Bolsa derrete! Dólar sobe! De onde vai sair o dinheiro da PEC da Transição?”. Grande mídia mostra as garras e repete um velho script, vinte anos depois da primeira posse de Lula. Afinal, por que todo “freak out” depois de Lula ter sido arrastado para o segundo turno para que sua vitória tivesse um alto custo semiótico (como acompanhamos nesse momento)? Não deu tudo certo? Depois de dois mandatos, ele não seria o presidente mais previsível dos últimos anos? A verdade está em outra cena, muito além da espuma midiática. “Teto de Gastos”, “Responsabilidade Fiscal” ou as pragas do Egito das bolsas derretendo, dólar e inflação subindo são apenas racionalizações de algum imperativo mais estrutural. Imperativo que envolve a sinergia de dois fatores: o “Grau Zero da Política” e o chamado “Grande Reset do Capitalismo”.
Na entrevista do programa “Roda Viva” da TV Cultura/SP, de 19/09, Steven Levitsky, autor do livro “Como as Democracias Morrem”, o cientista político foi profético ao dizer que a melhor maneira para se evitar uma crise (para começar, o questionamento do processo eleitoral) na democracia brasileira seria “bater Bolsonaro no primeiro turno com uma lavada de 62 a 38, para que ninguém questionasse a derrota”. Mais enfático, continuou: “se as pessoas se derem ao luxo de votarem em seus terceiros candidatos favoritos será mais fácil legitimar a legitimidade do processo”.
Por isso, um sistema de freios e contrapesos foi colocado em ação para evitar, de qualquer maneira, que Lula ganhasse no primeiro turno – além do Judiciário pusilânime e leniente, deixando Bolsonaro atropelar a legislação eleitoral com PEC e benesses sociais de última hora (estourado o teto de gastos sob o silêncio da Faria Lima), oito estranhas anomalias marcaram o processo eleitoral – clique aqui.
Para, com sucesso, levar o pleito ao segundo turno cujo resultado foi o esperado: a vitória de Lula sob um altíssimo custo semiótico. O principal: a necessidade de fazer uma frente tão ampla que agora, os mesmos integrantes dessa frente, tentam enquadrá-lo sob a chantagem econômica – como, por ex., a carta aberta de Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan a Lula, criticando as declarações do presidente eleito e ameaçando-o com as pragas do Egito caso não respeite a responsabilidade fiscal e continue a fazer críticas à banca financeira.
Steven Levitsky tinha razão: sem o capital político que daria uma vitória acachapante, agora, por todos os lados, tentam cercar, enquadrar desgastar o governo a 40 dias da posse.
A vitória de Lula seria até aceita, mas sob um desgastante custo semiótico – manifestantes alucinados em verde-amarelo, com apoio financeiro e logístico empresarial, fazendo vigílias diante de quartéis e comandos das Forças Armadas pelo País questionando o resultando e clamando por golpe; um breguíssimo evento chamado “Lide Brazil Conference” em Nova York (evento com a cara do banqueteiro João Doria Jr., dono da Lide – só faltava ter cobertura “jornalística” de Amaury Júnior), reunindo o Judiciário que mandou prender Lula no passado, com o ministro Dia Toffoli mandando um recado a Lula: deixe as Forças Armadas em paz, sem revanchismos; e a grande mídia mostrando suas garras ao repercutir as mesas de operações da Faria Lima.
Hoje repete-se o mesmo script da primeira vitória de Lula, em 2002, repercutido pela mídia corporativa: “Dólar sobe!”, “Analistas apostam em dólar a R$ 3 em dezembro” e as mesmas exigências ameaçadoras de que Lula deveria sinalizar com o compromisso pela “austeridade fiscal”.
Desde então, Lula entregou oito anos de governo com superavit fiscal, dívida pública de 60 a 40% do PIB e taxas médias de crescimento em torno de 4%. Enquanto, nos quatro anos de Bolsonaro o teto de gastos foi furado em R$795 bi, sob o silêncio do mercado financeiro, extasiado com as promessas de privatizações do ministro Paulo Guedes.
Depois dos quatro anos em silêncio assistindo à esbórnia fiscal, a Banca (e os sabujos do jornalismo corporativo) agora voltaram a se lembrar da necessidade do “teto de gastos” e “responsabilidade fiscal”.
Talvez, algum fenômeno de personalidade dissociativa, assim como o procurador-geral da República, Augusto Aras, que um mês depois descobriu que o eleitoreiro crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil é inconstitucional.
Assim como o ministro Alexandre de Moraes, numa “Síndrome de Piu-Piu”, depois de anos, descobre “indícios” de que há apoio empresarial nas manifestações golpistas... “Eu acho que vi um gatinho!”, como descobria tardiamente o pequeno Piu-Piu, personagem da turma do Perna Longa...
Em tudo isso haveria uma aparente irracionalidade ou má vontade da Banca e da grande mídia para um presidente cujo ideário, propostas e agenda são previsíveis, depois de governar o País por dois mandatos.
Então, porque todos esses nervos à flor da pele e saltos da cadeira a cada declaração de Lula, até aqui em agenda internacional? A propósito, é visível a satisfação da grande mídia ao entrevistar Alckmin (principalmente da jornalista Miriam Leitão, alegre ao conseguir entrevistá-lo em meio a congestionada agenda do Gabinete de Transição). Parece que têm diante de si um Primeiro-Ministro, enquanto o Chefe de Estado Lula está no Exterior... afinal, Alckmin é o sonho de consumo como presidente para a Faria Lima...
Por que repetir o mesmo script de chantagem em terrorismo econômico, vinte anos depois da primeira posse de Lula?
Este humilde blogueiro acredita que a verdade, como sempre, a verdade está em outra cena. “Teto de Gastos”, “Responsabilidade Fiscal” ou as pragas do Egito das bolsas derretendo, dólar e inflação subindo são apenas racionalizações de algum imperativo mais estrutural. O mesmo imperativo que derrubou Dilma da presidência e que assombrará qualquer governo à esquerda no espectro político que ganhe uma eleição.
Um imperativo que envolve a sinergia de dois fatores: o “Grau Zero da Política” e o chamado “Grande Reset do Capitalismo”.
Grau Zero da Política
Conceito do pensador francês Jean Baudrillard, para ele o sistema político teria perdido a sua transitividade com as bases sociais. Ele subsistiria apenas no campo midiático da simulação da vontade política das autoridades e políticos, das suas declarações, das suas “canetadas” em projetos e promulgação de leis, nas intrigas palacianas, nos boatos metodicamente “vazados” para as mídias. Diante do Capital, o sistema político subsistiria como mero gerenciador da manutenção macroeconômica, da gestão da dívida pública e das crises da máquina do Estado. Dito de outro modo, o Poder não mais produz a Política, ele apenas reproduz políticas econômicas e, principalmente, financeiras. Apenas gere a crise perene do endividamento – do qual a Banca financeira é o credor - Leia BAUDRILLARD, Jean. Partidos Comunistas - Paraísos artificiais da política, Rocco, 1983.
O principal sinal dessa intransitividade (autonomia relativa) do sistema político está na emergência dos “partidos-Estados” – ao invés de fundir com os interesses da sociedade, passam a se amalgamar com interesses do Estado e governos. Os partidos viram uma elite pública que passa a viver de cargos e privilégios do Estado.
Portanto chegamos ao “grau zero da política”: um sistema intransitivo definido não positivamente pelo seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema – a simulação das diferenças entre as diversas gradações do espectro político. Em outras palavras, a simulação da transitividade e diferenças político-ideológicas.
A ameaça simbólica de uma gestão de esquerda bem-sucedida
Com a agenda do Estado Mínimo e a intransitividade do sistema político, o sistema econômico (aqui pensado, principalmente, no sistema financeiro) torna-se também relativamente autônomo.
Sua relação com o sistema político que gravita em torno do Estado é dirigida por dois vetores: (a) pilhar (privatizações) e drenar os recursos sociais através da perene dívida pública – pulverizar o excedente social na espiral do financismo; (b) manter a simulação que oculta o grau zero da política. Em outras palavras, manter a miragem da democracia formal (de uma suposta disputa entre ideologias opostas) para dar uma aparência democrática na pilhagem do Estado e na gestão do endividamento público.
O que está por trás de todos esses nervos à flor da pele da Banca é uma possibilidade real e irônica: a ameaça que representa um governo bem-sucedido macroeconomicamente à esquerda, como foram os governos Lula: superavit fiscal, desenvolvimentismo, inclusão social e programas de assistência arrojados.
Todos sabem que Lula não é um “comunista”, “socialista” ou “de esquerda”. Ele simplesmente procura combater as mazelas sociais do hiperliberalismo enquanto gere as demandas macroeconômicas – a reprodução ótima do capitalismo.
É justamente por essa possibilidade que os “mercados” ficam nervosos, porque pode se desdobrar em dois problemas, um simbólico e outro sistêmico:
(a) Imperativo simbólico: um governo “de esquerda” bem-sucedido poderia colocar a nu a natureza simulatória do sistema político: o grau zero da política. Qual seria a diferença entre “esquerda” e “direita” se um governo “de esquerda” gerir de forma eficaz a reprodução do capitalismo? E se a sociedade descobrir de que nada existe por trás? E se o eleitor descobrir que por trás da representação democrática não existe produção (História, Revolução, Transformação, Rupturas etc.), mas apenas a reprodução ad eternum não só do jogo político (circularidade e autorreferência) como também reprodução da onisciente necessidade de reprodução macroeconômica do valor de troca?
Não é por menos que, diante da surpreendente boa gestão do Capitalismo feita por Lula, foi necessário impingir o rótulo da “corrupção” ao PT para simbolicamente simular uma distinção no sistema político: esquerda=corrupção; direita=legalidade. Assim por diante.
Tal niilismo político assusta a Banca: a ameaça de não mais contar com a miragem da democracia formal que encobre a tranquila gestão da crise: a pilhagem das privatizações e a drenagem da riqueza social pelo endividamento público.
(b) Ameaça sistêmica: também o sistema econômico joga com a estratégia de freios e contrapesos. O problema para a atual fase do Capitalismo (o financismo) é que ela é avessa ao desenvolvimentismo: depois dos sucessivos saltos mortais que teve que fazer para superar sua contradição estrutural (a lei da taxa de lucro decrescente – clique aqui), propor crescimento real de salários e benefícios sociais, pensar em que o Estado assuma o papel de indutor ao investimento da iniciativa privada e que a dívida pública tenha uma participação cada vez menor no PIB representaria um retrocesso.
Explicamos... para a atual fase do Capitalismo, o crescimento industrial e dos mercados nacionais nada significam, a não ser baixa taxa de mais-valia – hoje, a especulação financeira (a produção de valor sem lastro, ex-nihilo) é o principal drive do Capitalismo. Para manter esse sistema e superar as crises cíclicas, precisa pilhar a riqueza pública.
Portanto, a chantagem e terrorismo econômico são os freios e contrapesos ideais para tentar reprimir qualquer aventura desenvolvimentista. A atual agenda do “reset” do Capitalismo é cíclica: endividamento-Estado Mínimo-inflação-juros altos-rentismo. A sociedade imaginada pelo chamado “Grande Reset Global” é exclusivista e necropolítica – eliminação de grande contingente populacional que nem para ser explorado servirá.
O que Lula pretende é reviver é a política econômica anticíclica: desenvolvimentismo-inclusão-crescimento real dos rendimentos-diminuição da dívida pública.
Trocando em miúdos: Bacha, Fraga, Malan et caterva não estão buscando alguma racionalidade macroeconômica ou moralidade na gestão pública. Esses são álibis para outras intenções: salvaguardar a “festa da Democracia” (esconder para debaixo do tapete da simulação o “grau zero da política) e a exuberância irracional da produção de valor no financismo às expensas do sumidouro da riqueza social nas mãos dos operadores da Banca.