Nesse momento de Copa do Mundo no Catar, grande mídia e mercado publicitário estão fazendo a cobertura esportiva e veiculando comerciais na TV dentro do espírito “o verde-amarelo é de todos”. Supostamente tentando recuperar as cores e símbolos nacionais apropriados pela estratégia de comunicação “alt-right”. Que veste grupos que agora bloqueiam e fazem atentados em estradas. Mas será que tentam recuperar mesmo? Para eles, a torcida brasileira unida na Copa por si só resolveria tudo: uma simples transposição dos símbolos nacionais do extremismo político para o esporte, apenas com os sinais trocados. Porém, essa preguiçosa contraofensiva semiótica é insuficiente frente à sofisticada estratégia de dessimbolização da extrema-direita internacional. Como demonstrado na Finlândia quando o extremismo se apoderou do símbolo nacional do leão e da cruz. Ou será que grande mídia não quer mesmo é se livrar do ativo sociopolítico que representa o “Exército Psíquico de Reserva”. Que poderá ser útil no futuro?
Depois dos anos de jornalismo de guerra, no qual a grande mídia deu visibilidade e empoderou a extrema-direita vestida nas ruas de verde-amarelo, agora vê na Copa do Mundo (principalmente depois da boa estreia da seleção brasileira) a oportunidade de “resgatar” as cores nacionais abduzidas pelas estratégias alt-right de comunicação.
Não só a grande mídia. Também a própria CBF (entidade privada que tolerou a instrumentalização política da sua própria camiseta – “tolerou” porque participou também ativamente da guerra híbrida – clique aqui) e o mercado publicitário tentam trazer de volta o verde-amarelo como “as cores de todos”, símbolo da “união” e assim por diante.
O irônico é que a grande mídia, que em todo governo Bolsonaro procurou fazer uma política de controle de danos (mostrar-se como isenta e que não tinha nada a ver com o governo que ajudou a empossar), opera o mesmo mecanismo semiótico da extrema direita: reavivar o nacionalismo clássico como discurso ideológico de ocultação da luta de classes – se a extrema-direita usa os símbolos nacionais para ressuscitar o nacionalismo nostálgico da ditadura militar dos anos 1970, agora a grande mídia tenta reativar o nacionalismo do neoliberalismo progressista – sob a aparência jovem e progressista do identitarismo, cumpre a mesma função ideológica de todo nacionalismo: ocultar as desigualdades socioeconômicas como resultantes da dinâmica da luta de classes.
Dinâmica que está nos dois lados: de um lado, ricos empresários que bancam manifestações do ativismo branco, de classe média alta, que busca a manutenção supremacia de classe dos “cidadãos de bem” armados; e do outro, o nacionalismo neoliberal que pretende emparedar o governo eleito sob a chantagem da “crise fiscal” – o mercado financeiro votando contra qualquer política de Estado que pretende redistribuir renda através de políticas sociais.
Como diz o megaespeculador global George Soros, “o mercado vota todo dia!”.
Como este humilde blogueiro vem insistindo nas últimas postagens, o silêncio de Bolsonaro, o açodamento do vice general Mourão e a leniência das instituições que NÃO estão funcionando (p.ex. TCU dá inacreditáveis 15 dias para PRF “explicar suposta omissão em ações contra bloqueios”) indicam a estratégia de sitiar o governo eleito: manter o “Exército Psíquico de Reserva” sempre aquecido para chantagear um governo que ainda nem foi empossado – o teatro do fantasma do golpe militar antes de primeiro de janeiro.
E quem sabe no futuro, ser mais uma vez acionado. Dessa vez, para deixar as estradas e ocupar as ruas das grandes cidades para “tancredizar” Lula.
O que vemos nos vídeos publicitários e nas coberturas esportivas do jornalismo corporativo é um APARENTE esforço em recuperar as cores nacionais apropriadas pela extrema-direita. Aparente, porque do ponto de vista semiótico está tão leniente quanto a PRF nas estradas bloqueadas.
Semiótica preguiçosa
Se não vejamos. O que vemos nas telas de TV são as mesmas camisetas da seleção, as mesmas bandeiras, vinhetas e elementos gráficos em verde-amarelo, além de mostrar torcedores pulando e gritando vestindo as “canarinhas”. Tirando a trilha musical e áudio, poderíamos facilmente confundi-los com “patriotas” clamando por liberdade, pátria e família. Em outras palavras, a Gestalt é a mesma!
Se realmente a grande mídia e mercado publicitário estivessem firmemente determinados em resgatar as cores nacionais, não se limitariam a essa preguiçosa estratégia semiótica de apenas transferi-las do campo político extremista para o esporte, trocando apenas os sinais – da intolerância política tóxica à tolerância woke.
Sabemos que essa tendência crescente de apropriação de símbolos nacionais não se limita à extrema-direita brasileira. É uma sofisticada estratégia de comunicação mais ampla, internacional: criação de cismogêneses para dividir uma nação entre patriotas e seus inimigos. Por exemplo, o partido de extrema-direita alemão AfD (Alternativa para a Alemanha) apega-se também à bandeira nacional e acusa seus opositores de terem vergonha dos símbolos alemães.
Na Finlândia, a camisa estampada com o símbolo nacional (o leão e a cruz) ficou fortemente associada a grupos xenófobos. Porém, há uma preocupação real em reapropriação semiótica do simbolismo nacional: um escritório de design chegou a pedir sugestões para criar símbolos alternativos para que pessoas comuns não fossem confundidas com skinheads – clique aqui.
Ao contrário daqui, parece que os finlandeses sabem que os efeitos semióticos da apropriação de um símbolo nacional são muito mais profundos. E que uma mera troca de sinais (do extremismo para o liberal/progressista) não será suficiente.
Isso porque os países que deixaram os símbolos nacionais caírem nas mãos dos extremistas, inadvertidamente também caíram numa sofistica cilada semiótica: a dessimbolização através da regressão indicial. Seja a bandeira nacional ou a camiseta da seleção brasileira de futebol, utilizados como adereços de performance política (manifestação, protestos, ações diretas etc.) deixando de ser símbolos para serem reduzidos à condição indicial.
Regressão indicial
Aqui precisamos fazer uma pequena parada na Teoria Semiótica. O Índice é o signo mais primitivo por estar quase que colado ao objeto de referência, confundindo-se o signo com o próprio objeto. Os índices constituem o vestígio sensível de um fenômeno, como por exemplo pegadas na areia de uma praia ou as cinzas de uma fogueira.
O Índice é um signo que aponta para si mesmo. “O corte semiótico (a diferença entre o signo e a coisa, mapa e território) não é evidente ou ainda não se encontra estabilizado: o índice é “a fragment torn away from the object” (Peirce); sua referência é, portanto, autorreferencial, a coisa é remetida ou se refere, a ela própria, sem sair do lugar, circularmente.”
Já os símbolos são os signos mais abstratos e distantes do objeto que representa. Há um corte semiótico entre o signo e a coisa. Os símbolos criam uma forma de relacionamento com o mundo, digital, descontínua, abstrata. É a manipulação de significantes sem a concreção analógica dos elementos da realidade. A evolução dos índices para os símbolos é a própria evolução do particular ao universal.
Quando uma bandeira se torna um símbolo nacional, almeja integrar o particular no universal – uma ideia abstrata de nacionalidade, união, consenso etc. A bandeira não é um vestígio sensível, mas uma representação complexa de unidade em cores e elementos gráficos.
A regressão estética alt-right reside em dessimbolizar a bandeira, tornando-a um vestígio de um fenômeno político visível e sensível: das bandeiras chamuscadas, queimadas os esgarçadas presentes nas fotos das coberturas das “Jornadas de Junho” de 2013 ao “uniforme” de militantes que bloqueiam estradas ou clamam por intervenção militar em frente aos quartéis.
Como índice regride do universal ao particular. Ironicamente, os “patriotas” verde-amarelos inviabilizam a própria ideia de “Nação” que reivindicam: camisetas da CBF, a bandeira nacional e o verde-amarelo viram relação, contato, não mais conteúdo ou representação.
Por isso a regressão indicial é contagiosa, viral: assim como o gesto, o tom da voz ou o carisma, os índices apelam para a relação imediata, a dimensão fática, a função de contato em si mesma. Isto é, sem nenhum propósito simbólico universal. Visa apenas o aqui e agora, a performance.
Ao contrário do símbolo que exige o ritual, a cerimônia ou a liturgia, o índice visa o imediaticidade, o profano, a carnavalização.
A simples união das torcidas comemorando as eventuais vitórias da seleção na Copa do Mundo não tem o poder de ressimbolização. Como primeiro passo, seria necessária uma intervenção semiótica. Algo assim como o imaginado pelo escritório de design finlandês.
Repare, caro leitor, que das quatro cores da bandeira do Brasil (verde, amarelo, azul e branco) a estratégia semiótica de regressão indicial privilegiou o verde e amarelo. Sendo a dominante o amarelo, não apenas como saturação, mas principalmente matiz.
O amarelo tem uma característica de ambiguidade que, sabemos, é o fator mais importante para a viralização – clique aqui. Segundo a psicóloga alemã Eva Heller no seu livro “Psicologia das Cores – Como as cores afetam a moção e a razão” (Olhares, 2021), o amarelo é a cor com significados mais contraditórios e ambíguos: otimismo e ao mesmo tempo ciúme. É a cor da diversão e entendimento, mas por outro lado é também da traição. Vai do amarelo ouro ao amarelo enxofre, do nobre ao malcheiroso e demoníaco.
Superando a cor verde, igualmente ambígua: fertilidade e esperança, mas também do venenoso.
Se realmente grande mídia e mercado publicitário estivessem determinados a reverter essa regressão estética (transformar o verde-amarelo “nas cores de todos”) deveria mudar a Gestalt.
Por exemplo, do bicolor verde-amarelo (presente em dez de cada dez vídeos publicitários) para o tricolor: verde-amarelo-azul. Claro, com o binômio verde-amarelo como dominante, mas com a presença de uma faixa mais estreita ou detalhes em azul.
Em outras palavras, alterar a mancha gráfica, a identidade visual normalizada pelas apropriações extremistas dos símbolos nacionais.
Porém, às vésperas do governo Lula, grande mídia e mercados publicitários (participantes do consórcio PMiG – Partido Militar Golpista – Judiciário e a Banca) querem mesmo é manter aquecido o Exército Psíquico de Reserva em verde-amarelo: um ativo sociopolítico que pode ser ativado a qualquer momento, caso o próximo governo se indisponha demais contra a chantagem dos “mercados”.
Certamente essa é a motivação política mais profunda de toda essa preguiçosa estratégica semiótica.