“... para a exploração de novos mundos, para pesquisar novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”. Essa abertura da série clássica “Jornada nas Estrelas” (1966-69) mostrava como o gênero ficção científica sempre buscava um significado do homem no cosmos. Mas “Ad Astra – Rumo às Estrelas” (2019) é mais um filme que desconstrói essa premissa do sci-fi clássico: ao lado de “Prometheus” de Ridley Scott e, indo além para outros gêneros, como “Apocalypse Now” e “As Aventuras de Pi”, “Ad Astra” transforma a jornada do filho em busca do pai nos confins do sistema solar como a alegoria da própria busca humana por Deus. O peregrino cristão em busca da Cidade Celestial e a Jornada do Herói são os grandes arquétipos explorados pela narrativa, porém com a atual sensibilidade cosmológica gnóstica - uma jornada semelhante a uma espiral que nos conduz para dentro de nós mesmos, diante de um Universo vazio, hostil e sem propósito.
“O Peregrino – A Viagem do Cristão à Cidade Celestial”, escrito em 1678 por John Bunyan é o livro mais conhecido do meio cristão depois da Bíblia – a narrativa sobre um jovem peregrino atormentado pelo desejo de se ver livre do fardo que carrega nas costas, segue numa jornada por um estreito caminho que é uma alegoria dos perigos e vicissitudes enfrentados na vida religiosa daqueles que seguem o caminho da perfeição e da Vida Eterna.
Ao lado da célebre monomito da “Jornada do Herói” detalhada por Joseph Campbell, segue sendo a principal ferramenta narrativa cinematográfica para dar sentido à jornada de um protagonista: ele está em busca do quê? Qual a natureza dos perigos, situações e personagens com os quais se deparará até o final da jornada e a conquista daquilo que procura?
Com a crescente influência da sensibilidade gnóstica entre roteiristas e diretores (principalmente a partir dos anos 1970), essa jornada tornou-se cada vez mais interior – principalmente com a descoberta (muitas vezes da pior maneira possível) que o cosmos não tem sentido ou propósito: o protagonista está só, e que a jornada na verdade sempre foi interior. Não há conquista de um “elixir” ou recompensa. A não ser a descoberta (muitas vezes dura) de si mesmo.
Isso está figurado em filmes como Apocalypse Now (1979, no qual a jornada do protagonista no Vietnã encontra um general enlouquecido numa guerra sem sentido), As Aventuras de Pi (2012, cuja jornada espiritual o leva à descoberta de um cosmo vazio, violento e hostil) ou mesmo Prometheus (2012, no qual a humanidade descobre que seus criadores são mais enlouquecidos do que a própria criação). Três filmes e três gêneros diferentes, mas com a mesma sensibilidade – a jornada na verdade se assemelha a uma espiral que nos conduz para nós mesmos.
O denso e suntuoso filme Ad Astra – Rumo às Estrelas (2019) atualiza essa sensibilidade gnóstica que parece desnudar o protagonista, inserindo-o num cosmos vazio e sem sentido – a única recompensa a ser encontrada só pode estar dentro dele mesmo.
Em Ad Astra a discussão começa cosmológica para terminar íntima e pessoal – da busca de Deus ou de inteligências extraterrestres, chegamos ao sensível exame das relações entre pais e filhos.
Para começar, Ad Astra confronta dois argumentos cosmológicos: a equação de Drake versus o Paradoxo de Fermi – o primeiro, um argumento probabilístico que estima o número de civilizações extraterrestres em nossa galáxia com as quais poderíamos nos comunicar; e o segundo, a contradição não resolvida entre as altas estimativas da existência de civilizações extraterrestres e a falta de evidências ou contato com essas civilizações, não obstante o fato de que a Terra é um planeta típico e de que, por isso, a existência de novas civilizações deveria ser comum.
Portanto, estamos sós nessa vastidão imersa em matéria escura? A resposta a essa pergunta será encontrada na busca do protagonista do seu pai perdido nos confins do Sistema Solar. Um cientista envolvido num projeto de busca de inteligências extraterrestres, mas que despareceu e é dado como morto.
É isso que torna Ad Astra interessante: essa jornada do herói será narrada num supreendente mix com os elementos de Apocalypse Now, As Aventuras de Pi e Prometheus.
O Filme
Num futuro próximo, quando as viagens espaciais se tornarão comum, encontramos Roy McBride (Brad Pitt), um astronauta lendário pela sua inteligência e frieza – jamais sua pulsação ultrapassa a 80 BPM, mesmo nas situações de maior estresse e perigo.
Mesmo nas cenas iniciais, quando Roy despenca em queda livre da geoestacionária International Space Antenna durante uma rotina de manutenção – a instalação foi inesperadamente atingida por um poderoso pulso de energia que quase destruirá o planeta matando milhares de pessoas e provocando um blackout de energia e comunicações. Com extrema destreza, Roy consegue ultrapassar intacto a atmosfera terrestre e chegar no solo com um paraquedas.
No mundo de Roy as viagens espaciais foram comercializadas por companhias aéreas; o fascínio pelo espaço foi substituído pelos conflitos e mundanidades terrestres; a Lua virou uma armadilha para turistas e assoladas por piratas espaciais.
Roy narra em voz over sua jornada através desse futuro. Ele lamenta por ter “decepcionado tantas pessoas”, mostrando-se um herói fascinantemente falho: por trás da ausência de emoções de de um astronauta sempre fio e superfocado nos objetivos das suas missões, algo o corrói por dentro – o desaparecimento do seu pai, uma lenda no meio da ciência e da astronáutica.
E aqueles misteriosos pulsos de energia que ameaçam não só a Terra, mas também todo o sistema solar, está conectado a isso: descobre-se que a fonte daquela anomalia provém de alguma explosão de antimatéria nas proximidades de Netuno, coincidentemente o local da tragicamente famosa missão chamada “The Lima Project”. Uma missão com o objetivo de encontrar sinais de comunicação inteligente extraterrestre comandada pelo seu pai, Clifford McBride (Tommy Lee Jones).
Durante anos Roy acreditava que seu pai estivesse morto, mas agora recebe informações sigilosas de que ele não só talvez esteja vivo, como aquele pulso de energia catastrófica tenha a ver com o próprio combustível da nave do Lima Project: antimatéria.
A partir desse momento, Ad Astra começa a lembrar a jornada de Willard navegando rio acima na guerra do Vietnã de Apocalypse Now. Roy é enviado a Marte para tentar se comunicar com o pai que não via há anos e, logicamente, as vias de comunicação via “laser seguro” são mais rápidas e exatas de lá do que da Terra. É necessária a localização interplanetária correta da fonte antimatéria que ameaça todo o sistema solar.
Como Willard no clássico filme de Coppola, Roy seguirá rio acima a odisseia espacial em busca do seu pai e da verdade sobre o destino do Lima Project: acidente? Motim? Terrorismo alienígena? Ou simplesmente um ato de loucura decorrente do isolamento nos confins da galáxia?
Esquecer de si mesmo – Alerta de Spoilers à frente
Quanto mais Ad Astra avança mais fica evidente a alegoria gnóstica incorporada no filme, lembrando a epopeia da tripulação da nave “Prometheus” de Ridley Scott: da mesma maneira Roy está em busca daquele que o criou – a busca pelo pai é a própria alegoria da procura de Deus ou do próprio sentido ou propósito do Universo. Que afinal, é a premissa filosófica ou cosmológica do Lima Project.
A grande ironia do filme é que Roy cai na Terra como o astronauta perfeito, quase um herói e uma lenda como fora o seu pai. Ao contrário, quanto mais avança sua jornada em direção a Netuno, maiores serão as descobertas das suas imperfeições - assim como o seu pai, o foco no Universo e na Ciência resultou na distância e frieza com aqueles que mais ama – filhos, esposas etc.
Ao lado do reencontro do pai que em muitos aspectos lembrará o drama do General Kurtz em Apocalypse Now, Lima Project apenas documentará o maravilhoso vazio que representa o Universo – posicionado nos confins do sistema solar, longe de quaisquer interferências solares para finalmente poder captar possíveis transmissões inteligentes, apenas consegue obter maravilhosas imagens de nebulosas, galáxias e celeiros de novas estrelas.
Pai e filho, um diante do outro diante do espaço sem sentido ou propósito. E a descoberta de que o homem está sozinho nesse cosmos, tendo apenas a si mesmo e as relações com aqueles que ama.
Em busca de um sentido transcendente, esquece a si mesmo. E quando lhe descobre já é tarde: apenas encontrará a culpa, o desespero, loucura e arrependimento.
Ficha Técnica
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Título: Ad Astra
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Diretor: James Gray
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Roteiro: James Gray, Ethan Gross
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Elenco: Brad Pitt, Tommy Lee Jones, Ruth Negga, Donald Shutherland, Liv Tyler
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Produção: New Regency Pictures, Bona Film Group
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Distribuição: 20th Century Fox
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Ano: 2019
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País: EUA
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