Filmado apenas com um Iphone em um único plano sequência, ambientado em um café real da cidade de Kyoto, o filme japonês “Dois Minutos Além do Infinito” (Dorosute no Hate de Bokura, 2020 – disponível na HBO Max) é uma das experiências cinematográficas mais inovadoras dos últimos anos. Kato, o proprietário do café, descobre que na tela do computador em seu apartamento no andar de cima está sendo transmitido, via Zoom, diretamente do café abaixo, sua versão dois minutos à frente no futuro. O filme explora um dos aspectos mais interessantes da viagem no tempo: os loops temporais e seus paradoxos. Principalmente, a dicotomia filosófica entre livre-arbítrio e necessidade. Afinal, seríamos escravos do futuro? Essa seria uma séria questão quando acrescentamos ao tema o tempo recursivo e a profecia autorrealizável.
O aspecto mais intrigante dentro do tema da viagem no tempo são os loops e seus potenciais paradoxos. Como aqueles vistos em filmes como Os Doze Macacos, Looper, Tenet etc.
Talvez um dos mais famosos seja o paradoxo do relógio no filme Em Algum Lugar do Passado (1980): o circuito fechado do relógio entregue m 1972 que é devolvido em 1912 que depois será novamente entregue m 1972 – onde foi fabricado o relógio? Um paradoxo sobre um relógio que existiria sem nunca ter sido criado. O que na Física chama-se CTC (Closed Timelike Curve), Linha do Tempo Fechada. Carece de qualquer início ou final, parecendo surgido do nada, criatio ex-nihilo – clique aqui.
Paradoxos como esse da viagem no tempo colocam questões filosóficas, principalmente a dicotomia entre necessidade e livre-arbítrio: afinal, seríamos escravos do futuro? Essa seria uma séria questão quando colocamos dentro do tema da viagem no tempo os ingredientes do tempo recursivo (em loop) e da profecia autorrealizável.
Profecia autorrealizável é um conceito criado pelo sociólogo Robert K. Merton em 1949: no seu início a profecia é uma definição falsa de uma situação que evoca um novo comportamento que torna a definição falsa como “verdadeira”. Essa peculiar validação perpetua uma tendência de erro. O “profeta” citará o curso atual dos eventos como prova de que estava certo desde o início. É o paradoxo de uma mentira ou um boato se autorrealizar como verdade.
Colocado nesses termos, o que chamaríamos de “futuro” seria uma percepção enganosa fita no presente, confirmando-se como verdade quando chegamos no futuro. Uma verdadeira cilada cognitiva.
A comédia japonesa Dois Minutos Além do Infinito (Dorosute no Hate de Bokura, 2020 – disponível na HBO Max) é uma das experiências cinematográficas mais inovadoras dos últimos anos por explorar ao limite o tema dos loops temporais e seus potenciais paradoxos.
E por tratar o tema do tempo, o filme ainda é em si mesmo um experimento sobre o próprio tempo na linguagem cinematográfica: aparentemente filmado num único plano sequência, com Iphone, quase inteiramente no interior de um café de verdade em Kyoto.
O argumento do filme parte de uma realidade bem atual: em nosso mundo do trabalho passamos cada vez mais tempo em home office e chamadas pelo Zoom. E se o rosto que nos encara através da tela fosse uma versão de nós mesmos dois minutos no futuro? E se o eu do futuro dizer para o eu do presente, o que acontecerá daqui a dois minutos, induzindo de diversas maneiras a confirmar a previsão? Esse loop criado colocaria em xeque a própria existência do livre-arbítrio.
Dois Minutos Além do Infinito é o exemplo mais recente do filme nagamawashi (com uma única tomada), o microgênero que atualmente coloca o cinema japonês sem orçamento no mapa após o sucesso de One Cut of the Dead – a comédia de terror zumbi de 2017 que se tornou um culto internacional. sensação, arrecadando mais de 30 milhões de dólares em todo o mundo com um orçamento de apenas 25 mil dólares.
O Filme
Dirigido por Junta Yamaguchi e escrito por Makoto Ueda, o filme acompanha Kato (Kanuzari Tosa), um músico amador e proprietário de um pequeno café abaixo do pequeno apartamento em que mora. No final do expediente, depois de subir as escadas até sua casa, Kato descobre que uma transmissão ao vivo em seu computador está, na verdade, sendo transmitida de uma versão futura de si mesmo no café abaixo.
Quando seus amigos e colegas de trabalho descobrem, começam a explorar as potencialidades daquilo que começam a chamar de “Time TV”. Tentam reverter essa anomalia temporal ao seu favor (resultado de uma raspadinha, encontrar um maço de dinheiro escondido em um lixo próximo etc.) até que começam a fazer ajustes para o alcance do futuro ser muito mais do que dois minutos: trazem a tela do andar superior para o café abaixo e colocam uma tela diante da outra, produzindo o “efeito Droste”.
Efeito Droste é conhecido no mundo da arte como um exemplo de mise en abyme - é o efeito de uma imagem que aparece recursivamente dentro de si mesma, em um local onde seria realista esperar que uma imagem semelhante aparecesse. Isso produz um loop que matematicamente pode durar para sempre, mas na prática só continua até onde a resolução da imagem permite.
Quando o grupo começa a manipular os dois monitores para ver mais atrás e mais na frente no tempo, as possibilidades começam a ficar cada vez mais alucinantes: personagens realizando “truques de mágica” com base em seu conhecimento do futuro ou recebendo textos de dois minutos atrás que eles mesmos enviaram para si próprios. O feito Droste acaba criando uma espécie de túnel para o passado e para o futuro, através do qual os diversos eus podem enviar mensagens para os dois sentidos no tempo.
No entanto, com o passar do tempo, Kato (aquele que descobriu a Time TV) passa a ficar cada vez menos entusiasmado.
Ele deixa claro que se opõe ao futuro ditando as ações do presente, e você acaba descobrindo por que ele se sente assim com base em como tal coisa o escravizou ao longo de sua vida – por exemplo, ele acreditava nas profecias de Nostradamus de que o mundo acabaria em 1999 e nada ocorreu. Assim como a profecia Maia de 2012.
Ao longo da vida, Kato tornou-se um peão passivo em previsões desse tipo e até de travessuras de amigos. Em muitos momentos Kato se vê forçado pelo grupo de amigos a se jogar cegamente na vontade do que já está supostamente determinado a acontecer.
Dessa maneira, Dois Minutos Além do Infinito aborda a natureza da profecia autorrealizável quando se trata desses tipos de loops de tempo. Existem alguns momentos no filme em que os personagens fazem as coisas não porque querem, mas porque sabem que têm que fazer para não criarem um paradoxo – a ruptura do loop passado-presente-futuro.
Este é o aspecto principal dos loops temporais nas histórias sobre viagem no tempo. Em praticamente todas as representações fílmicas, são levantadas questões sobre a natureza do livre arbítrio versus o destino pré-determinado.
Mas, de longe, a parte mais impressionante em Dois Minutos Além do Infinito é como foi filmado. Cada intervalo de dois minutos entre eventos passados, presentes e futuros transcorre de fato em dois minutos. Todo o filme foi aparentemente feito em uma tomada contínua. Não há cortes e, em nenhum momento, houve como a equipe cortar enquanto fazia com que parecesse uma única tomada.
Tudo foi perfeitamente organizado, especialmente porque o uso da Time TV pelo grupo fica cada vez mais elaborado. Mesmo que o espectador não consiga entender como tudo está funcionando, as imagens e a simples encenação transmitem bem o suficiente para que possamos acompanhar. Há momentos em que os personagens são posicionados literalmente entre eventos passados e futuros conforme ese desenrolam nas duas telas colocadas uma diante da outra.
Ao final, a grande lição moral do filme é a quebra da ordem dos loops criados pelas profecias autorrealizáveis criada por percepções errôneas. Muitas vezes criadas pelos nossos interesses mais mesquinhos e individualistas: acreditamos em falsas profecias e passamos inconscientemente a agir para tentar nos encaixar num suposto futuro.
É aquilo que o escritor Isaac Asimov chamava de “psico-história”.
Ficha Técnica |
Título: Dois Minutos Além do Infinito |
Diretor: Junta Yamaguchi |
Roteiro: Makoto Ueda |
Elenco: Kazunari Tosa, Riko Fujitani, Gôta Ishida, Aki Asakura |
Produção: Arts Council Tokyo, Europe Kikaku |
Distribuição: HBO Max |
Ano: 2020 |
País: EUA |