícias só podem ser fatos grandiloquentes. Dominados por esse empirismo grosseiro, são incapazes de entende um cenário de guerra híbrida. Isto é, golpes como PROCESSOS. Mas, principalmente, o fato de que a guerra (principalmente informacional) é a arte do engano. “Vazou” um plano de golpe de Estado? É a não-notícia, estratégia difusa da pedagogia do medo para criar a paralisia estratégica no oponente – mais um tijolo para tentar emparedar o governo Lula. Aquele mal-agradecido, por não reconhecer que Biden salvou a nossa “frágil” democracia... de um golpe tabajara.
Nessa semana acompanhamos a conclusão das premissas desse verdadeiro silogismo que começou com a minuta do golpe achada na residência do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, e terminou com os primeiros “vazamentos” (sempre os “vazamentos”...) e a quebra do sigilo do conteúdo explosivo achado no celular do “faz tudo” de Bolsonaro, Mauro Cid: o roteiro do golpe e conversas no WhatsApp de Cid com militares da ativa discutindo um possível golpe de Estado.
Primeira conclusão do “silogismo do golpe”: “Nunca quisemos dar o golpe. Tanto que não demos” (Estadão, 21/06). Críptica declaração do Chefe do Estado Maior do Exército, o general Fernando José Sant’Anna Soares e Silva. É uma declaração no mesmo nível do paradoxo do mentiroso de Epiménides - diz o cretense Epiménedes: “Todo cretense é um mentiroso”. Ora, se a frase for verdadeira, o filósofo estaria nos contando uma mentira. Mas se for mentira, a frase é verdadeira. Mas não pode ser, pois todo cretense é mentiroso, e assim por diante num ciclo vicioso sem conclusão.
Há um intertexto nessa frase: “não demos golpe porque não quisemos”. De forma críptica, reforça uma ideia de um suposto poder moderador que historicamente as Forças Armadas teriam cumprido... “não quisemos dar o golpe AGORA porque não precisava...”. Se o general fala “tanto é que NÃO DEMOS” é porque considera o tema pertinente a um militar.
Segunda conclusão está na chamada de primeira página da Folha (17/06) “A Democracia é Frágil” de José Pinheiro da Fonseca: “... é preciso reconhecer que é também graças a eles [Forças Armadas] que a democracia está de pé. Isto é, os militares poderiam ter dado um golpe... não deram porque não era necessário.
E a terceira conclusão, o inacreditável artigo do jornal britânico Financial Times de que o governo Biden teria atuado na defesa das eleições brasileiras – Biden teria pressionado militares a respeitar o processo eleitoral brasileiro. Por isso, o presidente norte-americano estaria “ressentido” com a “ingratidão” de Lula pelo “pouco reconhecimento” ao não se alinhar aos EUA com a sua visita à China – clique aqui.
A dedução silogística é essa: havia um roteiro do golpe sendo tramado cuja materialidade estaria no celular do operador financeiro e de golpes Mauro Cid, cujos artífices estavam num grupo do WhatsApp discutindo detalhes e cobrando de Bolsonaro o “sim” para tudo ser desfechado... Legalista, o Alto Comando não foi seduzido pelos aventureiros, punindo-os (“Exército age contra coronel que tramou golpe militar” Estadão, 17/06), enquanto a PF relata ao STF, trechos “vazam” para o jornalismo corporativo o que leva o ministro Alexandre de Morais a suspender de vez o sigilo dos conteúdos do celular do “faz tudo”.
Logo... se aceitarmos essas premissas, o governo Lula deve ser eternamente “grato” ao Alto Comando do Exército que avaliou que não precisava dar golpe, aos EUA por ter “pressionado” os generais brasileiros e à solerte vigilância do poder moderador das Forças Armadas que garantem nossa ainda frágil democracia.
A nostalgia do golpe militar
Tudo parece inacreditavelmente inverossímil, canastrão, overacting, tão melodramático como um thriller do Netflix. Ou aqueles golpes de Estado em repúblicas bananeiras transformado em estereótipo em filmes como Era Uma Vez no México ou Luar sobre Parador – estrelado pela, na época, “bombshell” Sonia Braga.
Como assim? Um golpe de Estado sendo discutido em um grupo de WhatsApp? E os planos achados no celular do ajudante de ordens de Bolsonaro? Golpe Tabajara?
Parece que jornalistas acreditam em qualquer coisa, talvez por assistirem a muitos filmes da Netflix. Ou então porque acreditam que a História se desenvolve por meio de atos grandiloquentes: tanques cercando o Congresso no golpe de 1964; a queda do Muro de Berlin; o Boeing batendo no WTC em 2001. Por isso, jornalistas não conseguem entender processos, movimentos subterrâneos, cenários...
Mas, principalmente, por não entenderem que a guerra (ou a Política, a guerra por outros meios) é a arte do engano.
Jornalistas assistem a muita Netflix? |
O jornalismo corporativo parece nostálgica de um golpe militar old fashion, iguais os do século XX. Porém, no século XXI, só na plataforma de streaming Netflix!
Paralisia estratégica
Olhando em perspectiva, desde que Bolsonaro assumiu a presidência em janeiro de 2019, sua principal estratégia de comunicação foi a de criar, praticamente toda semana, dissonâncias cognitivas, informações dissonantes, fragmentação, aloprar o cenário político (p.ex. sobrevoar de helicóptero manifestações golpistas em Brasília) etc. Um conjunto de ações que, na teoria da guerra híbrida, chama-se “guerra criptografada” - criar uma guerra de informação dissuasiva e alienadora.
Porém o principal objetivo é o de criar a paralisia estratégica no inimigo. Blefes e mais blefes se sucederam. O ápice foi a “Operação 7 de Setembro” em 2021 na qual o País viveu sob uma suposta ameaça de um autogolpe de Estado de Bolsonaro (ou o “fechamento do regime”), açodando os incríveis líderes Zé Trovão, o líder caminhoneiro, o cantor José Reis e o humorista Batoré que liderariam uma marcha sobre Brasília no 7 de setembro. Todos salvos pelo ex-desinterino Temer que apareceu do nada como o salvador que se ofereceu para fazer a “mediação” e acalmar os ímpetos golpistas.
“Tenho medo de dormir na democracia e acordar na ditadura”, leu na época esse humilde blogueiro na bolha progressista das redes sociais na véspera daquele tenso 7 de setembro.
Criar a pedagogia do medo: a repetição behaviorista do mesmo estímulo (a ameaça do golpe que poderá vir de qualquer lugar) para paralisar o oponente.
Lembrem-se que tudo começou com os “300 de Brasília”, meia dúzia de aloprados que disparou foguetórios contra o prédio do STF no meio da noite
Tudo isso para quê? Paralisia estratégica: fazer a esquerda morrer de medo por melindrar “golpistas”... e entregar a sua sorte para o Judiciário – “judicialização da política”, mais uma faceta da depreciação da Política, um dos objetivos basilares da guerra híbrida, desde as Jornadas de Junho de 2013.
Guerra é a arte do engano. Preceito muito anterior a toda a discussão sobre guerra híbrida – é a própria essência da guerra: enganar o oponente por meio do blefe, simulação, ilusão.
Um exemplo do insólito episódio do “Ghost Army” na Segunda Guerra Mundial: no norte da Normandia uma unidade do exército norte-americano com pouco mais de mil homens desembarcou para pôr em movimento um verdadeiro road show usando tanques e caminhões infláveis, amplificadores com sons pré-gravados de movimentação de tropas e caminhões e diversas ações cênico-teatrais, incluindo efeitos especiais cenográficos. Munidos de compressores de ar e alguns soldados-atores eram capazes de criar em uma hora falsos comboios militares que aparentavam ter 30.000 homens.
Resultado: impacto psicológico nas tropas nazistas. Paralisados pelo medo, ou se entregaram ou abandonaram suas posições para fugirem desordenadamente.
Algo semelhante está correndo nesse momento, com a coreografia combinada de sempre entre o PMiG (Partido Militar Golpista), Judiciário (os vazamentos com timing de sempre) e a grande mídia – com jornalistas ainda sob o vício epistemológico da notícia entendida como fatos grandiloquentes. Dominados pelo empirismo grosseiro, são incapazes de entende um cenário de guerra híbrida. Isto é, golpes como PROCESSOS.
O processo de um golpe militar híbrido, subterrâneo, cujo desfecho foi a vitória eleitoral de Bolsonaro.
A contraparte da simulação
O leitor poderia contra-argumentar com os ataques golpista em 08/01 em Brasília. Respondo: todo jogo de simulação deve ter uma contraparte no real para o blefe dar certo.
Toda aquela multidão vestida com a bandeira nacional e camisetas da CBF não queriam dar um “golpe” ou “tomar o poder”. Embora estendessem faixas pedindo “intervenção” e clamassem por um golpe militar old school.
A depredação dos prédios dos três poderes da República pareceu muito mais uma espécie de parque temático do golpe – “patriotas” caminhando pelos amplos espaços verdes da Esplanada e Praça dos Três Poderes filmando com seus celulares, fazendo selfies ou lives para abastecer as redes sociais bolsomínias de conteúdo, casais de namorados pedindo para terceiros fazerem fotos deles.
Tática conhecida: o efeito fliperama – dispare a bolinha ela irá rebater intensamente entre os pinos. Açode gente limítrofe e ressentida (muitas vezes por motivos pessoais) e se transformarão em bucha de canhão para qualquer finalidade.
O mesmo efeito fliperama pode ser aplicado ao “WhatsApp do Golpe”: certamente muitos militares do grupo acreditavam piamente num golpe de Estado Tabajara. Bastaria Bolsonaro dar o OK e as pedras rolariam.
Quanto os EUA, a notícia do Financial Times citada acima é uma meia-verdade. De fato, para os EUA, Bolsonaro (assim como Trump) tornaram-se disfuncionais à nova conjuntura geopolítica assumida pelos Novos Democratas. A questão é que a extrema-direita tem uma agenda própria: o nacionalismo. Antitético em relação aos interesses globalistas dos falcões do Império.
Como sempre, a extrema-direita é útil em conjunturas específicas – como no tour das Revoluções Coloridas que varreram o mundo nas últimas décadas, levando a ascensão mundial da direita alternativa (alt-right).
PMiG aliou-se à extrema-direita dentro do seu alinhamento à geopolítica norte-americana. Mas, a conjuntura acabou: Trump e Bolsonaro tornaram-se disfuncionais.
Somente nesse sentido deve se entender a relação das Forças Armadas brasileiras e EUA. Mas, o silogismo deve ser esse: existiu uma séria tentativa de golpe contra o processo eleitoral. Biden salvou Lula. Logo... Lula deve se alinhar automaticamente àqueles que garantem a democracia brasileira.
O interessante é que esse jogo de simulação ao estilo “Ghost Army” tem ainda um objetivo muito maior para o PMiG: apagar suas próprias digitais no golpe militar híbrido e como os militares são capazes de tutelar os poderes da República.
No fundo, toda a mis-em-scéne do Golpe Tabajara lembra a velha máxima de Carlos Lacerda da UDN, o arqui-inimigo de Getúlio Vargas: “Não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar”.