A narrativa gira em torno do desaparecimento de uma classe inteira de formandos do ensino médio de 1999, com exceção de três alunos. Vinte anos depois, a irmã de uma das alunas desaparecidas recebe uma ligação misteriosa e reacende seu desejo de investigar este mistério. A série dinamarquesa da Netflix, “Equinox” (2020) é mais uma produção audiovisual inspirada num fenômeno de escala mundial: o desaparecimento de milhares de pessoas sem motivos identificáveis – abduções extraterrestres? Organizações criminosas? Tráfico de órgãos? Acidentes interdimensionais? Até se tornou matéria-prima para a paranoia política-conspiratória de extrema-direita com a teoria QAnon. Em “Equinox” vemos como paranoia moderna cria o personagem gnóstico-noir do Detetive como o espírito do nosso tempo: o mistério policial que se torna existencial, virando de ponta-cabeça o mundo do Detetive. A paranoia conspiratória vulgar evolui para a paranoia espiritual no subgênero "scandi-noir" ou "noir nórdico".
Nos EUA são registrados em torno de 700.000 desaparecimentos de pessoas. No Brasil, a cada 11 minutos, uma pessoa desaparece – 40 mil por ano. Isso apenas em levantamentos feitos a partir de estatísticas oficiais. Esses números acabam suscitando especulações em torno desse fenômeno - organizações criminais especializadas em raptos de crianças para escravizá-las, tráfico de órgão, abduções extraterrestres, seres interdimensionais etc.
Como não poderia deixar de ser, o cinema e audiovisual, como sismógrafos do espírito do tempo de cada época, acabam transformando em narrativas esse estranho fenômeno: desde o clássico Lady Vanishes (1938), passando por The Vanishing (1988) e, na cultura pop, por videoclipes como o da banda Blur Coffee and TV (1999) até filmes indie como Absentia (2011) e séries como a alemã Dark (2017-2020).
Tornou-se até matéria-prima para a paranoia-política-conspiratória de extrema-direita com a teoria “QAnon”: o mainstream político de Washington e o artístico hollywoodiano estariam envolvidos em uma rede subterrânea de rapto de crianças para fins ritualísticos, como uma “cabala mundial de pedófilos que adora Satanás”.
Sem dúvida, o fenômeno do desaparecimento de pessoas se funde com a percepção moderna de que a realidade é resultante de maquinações incompreensíveis em uma sociedade atomizada – cujo ápice está ocorrendo nesse momento com a pandemia e isolamento social onde nos isolamos ainda mais. E também onde a nosso único acesso à “realidade” é através de telas dos dispositivos móveis.
A paranoia como espírito do tempo cujas origens estão lá no mito da Área 51, o incidente ufológico de Roswell em 1947, depois irradiados mundialmente pelas HQs e Hollywood. Uma paranoia de massas que se alimenta do medo e isolamento, pronta para ser explorada politicamente e comercialmente – um tipo de paranoia que poderíamos definir como narcísica: a estrita percepção que temos de que o mundo existe para conspirar contra nosso ego. Por isso, ressentidos, buscamos a forra, a vingança, através de algum herói que consiga restabelecer a ordem para nós. Reordenação da ordem egóica.
Porém, há um gênero cinematográfico que faz um contraponto a essa ilusão do ego sitiado, construindo um outro tipo de paranoia: a espiritual, aquela que dissolve o ego para recriar uma nova ordem. É a paranoia do Filme Noir clássico e a construção do anti-herói do Detetive. O Detetive como o personagem que deve resolver um enigma policial que se transforma em enigma existencial – no final, o enigma reverte-se contra si próprio ao descobrir que na verdade ele está em busca de algo que ele próprio perdeu.
Um personagem que acabou se transformando num arquétipo contemporâneo, expandindo para além do clássico filme policial dos anti-heróis norte-americanos. Chegando ao sub-gênero atual chamado escandi-noir ou o “noir nórdico”: em ambientações gelada e cinzas com climas pesados e moralmente complexos, o protagonista se envolve em tramas de desaparecimentos para descobrir que ele próprio sempre esteve envolvido no enigma, colocando em xeque a si mesmo.
É o exemplo da série dinamarquesa da Netflix Equinox (2020), criada por Tea Lindeburg e dirigida por Søren Balle e Mads Matthiesen. A narrativa é centrada em torno do desaparecimento da classe inteira de formandos do ensino médio de 1999 em uma cidade dinamarquesa, com exceção de três alunos. Algumas décadas depois, a irmã de um dos alunos desaparecidos recebe uma ligação misteriosa e reacende seu desejo de investigar este mistério.
A Série
Composta por seis episódios, Equinox flerta com muitos elementos reconhecíveis em outras produções como Dark e Strangers Things, mas com uma narrativa em “slow burn”, lenta, propositalmente assumida para criar atmosferas pesadas emolduradas por constantes céus nublados e ambientes cinzas.
Dessa maneira, recria o peso emocional da série Dark, com o elemento fantástico dos saltos dimensionais de Strangers Things. Porém, o mais interessante é acrescentar a essa fórmula o arquetípico personagem do Detetive e conduzir a percepção da paranoia à dimensão gnóstica e espiritual – durante o caminho da investigação, o protagonista vai desconstruindo a si próprio, juntamente com a realidade.
São seis episódios em que as coisas vão ficando cada vez mais turvas, num mix de temas como saúde mental, instituições educacionais e uma sociedade secreta de culto que se enreda no próprio subterrâneo de uma cidade dinamarquesa – que em alguns aspectos lembra Blue Velvet de David Lynch, isto é, como numa realidade absolutamente banal pode ocultar um submundo assustador.
A narrativa é essencialmente dividida entre duas linhas de tempo separados. Em 1999, a irmã de Astrid (Danica Curcic), Ida (Kariline Hamm), deixa a cidade em um ônibus de formatura com uma turma cheia de alunos que nunca mais serão vistos. No total, 21 alunos no total desaparecem. Inexplicavelmente, apenas Amelia (Fany Bonedal), Jakob (August Carter) e Falke (Ask Truelsen) sobrevivem sem lembrarem do que aconteceu.
Avançamos 20 anos e Astrid continua a ser assombrada pelo desaparecimento de sua irmã. Trabalhando em uma estação de rádio local, ela recebe uma ligação estranha e truncada: “Sou eu, Jakob Skipper. Eu sei por que ela desapareceu.”
Esta revelação arrepiante serve como catalisador para a investigação de Astrid enquanto ela volta para Copenhague e começa a desenterrar o que realmente aconteceu. Enquanto Astrid segue a trilha de migalhas de pão, falando com várias testemunhas e suspeitos diferentes, aos poucos começam a vir à tona evidências de um culto, demônios satânicos e um segredo de família escondido que ameaça virar seu mundo de cabeça para baixo.
Junto com essa investigação metódica, vão sendo revelados ao longo dos episódios (de forma intercalada) flashbacks que narram o que aconteceu com Ida e Astrid no passado.
Equinox demonstra uma edição segura para intercalar entre as duas linhas do tempo que se sobrepõem perfeitamente, passando de uma cena para a outra. Astrid refaz os passos de sua irmã e desenterra momentos dolorosos aos quais ela preferiria não ter retornado.
Como mencionado antes, Equinox é um verdadeiro thriller de queima lenta. Até às vezes um pouco lento demais. Às vezes precisamos até ter uma boa dose de paciência. Mas para os fãs de mistérios, Equinox é uma série que vale a pena conferir.
A desconstrução que “Detetive” Astrid faz da realidade da sua própria família e de instituições como a escola, volta-se contra ela própria: ela não é bem aquilo que pensava que fosse. É a paranoia gnóstico-noir, espiritual, que dilui o próprio ego.
Assim como em Ilha do Medo (Shutter Island, 2010) e, em certa medida, Show de Truman (1998), a realidade reage e tenta colar na protagonista-detetive o plot freudiano de uma mente instável, clinicamente doente e que deve ser “curada”.
A série trás a marca da maioria dos dramas europeus desse tipo: a construção de atmosferas é essencial e Equinox tem o cuidado de fazê-la, com um perfeito design de som, trilha e bonita cinematografia.
A construção de atmosferas (fog, neblina, chuva, fotografias com altos contrastes de claro e escuro, céus nublados, ambientes internos claustrofóbicos etc.) sempre foi a essência do noir – é o que exprime a própria desconstrução do Detetive na qual quanto mais ele segue as migalhas de pão, mais pedaços de si mesmo vai deixando pelo caminho.
Equinox é a própria definição da paranoia espiritual, expressa pela iconografia Noir.
Ficha Técnica |
Título: Equinox (série) |
Criador: Tea Lindeburg |
Roteiro: Tea Lindeburg, Mette Krusse |
Elenco: Danica Curcic, Kariline Hamm, August Carter, Alexandre Willaume |
Produção: Apple Tree Productions |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2020 |
País: Dinamarca |