domingo, abril 24, 2016

"Isso Muda O Mundo" e as bikes metalinguísticas do Itaú


“Isso muda o mundo” estava estampado em uma bike patrocinada por um banco que parou ao meu lado em um semáforo. Por que essa necessidade de sobrecodificar (metalinguagem + fático) nossas experiências e escolhas através do Marketing? Uma pedalada deixa de ser uma experiência despretensiosa para tornar-se um gesto autoconsciente que exige comunicação. Alguns pesquisadores apontam para esse fenômeno de comunicação baseado em uma nova religião confessional (cujos novos apóstolos são os profissionais da comunicação) baseada na fé de que a soma de escolhas isoladas resultará em um mundo melhor. Um mundo onde cada pequeno gesto deve ter um significado importante para ser comunicado a “Deus”.

Como toda manhã, pedalava minha bike para lecionar na Universidade. Parei em um semáforo na Avenida Faria Lima, São Paulo. Enquanto aguardava o sinal verde para acessar a ciclovia, parou ao meu lado outro ciclista, com uma daquelas bikes laranjas do Itaú. Olho para o quadro da bike, onde figurava em destaque um adesivo com os dizeres “Isso muda o mundo”.

O sinal abriu e tomei o caminho da ciclovia até a Universidade com essa situação insólita martelando na minha cabeça: Ok! Ir ao trabalho de bicicleta melhora a qualidade de vida, um carro a menos nas ruas da cidade e assim por diante. Mas não basta apenas a ação em si, a opção espontânea de uma pessoa. O marketing do banco que patrocina o serviço de aluguéis de bicicletas Bike Sampa tem que sobrecodificar com uma metalinguagem, como se o ciclista a cada pedalada declarasse para todos “vejam como estou mudando o mundo!”.

Para além da crítica à visão de mundo positivista por trás da campanha criada pela Agência África em 2013 para o Itaú (como se o Todo fosse a simples soma das partes, como se cada pequena ação fosse somada para resultar numa transformação coletiva), há um fenômeno cultural pós-moderno: o fato de estarmos imersos numa metalinguagem generalizada, onde as nossas atitudes, gestos e escolhas estivessem vinculados na ênfase em estar em contato com algum destinatário genérico.

É o fenômeno da sobrecodificação, resultado da fusão da metalinguagem (a comunicação que fala dela mesma) com o fático (a comunicação focada no contato).

O filósofo e escritor catalão Xavier Rupert de Ventós assim descreve essa “vertigem do sentido” resultante dessa fusão:
Acordei e busquei ao redor um acontecimento que não tivesse se transformado em notícia, uma função não codificada por uma instituição, um gesto que não pertencesse a uma linguagem não-verbal, uma prática que não fosse uma profissão. Saí ao seu encontro mas em todos os lugares me davam gato por lebre: pedia um livro e me ofereciam uma obra, necessitava de um método e ensinavam-me uma metodologia, queria um país e me encontrava em um Estado, me bastava um pênis, mas me asseguravam que eu tinha nada menos do que um Falo – o elemento constitutivo, diziam, da ordem simbólica e cultural. VENTÓS, Xavier Rubert. De La Modernidad, Barcelona: Ediciones 62, 1980 p. 9.

Sobrecodificação espiritualista


Para Ventós, uma espécie de “espiritualismo” estaria impregnando nossas práticas e experiências como consequência da fusão entre o físico e o semântico. O sentido de cada ação não aparece mais como resultado mas como procuração daquela experiência – os objetos do mundo e nossos atos parecem que não existem como coisas em si mesmas, mas como experiências que clamam por comunicação.

Tudo precisa ser processado semioticamente, sobrecodificado pelo marketing, publicidade, informação etc.

Em um restaurante fast food vemos um copo com refrigerante onde pode-se ler: “mate a sede”. A bandeja com os pedidos do cliente agora é uma “lâmina de bandeja” com informações sobre “saúde e equilíbrio”, “criança e segurança” e “qualidade de vida”.

Um lanche é um “kit lanche”, um sorriso “melhora seu dia” e... uma pedalada muda o mundo.

Claro que poderíamos contra-argumentar que o ciclista sobre a bike patrocinada pelo Itaú pouco ligava para os dizeres do adesivo no quadro. Provavelmente sua cabeça já estava concentrada nos afazeres que teria quando chegasse ao seu trabalho. Mas a questão é outra: a visão de mundo subliminar a essa sobrecodificação diária no qual estamos imersos em cada pequeno gesto ou aquisição de produto ou serviço.


Uma nova religião


E que visão de mundo é essa? Paradoxalmente é religiosa, uma espécie de ascetismo mundano inscrito na ordem do consumo. Derivado da ética protestante tal qual descrita por Weber, essa forma de ascetismo é bem diferente da ética cristã cujo impulso era voltado para o interior – “um monge que flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros”, escreveu Richard Sennett no livro O Declínio do Homem Público.

Bem diferente, na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus mas aos outros a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um merecedor das graças divinas.

Isso acaba se inserindo numa cultura narcísica atual como um impulso confessional como uma performance do eu interior diante dos outros. Cada gesto ou objeto colocado nesse mundo não pode existir per se, mas deve comunicar o porquê da sua existência para “Deus” ou para todos ao redor.

Espiritualização do consumo


Essa “espiritualização” do consumo e a necessidade da sobrecodificação de tudo criaria uma inédita forma de consumismo, - o consumismo “autoconsciente”. Não estamos mais na ordem do consumo pela busca do signos imediatos de status ou de simples acumulação retentiva de objetos como um Tio Patinhas.

Estamos agora no plano espiritualizado da fé – “Isso muda o mundo” inscrito no quadro da bike ou “mate a sede” estampado no copo de plástico criam essa metalinguagem confessional. Não ando apenas de bicicleta, estou fazendo a diferença – e tenho a necessidade de confessar isso a “Deus”; não bebo apenas um refrigerante, mas mato a sede de forma eficiente – e mais uma vez tenho a necessidade de confessar ou comunicar através do design de um copo.

Como consequência, Ventós fala em “perversão dos sentidos” como se a energia, o uso e a exploração indiscriminada do sentido estivesse esgotando suas fontes. Ironicamente, quanto mais propagamos gestos espontâneos, despretensiosos, naturais, puros ou sinceros, mais sintéticos, autoconscientes, simulados ou fingidos nos tornamos.

Irracionalismo e a Nova Jerusalém


Mas, no plano do social e do coletivo, essa nova forma de consumismo produz o irracionalismo pelos gestos motivados agora pela fé: acreditamos que um gesto fará a diferença, que as mudanças ocorrerão pela simples adição das escolhas feitas por indivíduos genéricos para os quais comunicamos também nossas escolhas. Quando esses gestos se somarem, magicamente, de uma hora para outra, ocorrerá um salto que transformará a sociedade. A soma dos crentes construirá uma Nova Jerusalém.

Da ação coletiva consciente pela mobilização pública e política, a sobrecodificação dilui a sociabilidade em hashtags e outras formas fáticas de comunicação. “Estou fazendo a minha parte”, poderia dizer aquele ciclista com o qual me deparei no sinal vermelho se fosse questionado sobre os dizeres daquele adesivo colado na bike.

Esse controle semântico por meio da metalinguagem e do fático não é mais codificado por Deus ou pelas religiões tradicionais como no passado. Agora, é pelo marketing e publicidade que têm fé que qualquer transformação social ocorrerá pela sobrecodificação dos slogans.

Da mesma maneira como alguém acreditasse que pudesse frear um carro segurando apenas no ponteiro do velocímetro.

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