quinta-feira, fevereiro 16, 2012

O Sono da Ciência no filme "Ladrão de Sonhos"

“Ladrão de Sonhos” (La Cité dês Enfants Perdus, 1995) é um dos poucos filmes a representar o cientista longe dos clichês do “louco” ou do “diabólico”, condenado à punição por tentar se equiparar a Deus. A dupla de diretores Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet ("O Fabuloso Destino de Amelie Poulain", 2001) cria uma estranha comédia de humor negro onde o cientista é retratado como um Demiurgo: através de uma Ciência prometéica, cria um cosmos corrompido onde o sono não tem sonhos. Por isso, ele terá que raptar crianças para extrair delas as imagens dos sonhos e trazer algum élan para um mundo sem vida. 

Na história do cinema há uma longa tradição em representar “cientistas” (sábios, gênios, magos, alquimistas, mágicos ou o cientista propriamente dito) como personagens enlouquecidos, estranhos, sociopatas, manipuladores ou simplesmente amorais e anti-éticos. De qualquer forma, todos eles são punidos ou por ultrapassarem os limites estabelecidos pela moral da civilização ou por tentarem se equiparar a Deus. Exemplos não faltam através dos mais diversos gêneros: “Frankenstein”(1931), “O Cérebro Que Não Queria Morrer” (The Brain That Wouldn’t Die, 1962), “O Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993), “A Ilha do Dr. Moreau” (The Island of Dr. Moreau, 1996) etc. 

Mas poucos filmes apresentam estes personagens como “Demiurgo” (para Platão era aquele que modela a matéria caótica e para o Gnosticismo o criador do Mundo Inferior onde o homem está aprisionado ), isto é, não mais como personagens puníveis moralmente por tentarem se equiparar a Deus, mas como artífices que fracassam pela presença do Mal nas suas criações. 

Essa elaboração do personagem do cientista no cinema como um Demiurgo tem suas origens em narrativas míticas das escrituras gnósticas: o Demiurgo como uma forma híbrida de consciência emanada dos planos superiores, criadora do cosmos como uma cópia imperfeita de Planos Superiores e essencialmente corrompida. Inebriado pelo Poder, julga ser a única divindade do Universo porque esqueceu as suas origens. Sabendo que o seu cosmos é uma criação física imperfeita, necessita da fagulha de Luz humana para pô-lo em funcionamento. Por isso, mantém a humanidade prisioneira através do sono. 

Cristoff, o poderoso diretor de um gigantesco reality show que aprisiona o protagonista no filme “Show de Truman” (The Truman Show, 1998) é um exemplo de filme que apresenta uma experiência televisiva por uma perspectiva simbólica do Demiurgo. 

O filme “Ladrão de Sonhos” (La Cité dês Enfants Perdus, 1995) da dupla Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet (“O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”, 2001) é um outro exemplo. Como veremos, o filme praticamente segue a descrição que fizemos acima sobre o personagem gnóstico do Demiurgo.

Trata-se de uma narrativa claramente baseada em antigas cantigas de ninar, porém com um olhar pós-industrial: alguma coisa entre a estética de Tim Burton e os planos de câmera delirantes de Terry Gilliam. Uma produção basicamente analógica com poucas CGI, com gigantescos cenários e navios puxados por guindastes em uma Paris surreal banhada por um mar esverdeado, lembrando muito a animação “As Bicicletas de Belleville” (2003). Toda a atmosfera do filme é dominada por um colorido abrasivo, criando uma espécie de filme “noir” colorido. Para incrementar o clima de pesadelo e bizarrice, os figurinos foram assinados pelo estilista Jean-Paul Gaultier. 

O sucesso anterior da surreal comédia “Delicatessen” (1991) permitiu que Caro e Jeunet realizassem o sonho de filmar o roteiro de “La Cité dês Enfants Perdus” escrito há 14 anos. O filme custou 14 milhões de dólares, o mais caro a sair da França na época. 

A estória narra a jornada de um marinheiro ex-caçador de baleias chamado One que tem o seu pequeno irmão sequestrado por um estranho grupo chamado de “Ciclopes” a mando de um cientista maluco chamando Krank. Este cientista envelhece tristemente em uma torre no meio do mar na companhia de uma estranha trupe composta de diversos clones de outro cientista maluco desaparecido. São produtos de experiências genéticas mal sucedidas, juntamente com uma anã e um estranho cérebro esverdeado que vive dentro de um tanque com água e se comunica por meio de alto falantes, alem de sofrer terríveis crises de enxaquecas. 

Krank arregimenta os Ciclopes (uma espécie de estranho grupo fundamentalista religioso) para sequestrar crianças menores de cinco anos com um diabólico propósito: através de uma estranha máquina ele rouba os sonhos, tentando absorver as imagens mentais produzidas pelos pequenos para poder também experimentar sonhos. Incapaz de sonhar, Krank envelhece rapidamente, o que torna sua presença ainda mais assustadora para as crianças confinadas: elas somente conseguem ter pesadelos, tornando o experimento de Krank um fracasso ao longo do filme. 

Criação e Queda 

Em entrevista sobre o filme, Marc Caro afirmou que os sonhos na narrativa representam uma inocência inatingível: “As crianças são um símbolo de inocência no filme. E você mantém sua inocência se você sonha” (Veja “The City of Lost Children – na interview with Jean-Pierre Jeunet and Marc Caro”). 

O mito da Inocência relaciona-se diretamente com o mito gnóstico da Queda. Diferente da narrativa mítica do Gênesis bíblico canônico da Criação/Queda motivada pelo Pecado e a destruição do Paraíso original, a concepção gnóstica identifica a Queda com o próprio ato da Criação: no princípio não era o Verbo, mas a Crise. Portanto a Inocência não está relacionada com a nostalgia de um estado puro anterior ao Pecado, mas com a Luz ou Energia Vital presente no interior do homem que se manifesta, entre outras formas, através dos sonhos e fantasias. E é este élan que o Demiurgo busca para por em movimento um cosmos construído a partir de formas vazias. 

Krank tenta capturar as imagens mentais dos sonhos infantis (a “inocência”) para que ele próprio não pereça. Por isso, criou um cosmos (a Paris surreal e pós-industrial construída pelos incríveis cenários) onde funciona no subterrâneo o esquema de rapto de crianças. 

O humor negro da narrativa explicita um universo onde as crianças são exploradas por duas megeras xifópagas que as obrigam a cometerem furtos. São crianças que vão se tornando brutalizadas e até mais adultas que o próprio marinheiro One. Será com o pequeno grupo de ladrõezinhos que ele irá se aliar para tentar resgatar o seu irmão preso na torre de Krank. No sonho reside o último refúgio da “inocência”, isto é, a fantasia de que é possível um mundo diferente daquele pesadelo. 

A Doença do Sono 

O simbolismo central do filme é, claramente, os sonhos e o sono. Enquanto as crianças têm sonhos em seu sono, o sono do Demiurgo Krank é sem sonhos. Ele é apenas capaz de manipular formas (a Ciência), mas incapaz de injetar élan ou vitalidade nas suas criações. Por isso tudo tende ao envelhecimento, corrupção e morte. Caro e Jeunet criam uma oposição entre a parafernália científica pós-industrial dos Ciclopes/cientista maluco (eles usam esquisitos dispositivos óticos e auditivos para localizar crianças) e as fantasias inocentes das crianças que tentam resistir a um mundo brutalizado. 

Mas a dupla de diretores vai ainda mais longe em sua crítica à Ciência prometéica ao mostrar os seis clones resultantes das experiências genéticas como vítimas de uma estranha “doença do sono”. Aqui o sono ganha um novo significado: é o esquecimento. Eles vivem ingenuamente felizes naquela torre perdida no meio do mar, ocupados em seus afazeres diários e, de repente, caem no sono. Eles esqueceram quem é matriz que deu origem às cópias e vivem naquela torre sem saber o propósito das conspirações de Krank. 

O “sono” é uma das formas que o Demiurgo mantém os humanos no esquecimento através das ilusões do mundo: afazeres, problemas, dilemas tornando a humanidade fora de foco por meio de uma estratégia diversionista. Ou, como diria Maquiavel, “dividir para reinar”. 

Portanto a grande virtude do filme “Ladrão de Sonhos” é abordar o tema do “cientista maluco” pelo mito gnóstico do Demiurgo passando longe da condenação clichê pela ousadia do homem querer se equiparar a Deus através da Ciência. O Projeto de Krank é o do próprio pesadelo da Ciência prometeica onde o Mal já está no interior da própria Criação: lidar com a matéria cria a inebriante sensação de Poder Divino fazendo-o cair no sono do esquecimento, tornando-se vítima de seu próprio projeto. 

A sequência final onde vemos o cientista que deu origem aos seis clones amarrado à torre no meio do mar esverdeado faz lembrar do drama de Ulisses na “Odisséia” de Homero: Ulisses deixa-se amarrar ao mastro principal da sua nau enquanto seus remadores têm seus ouvidos tampados com cera para que não ouçam o canto das sereias que atraem os marinheiros levando as embarcações ao encontro dos rochedos. Enquanto seus remadores não sabem de que é possível uma outra realidade, o capitão Ulisses amarra-se à sua própria obra ou missão. Na visão de Adorno e Horkheimer esse seria o destino de uma civilização prometéica onde a Ciência transformar-se-ia em Mito e dominação (veja ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997). 

Ficha Técnica 


  • Título: Ladrão de Sonhos (La Cité dês Enfants Perdus) 
  • Diretor: Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet 
  • Roteiro: Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet 
  • Elenco: Ron Pearlman, Daniel Emiffork, Dominique Pinon, Judith Vittet, Jean Claude Dreyfus
  • Produção: Club d’Investissiment Média, Eurimages, Studio Image 
  • Distribuição: Lumière Home Video 
  • Ano: 1995 
  • País: França, Alemanha e Espanha

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