sábado, janeiro 16, 2021

Ford, Matrix ou como a esquerda está se tornando reacionária


Ford anuncia sua saída do País. “Eles querem subsídios!”, criticou Bolsonaro. Ferida em seus brios, a esquerda reage gritando que há 20 anos Olívio Dutra (PT), então governador do RS, teria previsto isso ao recusar as imposições draconianas para a montadora se instalar no Estado. Uma convergência crítica da extrema direita com a esquerda? Por que a “Trilogia Matrix” tornou-se um símbolo anti-sistema para a extrema direita, sob protesto da co-criadora Lily Wachowski? A direita alternativa põe em ação a mesma tática usada pela “Nouvelle Droite” (“Nova Direita”) francesa no final dos anos 1960: apropriar-se de temas e linguagem da esquerda para aprisionar o oponente numa “matrix semiótica”. Sem saída, torna-se gradativamente reacionária: renuncia aos próprios temas que foram abduzidos pelo oponente político com medo de ser confundida com as “teorias da conspiração” alucinadas da direita: QAnon, Pizzagate, Ursal etc. – na verdade, psy ops para que a esquerda caia na cilada da crítica “nem-nem” da grande mídia: o ardil da negação dos “extremos”.

Em maio do ano passado, o então ministro da Educação Abraham Wientraub publicou no seu perfil do Twitter a cena do filme Matrix (1999) onde Neo precisa escolher entre as pílulas vermelha e azul. “Está chegando a hora de decidir!”, escreveu de forma cifrada o ministro do Governo Bolsonaro. 

Alguns dias depois fez mais uma referência na rede social, publicando cenas da continuação Matrix Reloaded (2003) nas quais vemos o personagem Merovíngio, um nobre excêntrico descendente da realeza francesa – ele comparava o vilão com João Doria Jr, oponente político na crise brasileira do coronavírus.

Por sua vez, minimizando o perigo do coronavírus, o empresário Elon Musk decidiu abrir suas fábricas nos EUA e publicou no Twitter: “escolha a pílula vermelha”.

Ao ler essas referências à Trilogia Matrix, Lilly Wachowski, a co-criadora da franquia, respondeu indignada: “vão se foder”...

Corta para esse ano de 2021, cujo início revela o enredo da crônica de uma crise anunciada: depois de 100 anos atuando no País, a direção mundial da Ford anunciou o fechamento de três fábricas que ainda funcionavam no Brasil. Concentrando a produção na América Latina apenas na Argentina e Uruguai.

“Faltou dizer a verdade: querem subsídios. Vocês querem que eu continue dando R$ 20 bilhões para eles como fizeram nos últimos anos?”, reagiu Bolsonaro no tradicional “cercadinho” do Palácio da Alvorada para a claque de apoiadores.



Bolsonaro replica a mesma crítica feita há 22 anos, em 1999, pelo governador do RS, Olívio Dutra (PT), que não aceitou as condições draconianas impostas pela montadora para se instalar no Estado (subsídios de meio bilhão de reais, além de benefícios fiscais). Na época, Dutra denunciava a lógica perversa de multinacionais como a Ford: expansão dos negócios com menor custo e maior aporte de subsídios e recursos públicos.

Em postagem anterior sobre o “Grande Reset Global” (exortação do fundador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Chwab – clique aqui), um leitor desse blogue observava que a análise feita por esse humilde blogueiro em muitos aspectos coincidia com a do Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. O ministro denuncia esse projeto de reinicialização como uma conspiração globalista da Nova Ordem Mundial. Apenas os sinais estariam invertidos: enquanto para o Cinegnose é uma conspiração do clube dos bilionários contras os 99% restantes do planeta, para Araújo é a conspiração do “comunismo global”.

Ao falar de conspirações sobre uma nova ordem global, será que esse editor do Cinegnose estaria sendo seduzido pelo discurso alucinado de extrema-direita? Ou o que vimos acima são exemplos de como a chamada “direita alternativa” (alt-right) há muito decidiu lutar no mesmo campo simbólico da esquerda? Em outras palavras: apropriou-se do discurso, da linguagem e até mesmo do ethos da revolta anti-sistema da esquerda.

Estratégia semiótica que até hoje a esquerda não conseguiu entender ou aplicar. E o que é pior, prefere dar de ombros, ridicularizando os “bolsomínios imbecis” ao verem postagens no Twitter como vemos abaixo: “A Ford sempre foi uma empresa tipo socialista, nada mais normal continuar em países que se autoproclamam socialistas...”. 

“E tem também aquele clássico do Lenin: “Fordismo: estágio superior do capitalismo”, acrescenta outro perfil.


Ethos anti-sistema

Que eu me lembre, até o início desse século, temas como sociedades secretas, nova ordem mundial, globalização e mundialização, multinacionais, neoliberalismo corporativo, capitalismo global, a manipulação midiática, só para ficar em alguns, eram pautas críticas do campo progressista, tanto acadêmico quanto da militância política.

Muito antes da extrema direita ostentar faixas dizendo “Globolixo”, a crítica ao monopólio da emissora sob o beneplácito da ditadura militar era um dos temas prioritários do campo político progressista.

O bilionário Elon Musk e o provocador de direita Weintraub transformando Matrix no símbolo anti-sistema da direita alternativa ou o ministro Ernesto Araújo exortando ao Governo reagir contra a conspiração globalista são exemplos de uma estratégia semiótica – posam como ativistas corajosos oprimidos lutando contra uma mídia tendenciosa e a elite dominante (o “sistema”) exploradora e corrupta.

Essa estratégia de apropriação temática (logos) e discursiva (ethos) leva a situações paradoxais ou, até mesmo, ao caos semiótico. Como levantam as questões de Diogo Silva no artigo “Mudanças de Paradigma – como a extrema direita cooptou o esquerdismo”: 

É preciso perguntar: se o racismo foi o fator decisivo, como pode ser que os mesmos estados do “Cinturão da Ferrugem”, que foram cruciais para a vitória inesperada de Trump, foram os mesmos que votaram em Obama duas vezes? Se o sexismo derrotou Hillary, por que as mesmas pessoas que celebraram Trump também estão torcendo por Marine Le Pen? E uma vez que examinamos mais de perto essas questões, outras vêm à mente: por que os apoiadores de Sanders apoiaram Trump após a derrota do primeiro nas primárias; por que Le Pen está coletando votos em áreas que tradicionalmente votavam nos comunistas; e qual é a razão de 25% dos eleitores do Partido Trabalhista terem apoiado o Brexit? – clique aqui.

Da mesma forma aqui no Brasil, como explicar que eleitores de Lula tenham votado em Bolsonaro como apontaram pesquisa Unifesp sobre a ascensão da extrema direita no Brasil (clique aqui); ou a maneira como a periferia de São Paulo votou em Doria Jr acreditando nele como “um trabalhador que subiu na vida, assim como Lula” – clique aqui.

“2018 será o ano em que os esquerdistas se juntarão ao movimento nacionalista branco!”, bradou Mike Enoch, blogueiro supremacista branco em uma reunião alt-right de 2017 em Maryland (EUA) que estruturou a estratégia discursiva dos extremistas. “Precisamos ser explicitamente anticapitalistas. Não há outra maneira de avançar nosso movimento”, completou. Enquanto o conhecido líder supremacista branco, Richard Spencer, convocava um “movimento de trabalhadores de direita”.

A primeira razão óbvia desse foco da direita alternativa é a necessidade de recrutar novos militantes e crescer através de um appeal libertário. Embora a extrema-direita possa formalmente (ou de forma “sígnica”) replicar a esquerda, seus objetivos e ações ainda divergem.

Dizem acreditar no “Black Power”, desde que você também acredite no “White Power”. São capazes de falar em “respeito à diversidade”. Desde que cada etnia fique restrita à sua nacionalidade ou gueto, sem miscigenação – em outras palavras, uma “limpeza étnica pacífica”. Spencer fala em “trabalhadores” e Bolsonaro em “cidadãos de bem”, mas na verdade cada qual está lutando por um Estado etno-nacionalista branco. Enquanto o conceito de luta de classes da esquerda é substituído pela sociedade de competição meritocrática.

Em outros termos, o primeiro objetivo da alt-right é “exaurir o mercado de libertários” ao ponto de nada sobrar para a esquerda.

Na verdade, esse manual de guerra semiótica é mais antigo do que se possa imaginar. Ele já foi consagrado pela extrema direita europeia, que já na década de 1960 já havia adotado a linguagem de esquerda.

A base intelectual da direita alternativa está na França. A alt-right chegou a reivindicar como seu "pai espiritual”, o acadêmico francês Alain de Benoist, de 77 anos. 

Alain de Benoist

Confusão tática

Um capítulo do livro The Far Right in Western and Eastern Europe, de 1995, observa que, no início da década de 1990, a Nouvelle Droite (Nova Direita) se tornou " um centro de confusão ". Insiste que essa confusão é inteiramente intencional e tática - a confusão permite que a alt right opere à vista de todos. O livro faz questão de enfatizar que, embora a Nouvelle Droite tenha cooptado parte da linguagem da esquerda e evitado a pecha fascista, sua filosofia está profundamente enraizada no neofascismo. 

Nouvelle Droite, e os movimentos que ela inspirou, carrega o legado de pensadores da extrema direita europeia do século XX, como Ernst Jünger, Julius Evola (sobre esse pensador e as relações da direita alternativa com a “magia do caos”, clique aqui) e Carl Schmitt, todos envolvidos em diferentes graus na ascensão dos fascismos entre as guerras.  

O protesto estudantil generalizado de maio de 1968 (o chamado “ano da revolta”) e, em seguida, uma greve total paralisou a França e se espalhou por Londres, Berlim e outras capitais europeias, impactando a direita. Embora posteriormente a ordem tenha sido restaurada, o presidente francês Charles de Gaulle nunca se recuperou do impacto generalizado dos protestos e foi afastado do cargo um ano depois.

Para neutralizar os efeitos culturais da revolta estudantil e operária de maio de 1968, um grupo de cerca de 40 intelectuais se reuniu na cidade francesa de Nice para revigorar-se e transformar a sociedade francesa e europeia. A partir daí foi iniciada uma longa guerra cultural, tentando ganhar respeitabilidade para a direita. Como? Apropriando-se de temas da esquerda, apenas trocando os sinais.

Grande mídia e a crítica “Nem-nem”

Porém, essa tática de criar confusão no espectro não se limita a uma estratégia diversionista para confundir a opinião pública. Ela é a deixa para a grande mídia colocar em ação aquele discurso que o semiólogo Roland Barthes chamava de “crítica Nem-Nem” ou “ninismo” - um mecanismo de dupla exclusão: reduz a realidade histórica a uma polaridade simples, quantifica o qualitativo em uma dualidade e equilibra um com o outro, de modo a rejeitar os dois – sobre esse conceito clique aqui. 

Um flagrante disso foi o comentário da analista de economia da GloboNews Miriam Leitão sobre a reação de Bolsonaro à saída da Ford do Brasil: “A crítica de Bolsonaro foi a mesma de Olívia Dutra quando era governador do RS... tanto Bolsonaro como a esquerda fazem a mesma crítica às multinacionais...”  Nesse tom prosseguiu a templária do neoliberalismo repetindo o indefectível mantra da necessidade pelas reformas tributárias, administrativas, como fosse um discurso do “bom senso” que evita os “extremos” políticos – logicamente, extremismos seja de esquerda ou direita, seja Bolsonaro ou Lula.

Barthes e o "nem-nem" midiático: a rejeição tática dos extremismos


 Em seu movimento cíclico vicioso (sempre reativa ao sequestro da pauta pelo Governo, nunca fazendo um movimento anticíclico – sobre isso clique aqui), a esquerda acaba mordendo a isca: ato contínuo, a mídia progressista grita que Olívio Dutra já teria alertado há muito tempo sobre a verdadeira natureza do escorpião. Mais uma reação da esquerda movida pelo fígado. Reação aguardada pelo jornalismo corporativo, sempre pronta para lançar a bomba semiótica do “ninismo”.

Contra isso, o movimento anticíclico da esquerda para escapar de mais uma típica provocação alt-rightde Bolsonaro seria centrar esforços em explicar didaticamente para as massas o movimento de mexicanicanização ou colombianização por trás dessa fuga do País que começa com Mercedes e Ford: a desindustrialização acelerada, destruição do mercado interno e transformação do Brasil numa gigantesca fazenda e um pátio de impressoras 3D.

Não é à toa que a Ford vai preferir fabricar carros de alto valor agregado (picapes e SUVs) na Argentina visando exportação... exportar carros para a elite de fazendeiros brasileiros...

É a economia, estúpido!

A matrix semiótica da direita alternativa

É claro que a estratégia semiótica de apropriação da extrema-direita vai até um certo ponto. Ela deve garantir para a própria militância a fronteira ideológica que a separa da esquerda – a direita alternativa deve seguir um princípio semiótico: o valor de um signo é contextual porque emana de um sistema. É, portanto, um valor puramente distintivo, definido não positivamente pelo seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema.

Esse valor distintivo surge com a invenção do “politicamente correto”, e do “marxismo cultural”, no Brasil utilizado também pelos militares – num amálgama com teorias anticientíficas, negacionismo e escatologia neopentecostal.

E, como sempre, de forma reativa e cíclica, a esquerda acabou se concentrando nos movimentos identitários e culturais (movimentos de gênero, étnico-raciais, geracionais que postulam a diversidade, alteridade e reivindicação de direitos sociais) para também encontrar o seu valor distintivo dentro do sistema semiótico imposto pelo jogo alt-right.

Não é por menos que a grande mídia também abraçou as causas identitárias: com elas, mantém a esquerda na posição que lhe cabe no sistema político de distinções binárias – e, portanto, longe do deserto do real, aquilo que está fora da matrix linguística criada pelo consórcio direita alternativa/grande mídia: a luta de classes.

Por tudo isso, a esquerda tende a se tornar tão reacionária quanto a direita-alternativa. Claro, um reacionarismo com sinais trocados: no caso da esquerda, um reacionarismo movido pelo medo de se confundir com a extrema-direita e perder um suposto prestígio intelectual-acadêmico que renda espaços em colunas do jornalismo impresso corporativo ou em cursos de MBA no Insper.

Por exemplo, a partir das jornadas de junho de 2013 e as insistentes evidências da artificialidade e intencionalidade desses movimentos considerados “espontâneos”, “horizontais” ou quase flash mobs convocadas pelas redes sociais, quaisquer análises em torno de “guerra híbrida”, as relações de ONGs brasileiras com os Irmão Koch ou conexões com o Deep State do EUA eram execradas pela esquerda como “teorias da conspiração” – afinal, as “instituições estão funcionando” e “quem não deve não teme”. Deu no que deu...



“Teorias da conspiração” e toda a constelação de conceitos que giram em torno (sociedades secretas, think tanks etc.) talvez seja o mais emblemático exemplo de como a esquerda foi cooptada a essa matrix semiótica.

Sabemos que a expressão “teoria da conspiração” foi cunhada em 1967 em despacho da CIA com o carimbo “psy op” (operação psicológica) como estratégia para desacreditar quaisquer narrativas não-oficiais (clique aqui). Porém, essa operação psicológica não se limitou apenas a criar um rótulo.

Das teorias das conspirações de que Elvis Presley forjou a própria morte à realidade da terra plana ocultada pela NASA houve um trabalho metódico (uma psy op) para criar caricaturas conspiratórias e desacreditar toda investigação sobre a existência de agências ou organizações que operam sob o sistema democrático formal, longe do escrutínio da opinião pública.

Esse é o papel desempenhado, p. ex., pelas “denúncias” do alucinado candidato Cabo Daciolo sobre a existência da conspiração “Ursal”, nas eleições de 2018.

Pizzagate, QAnon e outras paródias de conspirações são operações psicológicas preparadas para criar o pânico na esquerda dela ser confundida com a extrema-direita. Interditar qualquer impulso investigativo ou crítico sobre uma realidade política muito além da pauta cíclica da grande mídia ou do pensamento acadêmico engessado pelo método cartesiano.

Agendas ocultas? Engrenagens políticas econômicas elitistas e conspiradoras que manipulam democracias? Quais as conexões entre o Big Money e a Big Pharma com a pandemia global? Por que tantas “coincidências”? Quem ganha?... são “teorias conspiratórias” das quais a esquerda foge para se esconder no confortável jogo parlamentar: a realpolitik imposta pela matrix semiótica da direita alternativa. 

 

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