quinta-feira, novembro 10, 2022

Minissérie 'Inside Man': ciência e religião na jornada simbólica de Ulisses


Um prisioneiro (um brilhante ex-professor de Criminologia) no corredor da morte numa prisão dos EUA e uma mulher algemada no porão da casa de um respeitável vigário em uma vila inglesa. Duas histórias distantes, mas que irão se entrelaçar das formas mais inesperadas, lembrando os ardis de Hannibal Lecter e a cadeia de equívocos catastróficos como no filme “Fargo”. Essa é a minissérie de suspense e humor negro da Netflix “Inside Man” (2022) que oferece interessantes metáforas: o representante da Ciência, com sua lógica dedutiva e precisa, prisioneiro; e um vigário (a Religião) livre, porém preso à compulsão de se tornar um mártir. Afinal, representa “a única religião em que Deus morre no final”.  Ciência e Religião: as duas encarnações da Razão na jornada da civilização ocidental. Jornada semelhante à de Ulisses, na “Odisseia” de Homero.

Qual foi a astúcia do herói Ulisses na “Odisseia” escrita por Homero? Nesse principal texto da cultura grega são descritas as aventuras de 17 anos de retorno para casa do herói Ulisses, depois de passar dez anos na Guerra de Tróia. 

Para os pensadores Theodor Adorno e Max Horkheimer a astúcia de Ulisses é a proto-história da civilização racional, cuja ápice vivemos atualmente no chamado Capitalismo Tardio. Ulisses consegue retornar a Ítaca após usar sua astúcia para escapar do perigo dos mitos durante sua jornada pelo Mar Mediterrâneo: os perigos de Cila e Caríbdes, cegar o olho único de Polifemo, conservar sua forma humana apesar das seduções de Circe, resistir à tentação da amnésia e do paraíso artificial dos Lotófagos e resistiu ao canto das sereias.

Para os autores, a astúcia de Ulisses estava em se entregar em um primeiro momento aos encantos e seduções da Natureza, dos mitos e dos demônios para, depois, enganá-los. Da mesma forma como o herói moderno (o homem comum) o faz ao reprimir seus impulsos e desejos no seu dia a dia em nome da racionalidade das metas sociais, políticas ou corporativas – leia ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. A Dialética do Esclarecimento, Jorge Zahar, 1997.

Embora saiba da existência das sereias que se escondem nas pedras para, através do seu canto, afundar os navios, Ulisses mantém o rumo da sua embarcação para se permitir ouvir os cantos proibidos. Porém, astutamente mantém os remadores com seus ouvidos tampados com cera enquanto deixa-se ser amarrado ao mastro principal. Permite-se ser seduzido, mas logra mais uma vez os mitos sedutores.

Homero ajudou a modelar a cultura a se apoderar dos mitos e submetê-los à astúcia racional de Ulisses – para Adorno Horkheimer já estaria nessa narrativa a longa jornada da razão na história e, tal como Ulisses, a maneira como nós ficaríamos aprisionados ao navio da civilização pela renúncia e sacrifício.

Toda essa longa introdução desse humilde blogueiro é necessária para compreendermos o simbolismo integral da minissérie de quatro episódios Netflix Inside Man (2022), um mix de drama e suspense com o típico humor negro britânico no qual os personagens atravessam todas as adversidades e reveses com a tradicional fleuma inglesa – o que produz bizarras cenas de humor em meio aos dramas pessoais.



 O criador Steven Moffat se une ao diretor Paul McGuigan para entregar uma narrativa que ocorre nas duas extremidades do Oceano Atlântico. Enquanto metade da história ocorre na Inglaterra com um vigário responsável pelas almas de um pequeno vilarejo, no outro lado do oceano acompanhamos em uma prisão estadual americana um ex-professor de criminologia no corredor da morte por ter assassinado sua esposa com sádicos requintes: sua cabeça foi enterrada em destino que o condenado se recusa a dizer.

Aparentemente não relacionados, começamos a perceber que as peculiaridades e idiossincrasias de cada um os une: a brilhante mente do criminologista parte de um princípio fatalista da natureza humana: qualquer um é um assassino em potencial, até conhecer a vítima certa em um dia ruim. Enquanto o vigário também parte de outro fatalismo, dessa vez não científico, mas religioso: ele considera-se o defensor da única religião em que Deus morre no final. O que trará sérias consequências numa sucessão de decisões equivocadas e coincidências que fazem lembrar as desventuras do filme Fargo, dos irmãos Cohen.

A exemplo de Ulisses, os protagonistas atravessam suas desventuras e ameaças com renúncia e sacrifício, presos que estão. Mas dessa vez, não presos a um poste de uma embarcação, mas presos à Ciência e Religião – duas encarnações da longa jornada da civilização ocidental.

A Minissérie

Stanley Tucci interpreta Jefferson Grieff, um prisioneiro de fala mansa e altamente inteligente, no corredor da morte por assassinar sua esposa com particular crueldade: escondeu a cabeça e mutilou o corpo. Brilhante professor de criminologia, com a permissão do diretor do presídio, as pessoas vêm a ele para obter assessoria sobre seus casos policiais. Grieff atua como detetive da prisão, fornece soluções e ouve casos para deduzir os culpados à medida que as pessoas chegam com perguntas a casos que exigem respostas. Tal como Hannibal Lecter em o Silêncio dos Inocentes, gosta de manipular seus “clientes” e até se digna a fornecer soluções baseadas em puro raciocínio dedutivo, numa referência a Sherlock Holmes.




Tem como “assistente” outro prisioneiro (matou 14 pessoas com canibalismo adicional), Kempton (Altkins Estimond), atuando como seu estenógrafo usando memória fotográfica.

A princípio, a história de Grieff num quente presídio do Arizona, corre paralelo e não relacionado com outra narrativa que se desenrola em uma vila inglesa, em torno de um doce vigário chamado Harry (David Tennant) e uma professora de matemática nada doce Janice (Dolly Wells). Nós a encontramos despachando um jovem bêbado que está assediando a jovem jornalista Beth Davenport (Lydia West) e outras mulheres em uma composição de metrô. Esta professora, e possivelmente esta jornalista, vão tornar a vida de Harry muito em breve num inferno.

O vigário Harry recebe um pendrive de seu jovem e problemático coroinha Edgar (Mark Quartley) que contém imagens de abuso sexual infantil. O coroinha tenta se livrar do dispositivo com medo de que sua mãe descubra. Temendo sua vulnerabilidade psicológica, Harry promete ocultar seu segredo. Uma cadeia de eventos faz com que Janice (que dá aulas particulares de Matemática para o filho de Henry) veja o conteúdo da pendrive e acredita que pertence ao filho de Harry, Ben (Louis Oliver). Ele é um adolescente preguiçoso, mas Harry o ama e tenta convencer Janice de que ela está enganada, sem trair Edgar.



Começa então uma discussão entre Harry e Janice e ela acaba algemada e ferida no porão, depois de uma sucessão de desastradas tentativas de diálogo que resulta em agressão ao melhor estilo dos equívocos em série do filme Fargo. Harry tranca a porta do porão, começando o pesadelo em que, junto com a esposa Mary (Lyndsey Marshal), tentará resolver o dilema: tentar convencer Janice? Matá-la? Assumir a pedofilia para salvar o coroinha Edgar seu filho? 

Enquanto isso, a jornalista Beth atravessa o Atlântico para entrevistar o notório assassino Grieff para um veículo de imprensa inglês. Para depois pedir seu conselho sobre o desaparecimento de Janice, dando início à trama da minissérie com as duas narrativas paralelas se entrelaçando das formas mais inusitadas.

Com o caso do vigário Harry, Grieff vê a confirmação da sua tese: todo mundo é um assassino em potencial... basta ter um dia ruim e uma sucessão de trágicas coincidências.

Se Grieff parece obsessivamente querer comprovar a sua tese (que, afinal, justificaria o seu próprio crime), por outro lado o vigário Harry tem uma compulsão em se tornar mártir.

Um vigário com uma consciência questionável e um brilhante criminologista no corredor da morte. A série Inside Man faz aqui interessantes metáforas: um homem representando a Ciência, a Razão e a Lógica aprisionado à espera da execução; e o outro livre, representando a religião. Porém, preso à sua compulsão em ser mártir. Afinal, pertence à única religião em que Deus morre no final.

Como cientista forense e grande criminologista, Grieff parece ter também ficado prisioneiro da premissa de todos os seus jogos de dedução: qualquer um pode ser um criminoso. E ele próprio seria a prova viva disso. Grieff parece ter ficado prisioneiro de uma espécie de profecia autorrealizável.



Enquanto Harry vive dentro de uma prisão teológica. O tempo inteiro Harry repete o mantra “sou a porra do vigário!”. Portanto ele deve se sacrificar e renunciar à sua família para salvar todos... assim como Jesus morreu pela humanidade. 

O problema é que Harry tentará fazer isso das formas mais desastradas possível, dentro do espírito do bom humor negro britânico.  

Religião e Ciência são duas encarnações da Razão em sua jornada de séculos no Ocidente. Uma jornada cuja Odisseia de Ulisses foi o protótipo do que seria desenrolado por séculos à frente. Tal como Ulisses, Grieff e Harry fazem uma jornada de renúncia e sacrifícios para comprovar suas premissas da Ciência e da Religião.

Não é por menos que para Adorno e Horkheimer a civilização ocidental comporta-se como Ulisses deixando-se amarrar ao mastro principal, mas deixando-se ouvir o canto das sereias. Apesar de tudo, Grieff teme a morte e faz de tudo para adiá-la, enquanto o vigário Harry ama a família e a comunidade e teme perdê-los ao assumir a culpa por pedofilia. Mas estão amarrados a premissas das quais não conseguem se libertar, premissas que exigem renúncia e sacrifícios para se eternizarem.

  Não seria essa uma síntese da história da própria civilização?


 

Ficha Técnica

 

Título: Inside Man (série)

 

Craidor: Steven Moffat

Direação: Paul McGuigan

Elenco:  David Tennant, Stanley Tucci, Lyndsey Mashal, Louis Oliver, Lydia West, Dolly Wells

Produção: Harstwood Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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