Misture dois filmes gnósticos como “Quero Ser John Malkovich” (1999) com “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), numa atmosfera que lembra o episódio “Play Test” da série “Black Mirror” e filmado em preto e branco como fosse um clássico filme de mistério noir. Esse é “Empathy, Inc.” (2018), um típico produto do subgênero independente “alt sci-fi”: os temas da ficção científica são usados como pano de fundo para críticas sociais e existenciais. Um avanço extremo de Realidade Virtual de uma startup tecnológica leva um protagonista desesperado financeiramente a uma armadilha de aparências e perigos – uma “máquina de criar empatia” capaz de supostamente curar depressões e frustrações de clientes, mas que na verdade revela o que esconde: o capital financeiro especulativo de curto prazo que alimenta o Vale do Silício. E se nossos corpos forem apenas criações virtuais que nos aprisionam? Seríamos apenas fantoches em uma condição gnóstica de prisão tecnológica? Filme sugerido pelo nosso leitor Alexandre Von Keuken.
Empatia: sf. (psi.) Habilidade de imaginar-se no lugar de outra pessoa. Qualquer ato de envolvimento emocional em relação a uma pessoa, a um grupo e a uma cultura.
Qual o prazer em ouvir ou assistir ao subgênero midiático “mundo cão”, de programas de crônicas policiais radiofônicas de Gil Gomes nos anos 1970-80, passando pelos suicídios e perseguições policiais ao vivo no Aqui e Agora no SBT dos anos 1990, chegando aos atuais Brasil Urgente e Cidade Alerta?
Alguns estudos de recepção (por exemplo, “Televisão: A Vida pelo Vídeo” de Ciro Marcondes Filho) apontavam para um tipo de gratificação psíquica que poderíamos chamar de “empatia minimalista”: assistir à desgraça alheia daria uma sensação ao espectador de que, afinal, sua vida não é assim tão ruim – tem gente que vive muito pior...
Esse é o tipo de gratificação psíquica oferecida por uma startup tecnológica para incautos clientes no filme Emphaty, Inc. (2018). Dirigido por Yedidya Gorsteman e escrito por Mark Leidner, o filme conta com uma curiosa premissa de ficção científica: uma misteriosa empresa vende experiências de Realidade Virtual (RV) hiper-realistas – os clientes são colocados em uma realidade simulada incrivelmente vívida através de um tipo de capacete que capta ondas cerebrais através de eletrodos, induzidas por uma droga injetável. Então, algo dá errado e o protagonista descobre que a experiência não é virtual.
Filmado em preto e branco, o filme então torna-se um conto noir pós-moderno numa curiosa mistura de Quero Ser John Malkovich com Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, sem falar de referências ao episódio da série Black Mirror “Playtest”.
Emphaty, Inc. não é mais um sci-fi que retrata a realidade virtual com um sonho tecnológico ou um pesadelo distópico – fala-se muito em “governo blockchain”, “nuvem” e outros chavões tecnológicos. Mas tudo é apenas uma cortina de fumaça, assim como o papel simbólico da neblina nos clássicos filmes noir. Nada é o que parece, não há mocinhos ou bandidos.
Há apenas o cinismo em um mundo moldado apenas pelo dinheiro. Ou melhor, pela especulação em ganha-lo. O filme figura uma visão cínica da era tecnológica do Vale do Silício com suas startups financiadas pelos chamados “Hedge Funds” – fundos altamente especulativos e de risco que apostam em investimentos com baixíssimas restrições.
E startups de RV são a bola da vez nessa caricatura cruel da era atual de cinismo tecnológico. Uma “máquina de criar empatia” para clientes deprimidos ou frustrados com suas próprias vidas – a ideia é que, se vivermos virtualmente experiências negativas alheias, passaremos a valorizar a nossa vida real.
Mas nessa narrativa em ritmo lento e hipnótico, nada é o que parece ser: tecnologias e resultados são sempre superestimados, para atrair investidores que parecem também pouco se importar com os resultados finais. O negócio é faturar com a especulação durante o “work in process”.
Para além desses temas, por assim dizer, materialistas, Empathy, Inc. aborda questões gnósticas mais profundas: explora a clássica dicotomia espírito/matéria, como em Quero Ser John Malkovich (a discussão da identidade na qual nossas identidades corporais são meros receptáculos para um Eu mais profundo) e uma narrativa irônica que ao final resulta num abismo interpretativo: somos como atores que interpretam personagens representados pelos nossos corpos, assim como os atores do filme que interpretam personagens a partir de um script.
O Filme
O protagonista Joel (Zack Robidas) está no ponto mais baixo da sua vida: ele investiu todo o seu dinheiro e da sua esposa Jessica (Kathy Searle) em uma startup tecnológica do Vale do Silício baseada em uma tecnologia ambiental que prometia ser revolucionária. Mas o seu inventor falsificou os dados e os resultados para tornar o investimento mais atraente para o mercado, resultando num escândalo financeiro.
Joel e Jessica perdem tudo, dinheiro e a própria casa. Vendo tudo indo pelo ralo, Joel decide retornar para a casa dos seus sogros que moram na Costa Leste e tentar recomeçar suas vidas. Lá os pais de Jessica decidem se tornar “úteis” para o casal, da forma mais insistente, controladora e invasiva possível.
Irritado após mais uma discussão no jantar, Joel se retira de forma grosseira e se dirige a um bar mais próximo. Lá encontra um velho conhecido desde os tempos de escola chamado Nicolaus (Eric Barryman), cujo sócio é um obscuro neurocientista (Lester Cooper – Jay Klaitz) e que estão criando uma startup “revolucionária” – uma cadeira e um capacete que criam uma RV, uma “máquina de empatia” capaz de criar uma forma minimalista de gratificação para curar sentimentos depressivos ou de frustração com a própria vida. Imergir em uma vida virtual miserável para, dessa maneira, saber apreciar a própria vida real que tem. Um tipo de bizarro turismo da pobreza alheia.
Nicolaus precisa de um milhão de dólares para fazer o potencial negócio decolar. Enquanto sua esposa Jéssica tenta retomar com dificuldades sua carreira de atriz no teatro, Joel consegue convencer o sogro a investir todo o seu fundo de aposentadoria na RV de Nicolaus e Lester.
Claro que Joel impulsivamente testará a cadeira de RV e viverá uma experiência absolutamente impactante no corpo de uma outra pessoa virtual. Parece que realmente foi uma cura para o seu atual estágio depressivo: torna-se imediatamente otimista e confiante.
Mas o invento de Lester Cooper está escondendo um sinistro segredo. Aos poucos, as experiências virtuais farão Joel começar a questionar o que é o real – não apenas nas experiências virtuais que parecem invadir a sua vida cotidiana onde é acusado de um crime cruel do qual não consegue lembrar. Há também algo de mal explicado nas operações financeira da startup.
Joel tentará desesperadamente virar a mesa para reaver o dinheiro dos sogros, mas porá em perigo a si mesmo, sua família e a todos envolvidos na Empathy Inc.
O choque geracional e gnóstico – Alerta de Spoilers à frente
Empathy, Inc. não é propriamente uma ficção científica, mas um “alt sci-fi indie”: o tema de ficção científica (a “máquina de empatia”) é colocado apenas como pano de fundo para serem exploradas questões existenciais ou sociais. Assim, o filme se coloca ao lado desse sub-gênero independente que conta com pérolas como Sound of My Voice, K-Pax, I Origins ou Another Earth.
Há dois temas principais no filme: o geracional e o gnóstico.
A narrativa coloca em confronto um choque geracional entre os sogros de Joel (que a vida inteira acumularam seus fundo de pensão para a velhice) e a filha e genro – uma geração que vive o hype tecnológico do momento, sempre de curto prazo, respirando a atmosfera do capitalismo financeiro de alto risco onde cada tacada está no limite entre o sucesso (a riqueza) e o fracasso (a pobreza).
Empathy, Inc. é um conto cruel e cínico sobre como o desenvolvimento tecnológico, impulsionado pelas startups do Vale do Silício, é muito mais especulativo do que real. Nos faz lembrar, por exemplo, de heróis tecnológicos e midiáticos como Elon Musk – celebrado pela mídia como “visionário” e “modelo para jovens empreendedores” com seus projetos como a SpaceX de colonizar Marte com turistas, atraindo investimentos de fundos especulativos: mais promete do que entrega resultados.
Para investidores de curtíssimo prazo é uma fonte rápida de lucro em projetos “Work in Process”, até a bomba explodir nas mãos como a do protagonista Joel, arrastando economias pessoais e familiares – o mico sempre fica com o último que ficar para apagar as luzes.
Nesse mundo de especulação tecnológica turbinado pelo capital especulativo tudo é uma aparência, até mesmo a RV da startup de Nicolaus – Joel descobre da pior maneira possível que os personagens da máquina de criar empatia são reais, ocupados pela consciência do cliente que ocupa corpos para o seu bel prazer. Enquanto o corpo do próprio usuário é ocupado por outro cliente e assim por diante.
Nesse ponto, o filme levanta o mesmo tema da identidade, como no filme Quero Ser John Malkovich – como “reencarnamos” em mediações tecnológicas como avatares ou perfis de redes sociais, tentando encontrar a felicidade no corpo de outras personas virtuais.
É o velho tema gnóstico da marionete ou fantoche como metáforas da própria condição humana – a carne ou o corpo como prisões do espírito, comandados por um Demiurgo – alienígena, um inventor enlouquecido ou o próprio capitalismo financeiro.
Ao final, Empathy, Inc. lança mão do recurso da ironia e da narrativa em abismo para criar a típica vertigem dos antigos filmes noir: será que padecemos do mesmo mal dos atores que entram nos personagens de tal maneira que não conseguem mais sair, esquecendo-se de quem eram antes de serem absorvidos pelo roteiro?
Assim como os próprios atores do filme? Este é o quebra-cabeças proposto pelo filme, capaz de fritar os miolos do espectador!
Ficha Técnica
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Título: Empathy, Inc.
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Criador: Yedidya Gorsetman
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Roteiro: Mark Leidner
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Elenco: Zack Robidas, Kathy Searle, Jay Klaitz, Eric Berryman
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Produção: Rigel Films
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Distribuição: Dark Star Pictures
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Ano: 2018
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País: EUA
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