A grande mídia escandaliza-se com o estupro coletivo de uma menina no Rio de Janeiro e clama por um país menos machista e sexista. Mas por anos deu espaço para frotas e gentilis, enquanto sua programação sempre foi patrocinada por anúncios onde a mulher-objeto-fetiche é a isca principal para produtos e serviços. A chamada cultura do estupro deve ser contextualizada no surgimento do “machismo 2.0”: uma nova forma de sexismo cujas bases estão lá na velha ordem patriarcal, mas que agora é repaginado e turbinado pelo complexo sociedade de consumo/indústria publicitária/grande mídia, capazes de criar uma nova cadeia de produção imaginária: voyeurismo-exibicionismo-sadismo. Imaginária, mas com sérias repercussões no mundo real.
O que mais chama a atenção no debate atual sobre a
chamada “cultura do estupro”, principalmente com o impacto das notícias sobre o
episódio do estupro coletivo ocorrido em uma comunidade no Rio de Janeiro, é que
em todas as falas aponta-se unicamente para uma cultura “machista e sexista”
arcaica e retrógrada que seria a responsável pelas 50 mil notificações anuais
de crimes sexuais no País.
Mas são poucos aqueles que lembram de fatores mais
contemporâneos: a sociedade de consumo e a cultura midiática. Aproxima-se a
cultura do estupro de uma “cultura da superioridade” resultante de uma educação
onde para os meninos é mostrada a sua suposta superioridade natural em relação
às meninas. Porém, essa cultura machista é restrita à crítica a uma ordem
patriarcal e masculina. Uma reação da cultura machista ao crescente
protagonismo feminino na sociedade.
Como sempre, a grande mídia põe à mostra sua
natureza esquizofrênica ao repercutir o episódio:
(a) Escandaliza-se, mas por outro lado nos últimos
anos deu espaço midiático a frotas, gentilis, felicianos, a chamada bancada da
bala, da Bíblia e do Boi no Congresso e toda sorte de personagens mais
retrógrados, retirados do fundo da caixa de Pandora para afrontar,
desestabilizar e finalmente derrubar o governo Dilma;
(b) Tem sua grade de programação diária patrocinada
por filmes publicitários que promovem produtos e serviços onde a mulher é
exposta como isca, objeto sexual ou colocada em plots onde é apresentada como
naturalmente submissa ao poder físico ou financeiro masculino. O telejornal
mostra âncoras e entrevistados indignados para pouco tempo depois mostrar o
anúncio do “vai verão, vem verão” de uma conhecida marca de cerveja com uma
mulher segurando uma bandeja em trajes sumários.
Produção imaginária
Acredito que é a partir dessa natureza esquizoide
da grande mídia que a questão da cultura do estupro deve ser discutida. Mais
precisamente, a partir da ordem sociedade de consumo/indústria publicitária/grande
mídia. Uma ordem mais poderosa e que se sobrepôs à ordem patriarcal, a origem
de todo o machismo, por assim dizer, tradicional que estaria por trás do
revoltante episódio do estupro coletivo.
Esse machismo da velha ordem patriarcal deu lugar a
um, digamos, machismo 2.0, dessa vez repaginado e turbinado pela sociedade de
consumo e indústria publicitária para ser veiculado pela grande mídia.
Estupro não é uma questão de prazer ou tesão, mas
de poder: poder de dominar o corpo do outro (sadismo), para mostrá-lo como uma conquista em vídeos ou fotos em
redes sociais (exibicionismo) para o
prazer anônimo de onanistas (voyeurismo).
Essa cadeia de produção imaginária é análoga a da
promoção do consumo, mudando apenas a ordem dos elementos da cadeia: pessoas que veem imagens distantes do objeto
do desejo nos anúncios (voyeurismo)
sonhando possuí-los e ostentá-los (exibicionismo)
como moeda social para se impor sobre o outro (sadismo).
Freud explica?
Esse machismo 2.0 se fundamenta nas mesmas origens da
ordem patriarcal, em torno do chamada matriz fálica descrita pela psicanálise
freudiana – o primeiro simbolismo introjetado pela criança, o simbolismo
universal de poder sobre o qual o papel sexual masculino será estruturado. O
Falo como a “premissa universal do pênis”, a louca crença infantil que não
existe diferença entre os sexos, todos têm um pênis. Existe apenas um órgão
genital, e tal órgão é masculino.
Essa fantasia de origem narcísica primária é
diluída com a descoberta do outro: algumas crianças não têm pênis o que para o
homem corresponderá à fantasia da “perda do pênis” ou aquilo que Freud
descreveu como “complexo de castração”, o ponto frágil da afirmação sexual
masculina.
Esta imagem da
perda permanecerá para sempre associada ao psiquismo masculino de forma
traumática e o medo da castração continuará perseguindo a realização sexual
como um fantasma. No adulto, o medo da castração não se manifestará dessa forma
tão literal: a castração se manifestará no medo da impotência (seja sexual,
financeira ou social). Por isso, o homem estará condenado a ter que provar
continuamente que jamais será castrado, será empurrado para situações onde terá
de, continuamente, provar a masculinidade e a potência fálica: no desempenho
sexual atlético, nos ganhos financeiros, na habilidade em manipular símbolos
de status e prestígio, etc.
Esta ansiedade vai
marcar negativamente a qualidade das relações com o sexo oposto. A forma de o
homem perceber a mulher será prejudicada ao ver nela nada mais do que um campo
de provas da potência fálica. A ansiedade da comprovação fálica empurrará o
psiquismo masculino a procurar não a
mulher, mas mulheres, num sentido
genérico e abstrato. O investimento afetivo toma‑se difícil e transitório.
A simples presença
da mulher torna‑se uma ameaça à segurança fálica masculina. Ela significa, per si, a cobrança de uma tomada de
posição ou a castração em potencial: a possibilidade do fracasso. Por isso ela
deve ser dominada, neutralizada. O corpo feminino deve ser reduzido a
fragmentos, a objetos, para ser melhor dominado. É o surgimento do fetichismo sexual. O corpo real feminino
é neutralizado pelo fascínio por fragmentos: pés, olhos, cabelos, ou acessórios
associados a alguma destas partes como sapatos, luvas, etc.
Machismo 2.0 e a cultura do estupro
O que era fragilidade e ansiedade originada no medo
da castração, com o complexo sociedade de consumo/publicidade/mídia tudo isso é
amplificado com o pânico da castração.
A
presença constante da mulher como objeto promotor de mercadorias de luxo ou de
marcas corresponde ao desafio da potência masculina: “quer uma mulher como
essa? Pois então compre um carro como esse. Prove que jamais será castrado!”.
Para Freud a ansiedade da castração jamais é resolvida no psiquismo masculino,
tornando-se uma inesgotável ferramenta de promoção de consumo de bens com alto
valor agregado.
A cada
anúncio de cerveja com mulheres que servem aos homens com uma bandeja, a cada
filme com uma mulher fascinada olhando para um carro dirigido por um homem
vitorioso e a cada feira ou exposição com atraentes modelos se oferecendo como
isca ou miragem, a mulher torna-se na atualidade num suporte/meio/condutor da
promessa de realização da potencia fálica.
Se na
antiga ordem patriarcal, a mulher sempre foi uma ameaça que tinha de ser
neutralizada como um objeto (seja como dona de casa sem direitos, seja como prostituta
reduzida à condição de objeto-fetiche), hoje com a ordem globalizada de consumo
a mulher foi promovida a uma moeda genérica de troca.
Neutralizar a ameaça feminina
Essa
generalização da mulher na publicidade como estratégia para explorar o pânico
da castração é visível com a regressão das fantasias fálicas às fantasias
orais. Se no imaginário masculino isso esteve sempre latente (em expressões “comer
a mulher”, “mulher gostosa” etc.) hoje é ampliado ao associar essa experiência
ao próprio produto: a cerveja é a mulher que você bebe, o sundae com fritas do
Mac Donald’s é a experiência da primeira namorada, a compra impulsiva com o
cartão de crédito que a modelo tem próximo à boca etc.
O medo
da castração cresce exponencialmente com a promoção da mulher a isca
generalizada de produtos e serviços. A mulher submetida a uma nova cadeia de
produção imaginária na seguinte sequência: voyeurismo-exibicionismo-sadismo.
As
formas de perversão sexual e de objetos-fetiche sempre foram estratégias do
psiquismo para neutralizar a ameaça que a mulher representa à segurança fálica
masculina. Mas hoje, quando a mulher tornou-se onipresente através de voz,
corpos e olhares, a cobrança à fragilidade do medo da castração tornou-se muito
maior.
A
crescente violência masculina é a revanche contra a ameaça da impotência que a
sociedade de consumo o ameaça ao tornar todo produto ou serviço numa promessa
fálica nunca realizada. Impotentes e castrados, homens veem mulheres e produtos
inalcançáveis, restritos apenas a uma elite de vencedores.
O medo
da castração global transforma-se em revanche masculina local: o estupro, o
assédio, a violência - encoxar uma mulher no metro lotado, espancar a namorada
por ciúmes, o estupro oportunista de uma mulher alcoolizada, a separação
hipócrita das mulheres em tipo “para casar” e daquelas que são “para comer” e
assim por diante.
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