No jornalismo impresso, o momento mais constrangedor, daqueles de causar vergonha alheia pela dimensão da “barriga” (gíria jornalística para designar uma grave bobeada de um jornalista que pensa estar publicando um “furo” quando não passa de engano ou má fé do próprio repórter),é fácil de lembrar: a notícia do “Boimate” publicado pela Veja em 1983 dando conta que cientistas uma animal resultante da mistura genética de boi com tomate – na verdade baseada em uma “pegadinha” da revista New Scientist para comemorar a semana da mentira.
Mas certamente uma das barrigadas mais constrangedoras no telejornalismo, pelo menos recente, foi protagonizado nessa última quinta-feira (14/01) no programa “CNN 360”, apresentado por Daniela Lima e a ex-Globo Gloria Vanique.
A tarde era tensa, com as notícias que vinham de Manaus com o colapso na saúde: sem oxigênio, pacientes com Covid-19 morriam em UTIs e enfermarias lotadas. Obrigando os próprias familiares a trazerem cilindros de oxigênio, se tivessem a sorte de terem recursos financeiros ou de acharem oxigênio no mercado.
E mais: UTIs na cidade do Rio de Janeiro já tinham 90% da ocupação. Ao vivo, o analista de política Iuri Pitta complementava que o aumento de casos irá antecipar a revisão da quarentena em São Paulo, mas... corta!... “segura aí, fica com a gente!”, exclamou Daniela Lima... “Olha aí! Vai partir o avião da esperança!”, exalta enquanto são mostradas imagens de um avião Airbus da Azul movendo-se na pista do Aeroporto de Viracopos. Adesivado “Vacinação – Brasil imunizado – Somos uma só nação”.
“O avião que está indo para Recife, e amanhã parte pra Índia. O quê que ele está indo buscar? Dois milhões de doses da vacina de Oxford... pega aí Gloria que eu tô quase chorando...”. E a certamente atônita Gloria Vanique segurou a apresentação e continuou: “teve um pequeno atraso, vai primeiro para Recife e depois, aí sim, vai para a Índia”.
“Assistindo ao vivo e a cores!”, recupera-se a emocionada Daniela, repetindo a informação. Depois de falar em “torcer com emoção com joelhos no chão”, imagens do Airbus da Azul decolando: “Olha lá! Lá vai ele!... é o voo da esperança”, exaltava Gloria Vanique, embarcando junto na comoção da companheira de apresentação.
Nesse momento, Daniela Lima joga tudo pelos ares (desculpe o trocadilho...): “Eu já não tenho nenhum apego por protocolos... imagem histórica... vou jogar minha parceira nessa furada comigo... vamos bater uma salva de palmas? Vai, vamo lá!.. Clap! Clap! Clap!... Vai que vai!... um dia muito difícil...” – para quem gosta de vergonha alheia, veja o vídeo ao final dessa postagem a partir de 1:08:00.
Ela tinha razão: acabou jogando a parceira numa furada que foi muito além do que quebrar os protocolos de estúdio – o avião da esperança que deveria buscar as duas milhões de doses na Índia não levantou voo no dia seguinte. A Índia negou o embarque, fazendo em cima da hora mudar os planos do Airbus. De voo da esperança virou o voo da crise: levar às pressas cilindros de oxigênio para Manaus.
O que é inacreditável é que já se sabia que essa canoa já estava fazendo água: desde o dia 3 de janeiro já era corrente que a Índia iria barrar da exportação da vacina AstraZeneca, como declarou naquele dia o CEO do Instituto Serum, Adar Poonwalla. O instituto foi contratado para produzir 1 bilhão de doses do imunizante para países em desenvolvimento.
Sob pressão política para iniciar sua própria campanha de vacinação, Poonwalla acrescentou que só poderia fornecer as vacinas ao governo da Índia naquele momento. Portanto, o acesso às vacinas do Instituto Serum para o Brasil só deverá começar em março e abril.
E mais. No dia seguinte à barrigada de emoções ao vivo, a CNN reportou que o próprio avião adesivado da Azul teria atrapalhado a negociação das vacinas:
A Índia relatou a autoridades brasileiras estar receosa com o impacto na opinião pública indiana sobre a remessa das 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca para o Brasil, tendo em vista que eles estão iniciando a campanha de vacinação por lá. (...) Pediram discrição do governo brasileiro nessa negociação. Mas isso não aconteceu. O governo brasileiro, ao contrário, comemorava o aval da Índia (...) A avaliação de autoridades federais é de que houve uma precipitação no processo, que acabou atrapalhando as negociações. (...) Nesta sexta-feira (15), técnicos das três pastas se reuniram no Palácio do Planalto para tentar buscar uma saída – clique aqui.
Ao que parece, o Instituto até queria “quebrar o galho” do Ministério da Saúde brasileiro. Desde que tudo fosse na surdina. Mas, convenhamos, um Airbus com 64 metros de comprimento, adesivado com o programa de vacinação do Brasil, dificilmente passaria desapercebido. Tudo deveria ser discreto, mas a joga de marketing do ansioso general Pazuello pôs tudo a perder.
E ainda com a contribuição de um fantástico “Efeito Heinsenberg” da própria CNN – “Efeito Heisenberg”, fenômeno midiático resultante da onipresença das mídias no qual o jornalismo não relata acontecimentos, mas o impacto da cobertura nos acontecimentos: relata apenas o esforço que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia – sobre esse conceito clique aqui.
Se desde o início do ano já era conhecida a declaração do CEO do Instituto Serum, por que Daniela Lima, levando junto a “caloura” Gloria Vanique, mandou às favas a objetividade jornalística, sem, pelo menos, ter relatado os fatos com um pé atrás?
Para além das suspeitas da CNN Brasil ser, por assim dizer, condescendente com o Governo Bolsonaro (em janeiro de 2019, os sócios da então futura rede televisiva no Brasil tiveram um encontro fora da agenda com Bolsonaro para apresentar o projeto de criação do canal), há uma lógica draconiana no jornalismo corporativo que acaba criando situações tão constrangedoras como essa: o duplo vínculo Alarme/Tranquilização.
Dentro do contínuo midiático, o Jornalismo tem uma função bem particular: o modo Alarme (o “jornalismo de guerra” quando é detectada o risco de alguma crise sistêmica) e o modo de autorregulação sistêmica para manter o equilíbrio e a normalidade do cotidiano de telespectadores, leitores ou ouvintes.
Depois do alarme sobre a proximidade do caos, o script do jornalismo tem que necessariamente tranquilizar ou dar alguma esperança para o espectador. Afinal, ele tem que ficar motivado para acordar no dia seguinte achando que vale à pena trabalhar, procurar emprego ou “empreender”.
Por exemplo, repare, caro leitor, como o bordão “a boa notícia é que...” invade as locuções de repórteres e apresentadores. Quando é necessário forçosamente dar uma “má notícia”, o jornalista parece que está quase pedindo desculpas – entre tenso e constrangido.
Agora, outra tragédia. Dessa vez coberta na TV aberta pelo telejornal SPTV da mesma emissora. Em outro link ao vivo, uma repórter cobria o desmoronamento de duas casas por causa das fortes chuvas que atingiram a cidade de Mauá/SP na noite de sábado. Uma bebê de um ano e duas crianças morreram. Talita dos Santos Silva, 34, foi submetia a cirurgia, sem saber que havia perdido seus filhos e que estava grávida de 3 meses. Então, a repórter de São Paulo repete o bordão: “... mas a boa notícia é que Talita já saiu da UTI e talvez sua gravidez não tenha sido prejudicada...” - clique aqui.
Para o jornalismo corporativo não há mais “notícias” (fatos, eventos, acontecimentos) para serem reportadas. Agora há “boas” e “más” notícias, juízo binário para criar o duplo vínculo Alarme/Tranquilização.
É claro que a “corrida maluca” pela vacina que, bestificados, estamos testemunhando (a triste realidade brasileira da política brasileira estar pautada pela oposição extrema direita versus direita, Bolsonaro versus Doria Jr) deve ser transformada em “boa notícia”. Principalmente depois das “más notícias” – Manaus não podendo respirar em pleno pulmão do mundo que representa a Amazônia.
Desde a chamada “Escola de Chicago” (uma das fundadoras das pesquisas empíricas em comunicação nos EUA no início do século XX), a mídia é encarada como uma instituição estratégica para o controle social, por partilhar as experiências entre os indivíduos e, portanto, favorecer a adaptação e vinculação aos mecanismos sociais.
Em outras palavras, a mídia possui uma função social terapêutica: a informação deve alarmar, para depois tranquilizar.
Com exceção dos momentos em que a mídia corporativa ativa o modo Alarme de forma contínua, quando assume o modo “jornalismo de guerra”. Como no passado recente, principalmente entre 2013 e 2016, quando as bombas semióticas eram detonadas diariamente pela mídia, sem tréguas ou alívios. Até criar o esgarçamento social e a polarização política necessária para desfechar o golpe de 2016 com o impeachment – sobre isso, leia o trepidante livro desse humilde blogueiro “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira (2013-2016): Por que aquilo deu nisso? – clique aqui.
Ato contínuo, a mídia corporativa retornou ao seu modus operandi: morder X assoprar, alarmar X tranquilizar etc.
Parece que a ansiedade da apresentadora do CNN 360, Daniela Lima, em buscar algum alívio em meio ao noticiário pesado e trágico naquela tarde e se adequar ao script do jornalismo corporativo, fez ela “pagar um mico” e expor o programa a uma vexatória “barriga”.
Ou deliberadamente a CNN embarcou na corrida maluca do General Pazuello pela vacina? Cabe agora, então, saber quem é o Dick Vigarista, o Muttley, a Quadrilha de Morte e a Penélope Charmosa...