domingo, dezembro 08, 2019

Série "The Morning Show" abre a caixa-preta de um telejornal

A série “The Morning Show” (2019-) é o carro-chefe da estreia do novo serviço de streaming da Apple TV + da gigante empresa de tecnologia. Tem tudo para ser tão impactante como foram outras séries como “House of Cards” ou “Breaking Bed” - trata de questões complicadas como má conduta sexual, misoginia descontrolada, mulheres em posição de poder e como o jornalismo atual está perdido num cenário geral de radicais transformações tecnológicas e midiáticas. E nesse cenário, como o chamado “infotenimento” aos poucos vai deixando de ser apenas um gênero para redefinir o próprio jornalismo: transformado em protagonista da informação, o jornalista torna-se ele próprio a notícia para entreter o telespectador sob a aparência da investigação e da busca da verdade. “The Morning Show” promete na primeira temporada abrir a caixa-preta dos bastidores de um telejornal.

Robert Stam, em seu texto clássico “O Telejornal e Seu Espectador”, dizia que todo telejornal é feito para ser agradável: não importa seu conteúdo, se as notícias são boas ou más – no todo (ritmo, cores, cenografia, imagens limpas, locução, performance dos apresentadores para as câmeras etc.) a experiência em assistir a um telejornal deve ser prazerosa.
Nesse texto de 1985 podemos encontrar as bases daquilo que hoje chamamos de “infotenimento” – informação + entretenimento. A autenticidade dos fatos não é mais dada pela veracidade das notícias, mas pelas estratégias narrativas que simulam informalidade: apresentadores criam um clima de bate papo informal, incorpora-se os erros e o estúdio passa a corresponder a uma sala de estar – todo o telejornal parece ser uma conversa informal com o telespectador.
Mas os telejornais matinais parecem ser um mundo à parte. E, geral, não assumem a função de alarme como nos telejornais do horário nobre. Têm o importante papel ideológico de trazer otimismo, alegria e motivação para os telespectadores que sairão para mais um dia de trabalho – ou de procura de emprego.
A natureza de infotenimento fica tão excessiva nesses noticiosos matinais que os jornalistas se transformam, de mediadores, nos verdadeiros protagonistas das notícias – tanta autoreferencialidade e metalinguagem (sobre isso, clique aqui) transformam os jornalistas em notícias que atuam mostrando notícias – por isso tornam-se uma espécie de celebridades híbridas que figuram em sites  ou postagens de fofocas em redes sociais.

A série The Morning Show (2019-), carro-chefe repleto de estrelas para o lançamento no novo serviço de streaming Apple TV + da gigante empresa de tecnologia, dramatiza os bastidores desse universo do telejornalismo matinal. 


A caixa-preta 

À primeira vista, a série se propõe a abrir a caixa-preta dos bastidores de um telejornal: toda aquela simpatia que vemos diariamente ao vermos âncoras motivados e compenetrados esconde uma farsa – além de descobrirmos que cada piada ou comentário aparentemente improvisado dito na frente das câmeras já estava previsto em roteiros e teleprompters, também figuramos que todos esses profissionais na verdade estão em um autêntico ninho de cobras com traições e puxadas de tapete no qual a notícia é um simples pretexto.
Mas há algo mais, sobre o destino das notícias e do próprio jornalismo num século onde as mídias de convergência estão colocando em xeque o modelo televisivo de produção de sentidos. Como um negócio montado sobre o modelo da audiência em troca de entretenimento, a TV precisa dar uma resposta à ameaça tecnológica dos dispositivos móveis – guinar radicalmente para o infotenimento, no qual as notícias deixam de ser evidentes por si mesmas para se tornarem “inspiradoras” e “motivacionais” para um telespectador que acabou de acordar.
Por isso, há um subtexto que perpassa todos sete episódios da primeira temporada disponibilizados até aqui – os episódios são liberados à cada sexta-feira: os jornalistas começam a se tornar mais importantes do que as próprias notícias. Aliás, o mundo parece querer produzir acontecimentos apenas para terem a oportunidade de serem transmitidos pelas estrelas do jornalismo.
Essa inversão ontológica da realidade e do jornalismo, ao lado das intrigas que rolam nos bastidores de um típico telejornal matinal da TV americana (modelo irradiado para todo o planeta), tornam relevante a série The Morning Show (TMS).


A Série

Basicamente a estória de TMS é sobre três trajetórias pessoais em rota de colisão. Há a estória de Alex Levy (Jennifer Aniston), co-âncora do mais popular programa matinal de notícias em todo país e que está profundamente envolvida em negociações contratuais para estender sua participação no programa enquanto sua vida pessoal cai em pedaços em um processo de divórcio.
Mas tudo complica ainda mais quando seu parceiro de programa, o apresentador Mitch Kessler (Steve Carell) é demitido publicamente no TMS depois que foi vazado para a imprensa sua suposta má conduta sexual, assédio e possível suspeita de estupro cujas vítimas estão entre os integrantes da produção do programa. 
O jovem promissor diretor de jornalismo da emissora chamado Cory Ellison (Billy Cridup) vê nessa crise uma oportunidade de renovar o programa que já dura mais de uma década e já não está tão bem em audiência como no passado. Pretende gradualmente substituir Alex, que não aceitará entregar os pontos tão fácil.
Mas nada como as coisas ficarem ainda piores com a entrada em cena de Bradley Jackson (Reese Whitherspoon): uma repórter inquieta e explosiva com uma carreira problemática que consegue uma última oportunidade em uma estação de TV a cabo no interior de Virgínia. 
Mas inesperadamente ela se torna uma sensação online com um vídeo que viraliza nas redes sociais – ao cobrir um protesto ao vivo em uma mina de carvão, perde o controle ao ver seu cinegrafista derrubado por um ativista, o agarra e aos berros faz um discurso de protesto contra os malefícios do carvão e condenando a polarização política nas manifestações.


Pronto! Os olhos de Cory brilham: a atitude imprevisível de Bradley é tudo do que o TMS precisa para se renovar. Para ele, Alex está com os dias contados e estrategicamente convida Bradley a fazer parte do telejornal, contra a vontade do chefe de redação Chip Black (Mark Duplass) – a jogada é colocar Bradley como co-apresentadora de Alex para criar a aparência de empoderamento feminino (e embarcar na onda do movimento #MeToo), enquanto mantém Alex na fritura até ser demitida num futuro próximo.
A entrada de Bradley Jackson faz lembrar bastante o clássico dos anos 1970 Network: Rede de Intrigas – assim como o protagonista desse filme promete se matar ao vivo porque “não aguenta mais” o mundo louco, da mesma forma o personagem Bradley representa o americano médio ressentido e com raiva – um tipo de ressentimento tematizado em filmes como Coringa e o sul-coreano Parasita – sobre os filmes clique aqui aqui.
A diferença é que lá nos anos 1970 o apresentador que virava um evangelista televisivo enfurecido tinha algo de trágico pela condição do jornalismo escravo da audiência e dos interesses corporativos da emissora. Aqui em TMS a repórter raivosa e imprevisível vira um fantoche nas mãos do demiúrgico diretor de jornalismo Cory – ele propositalmente joga os egos de uns contra os outros para buscar aquela fagulha de energia e espontaneidade perdida num programa tão longevo.


Será que o cabaré vai pegar fogo?

Mas os episódios prometem uma virada de jogo para Bradley: ela suspeita que as improbidades sexuais de Mitch não eram assim tão secretas e contavam com a tolerância da própria cúpula da emissora. Como diz aquela velha expressão, “o cabaré promete pegar fogo” até o final da temporada.
  Diferente de NetworkTMS cinicamente figura como a autoimagem dos jornalistas é a de personagens mais importantes do que as próprias notícias. Os episódios em que o staff do programa acompanha Alex e Bradley na cobertura dos violentos incêndios na Califórnia parece muito mais um road show do que uma reportagem jornalística. Isto é, a cobertura de uma tragédia transforma-se em infotenimento no qual pouco importam as causas ou o viés social - os mais ricos pagam bombeiros para protegerem suas casas, enquanto bairros mais pobres são incendiados por contarem com bombeiros em número insuficiente. Mas isso pouco importa para o TMS.
O mais importante é, no meio do caos, pinçar personagens que ofereçam uma história “inspiradora” ou “motivacional” para os telespectadores. 
A série é baseada no livro Top of The Morning, de Brian Stelter, lançado bem antes da explosão de denúncias do movimento #MeToo. A série aborda o problema com complexidade, recusando-se a pintar a questão com linhas delimitadoras em preto e branco. Em vez disso, explora a área cinzenta onde não há vilões ou mocinhos claramente definidos.
Mais que isso, a série sugere, até aqui, que #MeToo serve muito mais de pretexto corporativo para criar condições favoráveis para demissões e renovação de um programa jornalístico decadente do que efetivo empoderamento feminino no jornalismo.
Está claro que TMS tem todos os ingredientes para ter o mesmo impacto na cultura pop de outras séries como House of Cards ou Breaking BadTMS trata de muitas questões complicadas como má conduta sexual, misoginia descontrolada, mulheres em posição de poder e como o jornalismo atual está perdido num cenário geral de transformações tecnológicas e midiáticas.
E nesse cenário, como o jornalismo ainda utiliza os signos de uma velha profissão (a reportagem, a investigação etc.) para esconder uma transformação radical em sua natureza: a ascensão do infotenimento e a inversão ontológica entre o jornalista e a realidade.


Ficha Técnica

Título: The Morning Show (série)
Criador: Jay Carson, Kerry Ehrin 
Roteiro: Jay Carson, Kerry Ehrin
Elenco: Jennifer Aniston, Reese Witherspoon, Billy Crudup, Mark Duplass, Nestor Carbonell
Produção: Media Res, Echo Films
Distribuição: Apple TV +
Ano: 2019
País: EUA

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