No terror “Sorria” (Smile, 2022) há duas linhas de diálogo que são chaves de compreensão do filme: ““Faça uma cara feliz. Você fica mais bonita quando sorri” e na cena clássica da protagonista diante do monstro: “por que você está fazendo isso comigo?” “Porque sua mente é tão convidativa!”, responde a entidade com um sorriso psicótico. Dessa maneira, “Sorria” incorpora as origens antropológica ambíguas do riso: de um lado como inversão e desestabilização diante da positividade hipócrita da sociedade; e do outro, as origens sardônicas do riso na violência e crueldade: o riso como fenômeno demoníaco. Mas numa sociedade mediada pela Internet e redes sociais, o riso maligno só pode ser infeccioso e viral, cuja força está no trauma, culpa e ressentimento.
O riso é considerado o nosso mais importante sinal de amizade. Porém, sua origem é antropologicamente ambígua: de um lado, as origens violentas e cruéis com o esgar agressivo dos dentes, seja como forma de impor a posição hierárquica em uma comunidade, seja como forma de defesa diante de uma ameaça iminente. E do outro, a risada como um meio mágico para negar a morte, invertendo-a em seu contrário: a vida.
Analisando os contos folclóricos, o estruturalista russo Vladimir Propp lembrava a origem da expressão “riso sardônico”: entre a antiquíssima população da Sardenha, entre os sardos ou sardônicos vigorava o hábito de matar os idosos, na medida em que se tornavam improdutivos ou um fardo econômico para a sociedade. Enquanto matavam os velhos, riam sonoramente. Daí o vínculo entre o riso e a crueldade nessa expressão.
Porém, como observava Propp, mesmo nesse episódio está presente o significado ambíguo do riso: a risada como crueldade e, ao mesmo tempo, um meio para anular a morte – leia o capítulo “O Riso” em CANEVACCI, Massimo. A Antropologia do Cinema, Brasiliense, 1985.
Mas rimos hoje de uma forma diversa do que outrora se ria. O riso só pode ter uma definição histórica, hoje sobre-determinado pela indústria do entretenimento e pelo mundo do trabalho marcado pela precarização e a ansiedade psíquica. Isso significa que hoje o riso se tornou um fenômeno de cultura não-reflexiva: não sorrimos mais como demonstração de amizade, crueldade ou inversão mágica da morte – hoje nosso esgar é ansioso, em busca de aprovação nas selfs das redes sociais, em busca de likes ou mesmo aprovação por notas altas dadas por um usuário após ter o serviço prestado, por exemplo, por um motorista de aplicativo.
“Sorria, você está sendo filmado” virou o mote de uma situação em que sorrimos quando não há nada para se rir. Se não, por que a recorrência recente de filmes sobre risos ansiosos, malignos e demoníacos? It, Coringa, Terrifier etc.
E o mais recente, Sorria (Smile, 2022), filme de terror que marca a estreia em longas de Parker Finn, baseado no seu próprio curta-metragem de 2020 Laura Hasn’t Slept. O filme está repleto de sorrisos engessados e protocolares: sorrisos nas embalagens de brinquedos, de familiares em uma festa de aniversário, em uma personagem fútil que vive numa bolha de consumo como “feliz” dona de casa etc.
Sempre sorrisos ansiosos, daqueles que buscam desesperadamente a aprovação, seja da mercadoria em busca da venda, ou o sorriso artificial que busca a aceitação de uma performance.
Sorrisos de uma cultura não-reflexiva, isto é, inconsciente dessas origens antropológicas e ritualizada do passado. Mas o reprimido sempre retorna: e na cinematografia, como violência, terror, ou no aspecto mais cruel do riso sardônico.
Não é por menos que Sorria segue uma narrativa familiar vista em filmes como Corrente do Mal (2014) e O Grito (2020) – a ideia do trauma e do Mal como fenômenos infecciosos, virais. Afinal, o viral é a grande metáfora dos nossos tempos da busca por sociabilidade e gratificação por redes sociais. O sorriso como um fenômeno potencialmente viral que irradiaria positividade, bondade, amizade etc.
O custo psíquico de toda essa ansiedade coletiva é notório, com a escalada do consumo de anti-depressivos e ansiolíticos numa sociedade tão precarizada que a busca da aprovação de usuários e consumidores passa a ser questão de sobrevivência.
São as condições psíquicas do resgate das formas mais regressivas do riso: o riso como destruidor, suspeito, fomentador da desordem e demoníaco, como nos séculos III e IV os romanos passaram a caracterizá-lo. Até chegar o Catolicismo e definitivamente associar o riso simultaneamente ao demoníaco e ao corporal. A irrupção de uma gargalhada proveniente das vísceras como a própria manifestação da voz do demônio. Por isso, Cristo jamais sorri.
O Filme
Sorria acompanha a Dra.Rose Cotter (Sosie Bacon), que trabalha num pronto-socorro psiquiátrico em um movimentado hospital. Ela faz longos plantões, até conhecer brevemente Laura (Caitlin Stasey), uma estudante de doutorado que é trazida para a ala de emergência psiquiátrica onde Rose trabalha, tremendo e apavorada de que algo a esteja perseguindo, querendo matá-la. “Parece gente, mas não é uma pessoa”, explica Laura, dizendo que essa coisa a segue desde que ela testemunhou um de seus professores se matar espancando a si mesmo com um martelo, quatro dias antes. No final da cena de diálogo estendida que abre o filme, de repente Laura se vira para Rose com um sorriso psicótico no rosto e começa a cortar sua própria garganta.
Isso perturbaria qualquer um, mas incomoda especialmente Rose, já que convive com um profundo trauma da infância: o suicídio da sua mãe. Esse trauma persistente, e os medos e estigmas que a cercam, formam o fio temático mais instigante do filme: Rose começa a ser perseguida por alucinações de uma entidade com o mesmo sorriso psicótico. Torna-se instável, quase no limite de um colapso nervoso. O marido de Rose, Trevor (Jessie T. Usher), admite, preocupado com ela, fez pesquisas na Internet sobre doenças mentais hereditárias e termos duros como “malucos”, “loucos” e “casos de cabeça”. Rose sente-se cada vez mais isolada: todos acham que ela replica os mesmos problemas mentais da mãe.
A ideia de que estaria sendo perseguida pela mesma entidade que matou Laura não passaria de alucinações decorrentes da doença mental hereditária, parece incomodar Rose. Pelo menos no início, essa possibilidade incomoda muito mais do que a ideia de estar na verdade amaldiçoada por alguma entidade sobrenatural.
As pessoas ao redor de Rose, incluindo Trevor, sua terapeuta Dra. Northcott (Robin Weigert), seu chefe Dr. Desai (Kal Penn), e sua irmã Holly (Gillian Zinzer), certamente parecem pensar que o problema é mais neuroquímico do que sobrenatural – até que seja tarde demais.
O único que acredita em Rose é seu ex-namorado, Joel (Kyle Gallner), um policial que foi designado para o caso de Laura. Sua tentativa de reencontro com Rose abre a porta para o elemento sobrenatural do filme, que dominará grande parte da narrativa.
O enredo do filme segue muitos dos tropos típicos de um mistério de terror sobrenatural, começando por uma rápida pesquisa no Google (o equivalente na era da Internet daquelas clássicas cenas de pesquisas em velhas bibliotecas) até uma entrevista pessoal com um traumatizado sobrevivente da perseguição da entidade maligna.
Esta entidade malévola realmente existe e o tempo corre contra Rose: após o testemunho de um suicídio, a vítima tem em média uma semana de vida. Até ser incorporada pela entidade e se matar também com o sorriso psicótico no rosto, diante dos olhos de uma nova vítima que perpetuará a corrente maligna de suicídios e traumas.
O Riso e o Mal viral
O filme Sorria aborda dois temas: primeiro, a representação pós-moderna do Mal como viral e infeccioso. E, segundo, a condição do sorriso numa sociedade que quer criar uma imagem para si mesma de positividade transbordante. “Faça uma cara feliz. Você fica mais bonita quando sorri”, como a certa altura nos informa uma linha de diálogo.
Muito inspirado no filme Corrente do Mal (It Follows, 2014), Sorria dá continuidade a essa nova sensibilidade do Mal. Bem diferente das representações clássicas, bem determinadas num monstro (Drácula, O Monstro da Lagoa Negra etc.), num cientista louco (Dr. Frankenstein ou Rowang, o cientista do filme Metrópolis) ou ainda um assassino serial do tipo Jack, O Estripador. O máximo de complexidade dessas representações do Mal estava nas divisões de personalidade, como em Dr Jeckyll and Mr Hyde.
Agora o Mal torna-se exponencial, viral. Se em Corrente do Mal o sexo é o canal de disseminação, em Sorria esse papel é desempenhado pelo trauma psíquico. A certa altura, Rose faz a clássica pergunta diante do pavor de ver diante de si a entidade: “por que você está fazendo isso comigo?”... “Porque sua mente é tão convidativa!”, responde a monstruosa entidade com o seu sorriso psicótico.
Essa é a nova sensibilidade do Mal: o viral é o paradigma explicativo de uma realidade mediada pelos meios de comunicação e dispositivos móveis.
Além disso, em Sorria estão presentes as ambíguas origens antropológicas do riso. Está presente o componente cínico e desestabilizador do riso, como no rosto do Coringa: o riso sardônico do Mal como uma espécie de sabotador da positividade hipócrita – é o elemento de inversão crítica, assim como o riso diante da morte.
Mas, acompanhando os arquétipos do imaginário judaico-cristão que domina o gênero terror (pelo menos na matriz hollywoodiana), o riso é associado à própria manifestação do demoníaco, em particular, e do Mal em geral. Por isso, neutraliza qualquer potencialidade crítica do riso como denúncia da positividade hipócrita do mundo atual. Como manifestação demoníaca, o riso se funde com a culpa e ressentimento.
Do riso hipócrita da sociedade de consumo, o filme acaba derivando para o riso ressentido e culpado. As brechas abertas para a entrada do Mal.
Quem sabe, assim como nas redes sociais.
Ficha Técnica |
Título: Sorria |
Diretor: Parker Finn |
Roteiro: Parkr Fin |
Elenco: Sosie Bacon, Jessie T. Usher, Kyle Gallner, Robin Weigert, Caitlin Stasey, Kal Penn |
Produção: Paramount Players, Temple Hill Entertainment |
Distribuição: Paramount Pictures |
Ano: 2022 |
País: EUA |