No domingo à noite, após as eleições municipais de segundo turno, durante “Cobertura Especial” da GloboNews, o analista Merval Pereira só faltou abrir uma garrafa de champanhe para comemorar a derrocada eleitoral do PT: “O PT não levou nenhuma capital do País... um partido que nunca fez autocrítica...”, e por aí foi Merval, visivelmente eufórico e olhos arregalados.
No dia seguinte, no matinal “GloboNews em Ponto”, normalmente apresentado por Julia Duailibi, dessa vez era Bete Pacheco que ancorava. No telão, três analistas. A certa altura, Pacheco nem sabia mais o que perguntar ao “time de analistas”: “Vocês podem falar qualquer coisa... Aaahhh!... Vamos falar do PT!”, regozijou-se a apresentadora substituta.
No restante dos canais, seja fechado ou aberto, o clima não era muito diferente: “o grande derrotado nas eleições foi o extremismo”, estampava um dos letterings no rodapé da tela de um telejornal.
Em última instância, essa eleição foi a consolidação da narrativa da grande mídia após quase dez anos de guerra híbrida: a transformação do sentimento antipetismo em equivalente geral contra qualquer forma de existência de esquerda no espectro político.
Após a derrubada dos governos trabalhistas (a “esquerda”) com o golpe de 2016, a extrema-direita foi açodada pela grande mídia, materializando-se na candidatura Bolsonaro, conduzida na ponta dos dedos pelos “passadores de pano” do jornalismo corporativo até a vitória em 2018 – de resto acompanhando o movimento mundial iniciado pelo Brexit e Trump: historicamente, a extrema-direita sempre fez o serviço sujo nas crises do capitalismo: a de 2008 e a que ocorreria esse ano, convenientemente escamoteada no “grande reset global” da pandemia COVID-19.
O sensacionalismo da impagável estorinha do hacker português que invadiu o TSE (punido pela justiça com prisão domiciliar e com tornozeleira eletrônica, munido apenas com um celular conseguiu invadir o TSE... imagina, então, a CIA e NSA?) e o chamado “novo cangaço” que toma cidades e explode bancos, é a construção midiática do terrorismo tupiniquim (nunca dando nome aos bois: “crime organizado” e “PCC”) dentro da macro narrativa do repúdio aos “extremismos” – assim como Nazismo e Comunismo são colocados no mesmo eixo sintagmático, também terrorismo e esquerda são a nova equivalência para reciclar o velho discurso do antipetismo – agenda ideológica do próximo Estado policial justificado pelo álibi da marota noção do combate a “atos antidemocráticos”.
Como o leitor deve estar percebendo, os seis parágrafos acima tratam dos últimos lances do xadrez políticos pós-eleições, onde a grande mídia (pautando o conteúdo das mídias digitais, inclusive das chamadas “progressistas”) ocupa um papel fundamental no agendamento da opinião pública.
Em outras palavras, onde o papel da COMUNICAÇÃO é estratégico para a detonação de bombas semióticas na opinião pública, verdadeiros “acontecimentos comunicacionais” que progressivamente colocam a esquerda numa sinuca de bico – e o que é pior, sem a esquerda ter a menor noção da relevância da Comunicação na Política, porque confunde esse conceito com a mera “propaganda” – voltaremos a esse ponto adiante.
O que fazer?
No rescaldo das eleições municipais 2020, diante da evidente derrota das esquerdas (apesar de alguns tentarem tergiversar com números para tentar esconder a derrota), as análises da mídia progressistas para responder a clássica pergunta “o que fazer?” têm se concentrado nas seguintes teses:
(a) Formar uma frente ampla contra Bolsonaro, seja abrangendo centro-esquerda e a esquerda, descartando arrogâncias e vaidades entre partidos e candidatos... o problema é que a esquerda ainda insiste com a ideia de que votos são ativos estocáveis que poderão ser usados em uma próxima eleição. Fosse assim, não teríamos o fenômeno de bairros periféricos que votaram em Fernando Haddad do PT, darem depois a vitória da Dória Jr. nas eleições municipais de 2016.
Sem falar na indefectível presença do homem-bomba, “morde e assopra”, Ciro Gomes para embaralhar essa frente, ora pensando em centro-esquerda, ora em centro-direita.
(b) O campo progressista deve “retornar às bases” – as esquerdas teriam fracassado ao esquecerem do povo, preocupadas em gerir seus mandatos parlamentares e a máquina pública. Enquanto as bases foram lentamente cooptadas pelo neo-pentecostalismo (teologia da Prosperidade, que agora fornece o substrato da fé à uberização e precarização do trabalho – eufemisticamente chamado “empreendedorismo”), milícias e crime organizado.
(c) O “movimento político” (item “a”) é a única forma de “politização do povo”. Afinal, as supostas bases abandonadas pelas esquerdas deram quatro vitórias presidenciais consecutivas – a ilusão do voto como “capital político”. As massas teriam abandonado a esquerda graças ao terremoto da crise econômica global de 2008, que varreu governos da Europa, chegando Dilma e as forças políticas de esquerda.
(d) Procurar uma espécie de “recall” nas massas: mostrar os resultados positivos das gestões do partido no dia a dia das pessoas. Coisas concretas, como melhoria das condições de vida. “O povo vai perceber que a boa política foi praticada na época do PT”, afirma José de Filippi Jr. que levou o PT de volta à prefeitura de Diadema/SP. De novo, a ilusão dos “votos estocáveis”...
(e) O retorno do conceito de “autonomia” no campo da esquerda – ecos tardios do grupo “Socialismo ou Barbárie” (Castoriadis e Claude Lefort) que rompeu com o trotskismo e esquerda radical em 1949 até chegar ao movimento do “Autonomismo” ou da “Revolução Molecular” de Felix Guattari e Gilles Deleuze nos anos 1970: a defesa de mudanças sociais gradativas em rede, distante da burocracia partidária ou do Estado.
Por exemplo, o sociólogo Cândido Grzbowski fala em “cidadania autônoma”:
Nessas eleições a “reação de solidariedade” mostrou que “a cidadania faz a diferença... Nunca tivemos uma eleição com tanta gente eleita por movimentos, mas movimentos autônomos. Esse fenômeno mostra que, em última análise, quem vai resolver as coisas no país é a cidadania...movimento que se pode observar se refletiu em 2020 com indígenas, quilombolas, negros, LGBTs, mulheres de diferentes partidos de esquerda virando prefeitos e vereadores. “As mulheres se assumindo enquanto mulheres, e não tanto como PT, PSol, PCdoB etc., aponta o sociólogo – clique aqui.
Mas então, como explicar paradoxos como a da primeira prefeita negra e jovem eleita em Bauru/SP, Suéllen Rosim? Conservadora, evangélica, eleita pelo Patriota, partido aliado ao bolsonarismo. Produto daquilo que o autonomismo pretende se livrar: a cidadania abduzida pelo conservadorismo político e midiático, capaz de criar “frankensteins” como o “afro-empreendedorismo” ou o “empoderamento identitário” em comerciais e programas de TV.
Suellen Rosim: identitarismo de direita? |
Fora do eixo materialista da luta de classes, esses movimentos moleculares podem ser facilmente cooptados pelas forças que a médio prazo pretendem destruir a própria cidadania.
Acontecimento Comunicacional
E qual o ponto em comum em todas essas respostas à angustiante pergunta sobre “o que fazer?” A absoluta ausência da questão da COMUNICAÇÃO.
Desde a cena do trauma de 1933, no Palácio dos Esportes em Berlim, um pouco antes da vitória de Hitler, quando um propagandista nazista humilhou seu opositor comunista, a esquerda vê-se perdida diante dos fenômenos de comunicação. Só para relembrar o histórico episódio:
Dois propagandistas, um comunista e outro nazista, discursaram. O aparentemente gentil nazista insistiu que o comunista tomasse primeiro a palavra. O que o comunista sentiu como uma distinção, e começou a falar: aí veio um discurso recheado com as partes mais complicadas de O Capital sobre “contradição principal”, “taxa de lucro média” e cada vez mais cifras. O público nada entendia e assistia entediado. No final, aplausos entre regular e fraco.
Então, aparece o nazista. E foi fulminante: “quando vocês trabalham no escritório o que os Srs. e Sras. fazem o dia inteiro? Escrevem números, somam, subtraem! E o que os Srs. ouviram do Sr. orador que me antecedeu? Números e mais números. De tal forma que a frase do nosso Führer encontrou uma confirmação inesperada: comunismo e capitalismo são os dois lados de uma mesma moeda”. Então, fez uma pausa bem estudada e emendou: “Eu, porém, falo a você de uma incumbência mais alta...!” - clique aqui.
O problema é que o alcance da compreensão da Comunicação pela esquerda ainda está dentro do viés da “propaganda política”. No exemplo acima, o propagandista nazista produziu mais do que um discurso. Criou um acontecimento comunicacional que, na linguagem digital atual das redes sociais, chamaríamos de “invertida” ou “lacração”.
Enquanto a esquerda não compreender que ela está enfrentando uma guerra híbrida e criptografada, num campo de bombas semióticas (acontecimentos comunicacionais), continuará apenas repetindo formas reativas CÍCLICAS. Isto é, agindo sempre de forma reativa ao loop retroativo da pauta/agenda político-midiática.
Cíclico, anticíclico
Pensar a Comunicação vai além das ferramentas de propaganda política quando se aproximam as eleições quando pretende-se ressuscitar os “votos estocados” ou convencer os recalcitrantes de “como era belo esse país nos tempos do PT”... Num cenário de guerra híbrida, a comunicação deve operar de maneira ANTICÍCLICA.
Um interessante (e radical) exemplo foi dado por um comentário de um leitor desse Cinegnose:
A esquerda não tem gabarito intelectual pra operar uma guerra hibrida. Na verdade Bolsonaro não é tão genial assim. Seus adversários que são fracos ou "entregam o jogo". Pra desmontar a guerra criptografada é fácil, basta ser anticíclico. Veja no exemplo do caso do Carrefour: A esquerda seguiu o script e foi gritar que ‘Vidas Pretas importam’. Mas e se a esquerda fizesse o contrário? Imagina se ele fosse a rua pedir pena de morte? Sendo Anticíclica? A turma do quarto andar do Palácio da Alvorada entraria em ‘tilt’ e na defensiva pelos próximos 6 meses.
O que faz esse humilde blogueiro lembrar o episódio de um grupo de manifestantes em Lisboa em outubro de 2013: para furar o bloqueio midiático, através de redes sociais fizeram uma simulação de uma manifestação supostamente a favor da política de austeridade imposto pela “Troika” (Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia) a Portugal. Os jornalistas foram na onda e, depois, descobriram que se tratava de uma estratégia irônica de atrair a atenção dos portugueses para o verdadeiro manifesto: “Que se lixe a Troika!”.
Desde as pesquisas de recepção e efeitos da mídia lideradas por Paul Lazarsfed na Universidade de Columbia (EUA) nos anos 1940, sabemos que o conteúdo na transmissão é o menos influente – já que submetido à fatores como predisposição, memória e exposição seletivas, além do fator da “influência pessoal”: mais poderoso do que a influência dos mass media, em última instância são os fluxos sociais (relações familiares, amizade, sociais) que sancionam os conteúdos transmitidos pelos meios de comunicação.
O filósofo grego Heráclito dizia que não há seres, só acontecimentos e fatos – movimento, devir. Da mesma natureza são os fenômenos comunicacionais: eles não são constituídos de um canal através do qual se transmite um conteúdo (um “ser”) de um ponto ao outro de uma linha de transmissão. A comunicação é acontecimento, deve criar climas, atmosferas – aquilo que os estoicos, após Heráclito, chamaram de “incorpóreos”.
O “incorpóreo” nessa comunicação política deverá ser, portanto, o anticíclico – conjunto de ações que procurem ir contra o movimento de loop criado pela guerra híbrida travada pela agenda do consórcio militar-jurídico-político-midiático.
E o campo desses movimentos anticíclicos só poderá ser em grande parte as ruas – convenientemente impedidas pelo grande reset global da pandemia.
Aliás, percebam como a grande mídia passou ao largo das manifestações de rua no Chile por igualdade social cuja conquista foi a realização de plebiscito no qual a constituição vigente desde a ditadura de Pinochet foi derrotada. Ao invés, o foco foi a vitória da esquerda nas eleições da Bolívia – como que oferecendo uma esperança à esquerda: “vejam, com o voto democrático vocês podem vencer...”. Portanto, fiquem longe das ruas!
Aliás, aglomerações públicas somente são toleradas pela grande mídia na estrita necessidade de produção de mais-valia ao Capital: indo para o trabalho em trens, ônibus e metrôs lotados e à espera de transporte público em plataformas apinhadas.