O filme “O Enfermeiro da Noite” (The Good Nurse, 2022) é mais um filme de uma recorrente abordagem no cinema do Mal como viral e exponencial. Não pela monstruosidade do Mal, mas como efeito colateral de um sistema intrinsecamente corrompido. No caso, o sistema hospitalar dos EUA, visto pelo olhar de um diretor que veio de um país (Dinamarca) com assistência médica púbica e a saúde universalizada: ao contrário, nos EUA a saúde tornou-se um negócio centrado em ter pacientes, não em ajudá-los. Contando com o silêncio de um sistema privado temeroso por ações judiciais, um enfermeiro serial killer deixa um rastro de dezenas de pacientes mortos por envenenamento em diversos hospitais nos quais trabalhou. Baseado no caso real do assassino serial considerado o mais mortal da história do país.
Em postagem anterior em que analisávamos o filme Speak No Evil discutíamos como a sociedade ocidental, baseada na profilaxia da razão, do progresso e da técnica que geram um princípio de positividade e moralidade, está totalmente desarmada para enfrentar o Mal, ou sequer enunciá-lo. Principalmente quando o Mal se manifesta na sua forma mais atual como um fenômeno viral e infeccioso – clique aqui.
Este Cinegnose já observou que diversos filmes, nos mais variados gêneros, do terror ao thriller policial, vêm expressando essa nova ontologia do Mal, desde Corrente do Mal (2014) e Sorria (2022) ao próprio Speak No Evil (2022) ou Borgman (2013).
Acompanhando a tese do pensador Jean Baudrillard, a melhor metáfora dessa fragilidade da sociedade diante do Mal seria a do ambiente hospitalar, no qual a assepsia da positividade acaba gerando o seu contrário: em um ambiente microscopicamente limpo, basta uma bactéria surgir para encontrar um ecossistema totalmente livre de anticorpos, para se reproduzir de forma exponencial.
E o filme O Enfermeiro da Noite (The Good Nurse, 2022) leva essa metáfora quase à literalidade nessa produção baseada em trágicos fatos reais nos EUA que envolveram o chamado “Anjo da Morte”, Charles Edmund Cullen – ex-enfermeiro e considerado, talvez, o mais mortal serial killer da história. Nos anos 1980 e 1990, trabalhando como enfermeiro em UTIs, e passando por nove hospitais, confessou o assassinato por envenenamento de 40 pacientes. Mas suspeita-se que esse número é bem maior, chegando a 400.
O diretor Tobias Lindholm e a roteirista Krysty Wilson-Cairs se concentram na pergunta mais fundamental: como Cullen conseguiu se safar por 16 anos em nove hospitais diferentes? Será que seus empregadores estavam tão carentes de recursos e pessoal que não perceberam? Ou estavam com tanto medo dos prejuízos financeiros de cascatas de ações judiciais que se mantiveram em um conveniente silêncio? Cada hospital empurrou para outra comunidade o problema, sem nenhuma carta de referência negativa ou sequer uma ligação para as autoridades policiais.
O olhar estrangeiro do diretor dinamarquês e da roteirista inglesa é essencial nesse filme para entender o porquê da ação exponencial do serial killer: ambos vieram de países em que a assistência médica é pública e a saúde universalizada. Diferente do sistema médico dos EUA, em que a saúde é mais do que mercantilizada: virou um negócio centrado em ter pacientes, não em ajudá-los.
Nomes dos hospitais e das vítimas foram ficcionalizados, para dar mais margem de manobra para o filme reconstituir o último local de trabalho de Cullen como fosse uma casa de horrores, filmada em uma paleta de cores tão sombria em tons cinza que o Dr. Frankenstein poderia perfeitamente se encaixar.
O Enfermeiro da Morte mostra ambientes hospitalares repleto de máquinas, telas e dispositivos que são última geração das conquistas da ciência e tecnologia. Porém, aos poucos vamos percebendo a indignidade no trato dos “clientes”: cadáveres abandonados nas camas enquanto parentes sofrem ao lado do brilho das máquinas automáticas de café e refrigerantes – espaços de consumo arrendados em um ecossistema de generalizada preocupação por lucros e redução de despesas. Por exemplo, flagramos gerentes reclamando para exaustas equipes de enfermagem sobre o custo do filtro de café. Ou a diretora sempre acompanhada de um gerente de risco, sempre consciente e temeroso das implicações judiciais por qualquer erro nas equipes médicas e de enfermagem.
Pois é nesse ambiente em que as conquistas da ciência e tecnologia estão mescladas com a as ambições do capital, que o Mal vai se propagar. Por quê? Porque ninguém tem interesse em pará-lo, apesar de todos boatos e evidências.
O Filme
A enfermeira chamada Amy Loughren (Jessica Chastain), a “boa enfermeira” da história, é a única a oferecer ao espectador alguma empatia. A mãe solteira de dois filhos é incansavelmente dedicada a seus pacientes, apesar de um problema cardíaco que a coloca em alto risco de derrame.
No entanto, seu próprio hospital não lhe fornecerá seguro de saúde até que ela trabalhe lá por um ano. Uma situação comum para trabalhadores contratados naquele país, mas que o diretor dinamarquês Lindholm vê como uma afronta moral entre a ironia amarga e alguma espécie de servidão contratada.
Amy esconde o seu sério problema de saúde de seus chefes com medo de ser demitida A questão do coração adiciona um aspecto de bomba-relógio à narrativa: se pressentimos que o pior está para acontecer, a tensão poderá causar uma aceleração cardíaca em Amy, e ela poderá morrer.
Mas Ammy acredita que tudo melhorará quando conhece o gentil Charles Cullen (Redmayne), um novo enfermeiro que faz amizade com ela e se oferece para ajudá-la com seus pacientes e até mesmo cuidando de seus filhos – que se ressentem da sua ausência nos longos plantões.
A princípio, Charles parece um salva-vidas, um colega que conhece o segredo de Amy e quer está lá para ajudar. Amy não tem ideia de que o hospital, liderado por uma insensível diretora chamada Kim Dickens, alertou as autoridades locais para uma situação preocupante envolvendo a morte inexplicável de um dos pacientes de Amy. Uma outra enfermeira codificou uma quantidade anormal de insulina na paciente que morreu na UTI. Ela estava claramente com uma dose dupla, e o hospital realmente só deixou os policiais saberem para que a instituição hospitalar pudesse se precaver para qualquer responsabilidade legal. Os oficiais de investigação, Tim Braun (Noah Emmerick) e Danny Baldwin (Nnamdi Asomugha), começam a cavar um pouco mais fundo e encontram um histórico de trabalho perturbador para o Sr. Cullen envolvendo outros nove hospitais, todos os quais ele deixou com rumores circulando. Quando, então, outro paciente de Amy morre.
Há um toque de sátira na subtrama em que dois detetives investigadores são frustrados pelos burocratas do hospital que minimizam as mortes como “incidentes inexplicáveis”, nas palavras de um gerente de risco assustadoramente frio (Kim Dickens). E, quando não há desculpas, deixam simplesmente os policiais na espera telefônica ao som de um irritante muzak.
Diante do obstáculo propositalmente burocrático, só resta aos policiais as informações do hospital hackeadas por Ammy. Aterrorizada ela descobre quem é na verdade Charles Cullen, e terá na frente outro desafio: desfazer-se dele, que acabou tornando-se um amigo das suas pequenas filhas.
A performance do ator Eddie Redmayne como o serial killer traz reminiscências do ator Anthony Perkins no final do filme Psicose.
Porém, a grande virtude de O Enfermeiro da Noite é não demonizar ou transformar Charles Cullen num monstro que assombra uma sociedade moralmente sadia. O julgamento final é que Cullen é apenas um efeito colateral de um sistema intrinsecamente corrompido pela escravidão legalmente organizada e a mercantilização daquilo que deveria ser o básico numa vida em sociedade.
Assim como em Speak No Evil, em que o Mal faz a justificativa minimalista (Fiz por que vocês deixaram!), em O Enfermeiro da Noite temos a mesma críptica frase: “Por que?”... “Porque ninguém me impediu!”, responde calmamente Cullen, revelando a nova ontologia do Mal contemporâneo: viral, exponencial, infeccioso e minimalista – o Mal espalha seus feitos apenas como um desejo niilista de potência. Ironicamente empoderado pelo próprio sistema que supostamente quer extirpá-lo.
Ficha Técnica |
Título: O Enfermeiro da Noite |
Diretor: Todias Lindholm |
Roteiro: Krysty Wilson-Cairns basado no livro de Charles Graeber “The Good Nurse” |
Elenco: Eddie Redmayne, Jessica Chastain, Denise Pillott, Noah Emmerick, Nnamdi Asomugha |
Produção: FilmNation Entertainment, Protozoa Pictures |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2022 |
País: EUA |