O filme Netflix taiwanês, “Sociedade dos Talentos Mortos” (Dead Talents Society, 2024) procura reproduzir o mesmo impacto de Os Fantasmas Se Divertem, de Tim Burton, de 1988: o senso de inovação, novidade e humor subversivo, e a construção de mundo pós morte totalmente único. O filme revela a tendência do século XXI de ver a morte como evento absolutamente banal. Tão banal como o próprio cotidiano dos vivos que abandonamos após a morte. E na atualidade, os ansiosos desafios virais da cultura Tiktok. O Grande Além tomado por talk shows, celebridades e vídeos de influenciadores, reality shows sobre estilo de vida, programas de competição ou programas de caça-fantasmas. Fantasmas buscando fama e tentando se tornar lendas urbanas. Para evitar o esquecimento — no mundo dos fantasmas, um evento existencial que pode ser a segunda morte: o apagamento etérico.
Que este humilde blogueiro
saiba, até hoje nenhum cineasta retornou do Grande Além para produzir seja um documentário
ou uma narrativa baseada em experiências reais na existência pós-morte. Tudo o
que temos são narrativas baseadas em chamadas Experiência de Quase-Morte (EQM)
– conjunto de experiências ou sensações associadas a situações de morte
iminente: sensação de paz interior, de flutuar acima do corpo físico,
visão de seres espirituais, viajar num túnel com intensa luz no fundo etc. Relatos
mesclados com profunda simbologia arquetípica que se esgueira na Ciência.
Dentro da Cinetanatologia
(o estudo das representações fílmicas do pós-morte), na área de cinema e
audiovisual quando decidimos fazer uma produção ambientada naquilo que achamos
ser o pós-vida, ficamos conhecendo mais sobre a vida dos vivos do que a dos
mortos.
Isso porque as diferentes
maneiras como figuramos a vida dos mortos refletem as ansiedades culturais,
políticas, econômicas, avanços tecnológicos e crises religiosas e espirituais
de cada época. Assim como a arte, podemos considerar as representações do pós-morte
como um sismógrafo do mundo dos vivos.
Por outro lado, apesar das representações do céu, da morte, e da
existência pós-morte se alterarem de acordo com o imaginário de cada época, uma
fórmula básica se mantém, a partir da qual se criam diversas narrativas e
variações: personagem principal morre, chega no “céu” (algum espaço
intermediário entre a Terra e o céu, limbo, antessala celestial ou a própria
plenitude celeste etc.) e é submetido a algum tipo de julgamento
(revê sua própria vida, mentores ou entidades superioras o julgam, retorna para
a vida para uma “segunda chance” etc.).
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Mas as representações do além-túmulo se alteram de acordo com o zeitgeist.
Mas basicamente há dois tipos de representação: os céus e infernos no pós-morte
no cinema e audiovisual variam entre representações objetivas (espaços
clássicos que vão de anjos, nuvens ou grandes prisões infernais a cidades ou
organizações hierárquicas) a solipsistas (haveria inúmeros céus e infernos
pessoais, espaços etéricos moldados de acordo com nossas vontades, sonhos,
fantasias ou culpas, ressentimentos, medos e ansiedades).
Porém, é marcante que a partir do filme Amor Além da Vida
a representação da existência pós-morte passou a ser mais “plástica” e
solipsista: os céus são criados por projeções psicológicas dos personagens a
partir dos seus sonhos, desejos e sentimentos.
A partir da década de 1980 temos a expansão do capitalismo de
acumulação flexível, terceirizado, o crescimento da financeirização e o
desenvolvimento da Internet e tecnologias virtuais e de simulação.
O que teríamos seria um anjo caído, desejoso em criar seu
próprio mundo para assim poder contornar as recusas que este lhe impõe. Anjos
solipsistas, imersos em si mesmos em ambientes virtuais altamente plásticos e
moldáveis habitados por avatares e com a possibilidade de criação do próprio
cibermundo pessoal – leia FELINTO, Erick, “A Tecnoreligião e o
sujeito pneumático no imaginário da cibercultura”, In: Revista Alceu v.6 -
n.12, jan/jun., 2006.
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Mesmo nessa mudança histórica das representações do pós-morte
(das objetivas para as solipsistas), há ainda o respeito ou o horror metafísico
pelo Grande Além – de qualquer forma, sair dessa vida significa um divisor de
águas radical, partir para um outro mundo cuja natureza é totalmente diferente
daqui.
Porém, o século XXI vê o crescimento do número de filmes nos
quais a morte é um evento absolutamente banal. Tão banal como o próprio
cotidiano dos vivos que abandonamos após a morte.
Como vimos em postagem anterior, a série Forever seria um
exemplo: reduz tudo à banalidade, a uma linha de continuidade entre o mundo dos
vivos e dos mortos – clique aqui.
Mas o filme taiwanês Sociedade dos Talentos Mortos (Dead
Talents Society, 2024) leva essa característica do subgênero ao paroxismo: morremos
para encontrar o pós-morte moldado pela mesma ansiedade característica da
cultura Tiktok – na qual compartilhar histórias, talentos e ideias se torna um
desafio viral: vídeos curtos, com dublagens, coreografias, clipes e cenas de
humor devem similar uma marca pessoal. Sob pena de desaparecer e ser esquecido.
O problema é que se nos mundos dos vivos significa apenas
desaparecer no horizonte das redes sociais, no mundo dos fantasmas significa
literalmente ser apagado da face da existência.
Sociedade dos Talentos Mortos é uma espécie de
reinterpretação de Os Fantasmas Se Divertem, de Tim Burton, para a
geração Tiktok. Só que ao invés de manuais para ensinar fantasmas a assustar
invasores vivos de suas casas, aqui temos influencers, redes sociais do Além, programas
de TV premiando com o Oscar da Assombração e o sonho de um fantasma de se
transformar em uma “lenda urbana” do nível da “Loira do Banheiro”: criar uma
assombração memorável, que acabe se tornando numa lenda entre os vivos.
Ou... será riscado da existência etérica.
O Filme
Para os fãs da comédia Os Fantasmas Se Divertem de Tim Burton de 1988, a sequência de 2024 é
um exercício divertido de nostalgia, reunindo personagens que não estavam na
tela grande há 35 anos. Mas Beetlejuice 2 é principalmente um
exercício de ecoar o passado: o que estava faltando era o choque e a surpresa
que vieram com o primeiro filme, o senso de inovação, novidade e humor
subversivo, e a construção de mundo totalmente único em torno das exasperações
da vida após a morte.
Isso é o que não falta em Sociedade dos Talentos Mortos –
parece reproduzir o mesmo impacto da produção de Tim Burton de 1988.
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O diretor John Hsu aborda uma variedade ampla o suficiente de
elementos para manter os espectadores curiosos garantindo a pegada de sátira
social de cena para cena. Seja satirizando talk shows, personas e vídeos de
influenciadores, reality shows sobre estilo de vida, programas de competição ou
programas de caça-fantasmas, cada fio da história volta para um punhado de
fantasmas buscando fama e fortuna — e evitando o esquecimento — tentando se
tornar lendas urbanas.
A superestrela reinante, a "ghostress" Catherine
(Sandrine Pinna), ganhou prêmios no “Golden Ghost” e grande aclamação como a
diva contorcionista por trás de uma clássica assombração de hotel. Mas sua
protegida Jessica (Eleven Yao) recentemente a superou com uma nova inovação em
assustar mortais: um vídeo viral na internet que permite que Jessica pule dos
computadores das pessoas para assustá-las.
À medida que a rivalidade esquenta, uma jovem recém-falecida
identificada como "The Rookie" (Gingle Wang) entra na mistura, mas
descobre que não tem presença ou confiança para assustar as pessoas.
O fracasso de Rookie em audições de fantasmas e suas tentativas
de assombração constrangedoras e sem entusiasmo deixam sua existência em risco.
Fantasmas são ligados ao mundo dos vivos por meio de objetos significativos, e
o dela foi perdido, então logo ela desaparecerá no nada. Ela só pode continuar
na vida após a morte se provar lucrativa para uma corporação predatória
geradora de medo, o que lhe dará um passe para continuar interagindo com o
mundo dos vivos.
O foco em sustos como uma forma de moeda e assustadores
bem-sucedidos como as maiores celebridades do mundo remonta ao favorito animado
da Pixar , Monstros S.A. , mas Hsu e o co-roteirista Tsai
Kun-Lin estão se referindo a muito mais do que isso.
Sociedade dos Talentos Mortos baseia-se em lendas urbanas
reais, décadas de cinema de terror asiático, vídeos virais online, vídeos de
ídolos pop e reality shows. Segue a competição entre Catherine, Jessica e
Rookie por meio de uma variedade de lentes e abordagem metalinguística. Principalmente
como fosse uma série de programas de TV que outros fantasmas estão assistindo.
Rookie se junta a um grupo de desajustados liderados pelo agente
de talentos sombriamente positivo Makoto (Chen Bolin). Juntos, eles tentam
salvar a carreira de Catherine, derrotar a sorridente e paternalista Jessica e
manter Rookie longe do esquecimento – e da segunda morte: o apagamento etérico.
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Morte e resignação
Em Sociedade dos Talentos Mortos a fórmula básica que descrevemos
acima permanece, mas com sutis mudanças: a protagonista morre e chega ao “céu” para
se submeter a um tipo de julgamento. Mas não moral (realizações, atos bons,
como ajudou os outros etc.), mas performático: ela tem que criar uma marca para
ser memorável. Assim como a meritocracia no mundo dos vivos – dessa maneira o
filme traduz o conceito de “mérito”: realizações para não ser esquecido.
Para Sociedade dos Talentos Mortos não há mais nada de espetacular
ou de aprendizado moral ou metafísico, como em Amor Além da Vida -
mundos plásticos criados pela culpa, desespero ou virtude, ou infernos ou
paraísos íntimos.
Assim como a série Forever, Sociedade dos Talentos Mortos reduz
tudo à banalidade, a uma linha de continuidade entre o mundo dos vivos e dos
mortos. A morte não é uma libertação. Seja por recompensas, punições, bem ou
mal. Há uma estúpida continuação, nada a aprender, nenhum Deus, anjos ou seres
iluminados para nos julgar ou ajudar.
Comédias sobre o além-túmulo sempre tiveram o viés moral. Apesar
do viés crítico inicial e, assim como Tim Burton, manter a empatia de ficar ao
lado dos alienados e rejeitados, a uma incômoda atmosfera de resignação e
niilismo: a morte apenas aumenta os problemas deixados lá atrás entre os vivos.
Ficha Técnica |
Título: Sociedade dos Talentos Mortos |
Direção:
John Hsu |
Roteiro: John Hsu, Tsai
Kun-Lin |
Elenco: Chen Bolin, Sandrine
Pinna, Gingle Wang |
Produção: Activator
Marketing Company |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2024 |
País: Taiwan |