Amélie é uma ex-funcionária de uma rede de varejo chamada New Price. Ela é assombrada pelas lembranças da última Black Friday, quando retorna à cena traumática. Esse é o curta-metragem canadense “Black Friday” (2018), inspirado na história de um funcionário da rede Wal-Mart que morreu pisoteado em 2008 na abertura das portas de uma loja na Black Friday. Do discurso motivacional do gerente da loja aos funcionários análogo a um culto religioso, à corrida selvagem de consumidores invadindo a loja como zumbis no filme “Amanhecer dos Mortos”, tudo nos conduz a uma estranha relação com as mercadorias no Capitalismo pós-crash de 1929 – a salvação do sistema de produção-consumo através de uma espécie de “Marketing do Apocalipse”: todo dia é o última dia para a Salvação. Há muito o consumo abandonou o valor de uso para se esgueirar pelo imaginário da moralidade e da religião. Se o consumo em si é moralmente bom, então temos que consumir sua inutilidade como forma de merecermos a aprovação “divina”. É sincrônico que a Black Friday ocorra no mesmo mês do histórico crash da Bolsa de Nova York e um dia após o feriado religioso de Ação de Graças.
O crash da Bolsa de Valores de Nova York numa quinta-feira de 24 de outubro de 1929 mudou a cara do Capitalismo. Do “Black Thursday” de 1929 até chegarmos à atual celebração do consumismo e dos seus lucros, a chamada “Black Friday”, o Capitalismo revolucionou-se através da Publicidade e Sociedade de Consumo. Deixou de ser um sistema meramente econômico (um modo de produção e de relações sociais) para alcançar as raias de uma nova religião global.
É mais que irônico que a Black Friday seja no mesmo mês do crash mais famoso que quase fez o Capitalismo escoar pelo ralo da História. Na verdade, esse evento de celebração de lucros e consumismo é o apogeu de uma operação psicológica que mudou para sempre a nossa relação com as mercadorias e do próprio significado do consumo. E graças a isso, o Capitalismo se salvou de uma forma que nem Karl Marx poderia imaginar nos seus piores pesadelos.
Aliás, Karl Marx até prenunciava tudo isso, com o seu conceito de fetichismo da mercadoria, no primeiro capítulo de “O Capital”. Só não imaginava a hipertrofia desse fenômeno e acreditava que o movimento operário global frearia a loucura do irracionalismo econômico.
O Curta
O curta-metragem Black Friday (2018), do diretor/escritor canadense Stéphane Moukarzel, tematiza esse lado sombrio do dia mais temido pelos funcionários que trabalham nas grandes redes de vendas.
Tanto temem que o curta é inspirado na história de Jdimytai Damour, um funcionário da rede Wal-Mart que morreu pisoteado em 2008 na abertura das portas de uma loja na Black Friday. Um absurdo evento trágico que inspirou Moukarzel e o co-escritor Philippe Mayrand. Tomando como ponto de partida essa tragédia real, Mayrand usou suas próprias experiências de trabalho na rede de varejo americana Cotsco, injetando uma camada de autenticidade essencial para o curta.
Com sutileza e humor, Black Friday mostra toda loucura a partir dos olhos de Amélie (Carla Turcotte), uma funcionária da limpeza que oferece uma perspectiva de fora – seja na área externa onde os consumidores se comportam como animais à espera das portas abrirem, seja dentro da unidade da rede New Price onde o gerente da loja (Hubert Proulx) faz um discurso motivacional para os funcionários lembrando algo muito próximo ao líder de um culto religioso.
Amélie vê o ridículo e o absurdo de tudo, e questiona seu pai (Luc Senay), um velho funcionário da loja, como ele conseguiu trabalhar ali por anos.
O local em que essa história se desenrola parece uma selva estéril de corredores sem vida, onde os funcionários realizam rotinas irracionais, tudo em sincronia. É difícil assistir a certas cenas de Black Friday sem não lembrarmos do clássico sobre zumbis Amanhecer dos Mortos - um filme que também forneceu uma crítica aberta ao consumismo.
A narrativa corre paralela, saltando para frente e para trás: Amélie retorna ao local após a tragédia, para vandalizar enfeites natalinos que se acumulam nas gôndolas do hipermercado. Contida pelo segurança, é levada a uma sala no qual o gerente de loja faz a mea culpa pela morte trágica do seu pai. Enquanto o diálogo é cortado por flash backs do fatídico Black Friday.
A Salvação e a Lógica do Papai Noel
A chave de interpretação do curta está no discurso motivacional típico de um culto religioso. Está ali, naquele discurso que arregimenta os funcionários como soldados para enfrentar a Black Friday, toda a loucura vista pelos olhos de Amélie: o consumo e o próprio Capitalismo se tornaram uma religião. Por que? Porque consumir deixou de ser um fenômeno econômico que evoluiria para a satisfação de todos os valores de uso da sociedade.
Tornou-se um fim em si mesmo: o ato em si de consumir é moralmente bom, tem um valor em si mesmo que no conduz à Salvação. Só que dessa vez, não demonstramos nossos atos bons para Deus, como fazia o protestantismo nos primórdios do Capitalismo (trabalhar e enriquecer como formas de merecimento aos olhos de Deus para merecermos um lugar ao lado Dele), mas para o vizinho, o parente, a sociedade, isto é, ao concorrente.
O problema é que a Salvação é para poucos. Por isso o darwinismo social inerente ao Capitalismo (aplicar as leis da seleção natural à sociedade) evolui da esfera do trabalho para o consumo: centenas de consumidores se engalfinhando, atropelando-se e empurrando uns aos outros como numa contenda de rugby.
Black Friday é um exemplo do que poderíamos chamar de “marketing do apocalipse”: assim como no Juízo Final poucos se salvarão, somente poucos consumidores “escolhidos” farão “bons negócios”.
Black Friday é o paroxismo do marketing do apocalipse das redes de varejo populares: todo dia é o último dia! Parece que sempre estamos à beira de alguma catástrofe da qual devemos nos salvar.
Como observamos acima, é mais do que irônico que a Black Friday ocorra do mesmo mês do histórico crash de Nova York e após o feriado religioso do dia de Ação de Graças – o “Thanksgiving”.
A crise de 1929 foi uma crise de superprodução de uma fase do capitalismo de livre concorrência, guerra de preços e produção em massa – para baratear o preço por unidade. Descobriu-se que o consumo racional (voltado para o valor de uso das mercadorias) limitava a expansão dos mercados. Por isso, todo esforço da Publicidade e da Sociedade de Consumo foi o de promover os produtos não mais pela utilidade, mas pela sua inutilidade – seja por um valor simbólico (status, distinção etc.), seja por valores religioso (Salvação pela moralidade do consumo) ou seja, como venda de um álibi de racionalidade.
Em postagem anterior chamamos essa forma de consumo pela inutilidade como “Lógica do Papai Noel”, acompanhando a tese do pesquisador francês Jean Baudrillard – clique aqui.
Para Baudrillard a operação publicitária seria análoga à crença infantil no Papai Noel: nem slogans, textos publicitários ou informações são decisivos para a compra. As pessoas não acreditam em Publicidade mais do que acreditam em Papai Noel. Então para que serve a Publicidade? Para racionalizar o desejo da compra.
Aqui Baudrillard aproxima-se da noção freudiana da racionalização como um álibi perfeito. O ser humano não é um ser propriamente racional, mas racionalizante: a maior parte do tempo age por impulso ou compulsão, sem ser “racional” no sentido de pensar antes de agir.
Por isso o indivíduo necessita de um álibi (uma desculpa, um pretexto) para justificar diante dos outros e de si mesmo a razão dos seus atos. Tal como o criminoso que sabe que cometeu o crime, ele necessita de um álibi. Assim como o criminoso que não acredita no álibi porque sabe que cometeu o crime, da mesma forma o consumidor sabe que cometeu o “crime”. E os álibis oferecidos pela Publicidade são úteis para nos livrar da culpa.
Os supostos descontos da Black Friday são verdadeiros Papais Noeis: acreditamos neles tanto quanto na existência do bom velhinho. A questão é a compulsão, a compra por impulso inútil que precisa ser legitimada por uma suposta racionalidade – poupar, fazer bons negócios.
O marketing do Apocalipse potencializa todas essas questões psíquicas e religiosas, transformando, por exemplo, uma sexta-feira numa selvagem corrida pela Salvação.
Em síntese, o curta Black Friday é um sombrio lembrete para o leitor que está indo para toda essa celebração: lembre-se que é mais seguro ficar do lado de fora!
Ficha Técnica
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Título: Black Friday (curta)
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Criador: Stéphane Moukarzel
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Roteiro: Philipe Mayrand
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Elenco: Carla Tucotte, Hubert Proulx, Luc Senay
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2018
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País: Canadá
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