sábado, abril 02, 2016

Em "O Predestinado" somos todos prisioneiros dos paradoxos do Tempo


A noção de Tempo não passa de uma convenção lógica criada pelo homem para organizar os eventos da sua existência. Por isso, guarda uma série de paradoxos, assim como os sistemas lógicos matemáticos, mostrando seus limites e insuficiências. O filme australiano “O Predestinado” (Predestination, 2014) trata de um desses paradoxos: o paradoxo da predestinação – passado, presente e futuro não se sucedem mas coexistem e se interagem, condenando-nos à condição de prisioneiros em espécies de armadilhas temporais. Ciclos viciosos cuja única fuga é através da condição existencial de estranhamento, alienação e investigação paranoica. A condição de sermos como Detetives e Estrangeiros para escaparmos dessas armadilhas. Assim como certa vez o matemático Alfred Tarski resolveu o célebre Paradoxo do Mentiroso de Epiménides. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.


Uma das coisas fascinantes dentro da Filosofia é demonstrar os limites da lógica com seus paradoxos e incompletudes como, por exemplo o Teorema da Gödel que demonstra as limitações inerentes a todo sistema matemático. Ou o famoso Paradoxo do Mentiroso de Epiménides onde uma afirmação produz sua própria negação, produzindo um raciocínio circular, recursivo e sem solução.

“Todo cretense (natural de Creta) é mentiroso”, disse o cretense Epiménides. Mas se a frase for verdadeira, o filósofo estaria nos contando uma mentira. Mas se for mentira, a frase é verdadeira. Mas não pode ser, pois todo cretense é mentiroso, e assim por diante num ciclo vicioso sem solução.

O Tempo também é uma forma lógica de organizar nossa existência e que, portanto, também guarda paradoxos como, por exemplo, a relatividade tempo/espaço de Einstein ou o “paradoxo da predestinação” de que trata o filme O Predestinado.

O filme é uma produção australiana dirigida Michael e Peter Spierig baseada num conto do escritor de ficção científica Robert Heinlein chamado All You Zombies – adianto que a narrativa toma o termo “zumbis” apenas no sentido metafórico.


O paradoxo temporal da predestinação sempre foi a própria essência dos filmes sobre o tempo do período modernista do cinema e séries de TV como O Túnel do Tempo ( Time Tunnel, 1966-67) onde os protagonistas Doug e Tony vagavam perdidos na História, tentavam evitar tragédias mas a inevitabilidade da flecha do tempo sempre conspirava contra eles e as coisas acabavam acontecendo tal como foram descritas nos livros de História. Alterar eventos históricos poderia criar paradoxos catastróficos que, inclusive, poderia fazer desaparecer os próprios sujeitos das alterações.

O Tempo Pós-Moderno


Mas O Predestinado é um filme pós-moderno e, como tal, vê o tempo dentro de uma perspectiva mais flexível onde os paradoxos podem ser confrontados e, assim, os protagonistas sempre podem criar novos passados ou futuros como nos filmes da trilogia De Volta para o Futuro, Primer (filme analisado pelo Cinegnose - clique aqui), Time After Time, Looper etc.

O Predestinado nos mostra a luta de um protagonista que tenta enfrentar esse paradoxo onde ele próprio figura o problema e a solução da seguinte forma: “Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? O Galo!”.

Como o leitor perceberá, o filme resolve o paradoxo de maneira análoga à célebre solução ao paradoxo do mentiroso dada pelo lógico e matemático polonês Alfred Tarski: a frase do cretense mentiroso implica num nível metalinguístico, nível superior na hierarquia semântica onde conseguimos distinguir afirmações do cretense e sobre cretenses. Ou de “ovo”e “galinha” e sobre galos.


Seguindo a tradição dos filmes gnósticos, a solução somente poderá ser encontrada no interior do próprio protagonista quando perceberá que o paradoxo não é produzido por alguma entidade estranha chamada Tempo, mas por uma própria luta interior que parece sempre mantê-lo prisioneiro em um tipo de armadilha temporal.

O Filme 


O Predestinado é um daqueles filmes difíceis de fazer uma resenha: qualquer coisa que possa ser dita corre o risco de transformar-se num gigantesco spoiler e prejudicar a experiência da narrativa. Mas vamos ficar nos aspectos mais externos.

O filme acompanha um “agente temporal” de uma espécie de agência governamental secreta no futuro (nos anos 1990) formada por um grupo de elite de pessoas que viajam através do Tempo a fim de prevenir crimes horríveis antes que eles ocorram.

O filme começa quando vemos um desses agentes tentando desarmar uma bomba de um terrorista chamado “O Detonador Sussurrante” que explodirá quarteirões de Nova York em março de 1975. Ele não consegue e retorna para o futuro com o rosto desfigurado pela explosão. Na sede da agência é feita uma cirurgia plástica para recuperar seu rosto, quando finalmente vemos o rosto do protagonista feito por Ethan Hawke.

Obcecado em descobrir quem é o terrorista que sempre consegue vencê-lo, o agente retorna para a Nova York dos anos 1970, dessa vez como um bartender. Nesse bar ele começa uma conversa com um cara com uma aparência ligeiramente andrógina apenas conhecido como “A Mãe Solteira” – Sarah Snook. Ele ganha a vida escrevendo contos falsos sobre confissões intimistas femininas para leitoras desocupadas em revistas populares.

Em troca de uma garrafa de uísque ele promete contar para o bartender “a melhor história que você já ouviu”, na verdade a sua própria história que começa quando foi largado ainda bebê na porta de um orfanato em 1945.


Lá ele (na verdade "ela") cresce com o nome de Jane. Desde o início ela demonstra qualidades que a destacam das outras meninas: inteligência, determinação e força física. O que desperta interesse do enigmático Mr. Robertson (Noah Taylor), agente de uma agência governamental chamada SpaceCorp, agência dos anos 1960 supostamente destinada para formar mulheres que no futuro farão missões de resgate e socorro a astronautas no espaço.

Porém Jane se apaixona por um homem misterioso que a engravida e desaparece deixando-a sozinha e sem emprego – mulheres com filhos ou família não é o perfil procurado pela SpaceCorp. E para piorar ainda mais, seu bebê é sequestrado do berçário do hospital o que conduzirá a mais uma descoberta que causará uma reviravolta na sua vida.

Detetives e Estrangeiros atenção: perigo de spoilers


Fazer as conexões entre esse bartender, Jane, SpaceCorp, e Mr. Robertson será o desafio do espectador para resolver, junto com o protagonista, o chamado paradoxo da predestinação.

Os leitores do Cinegnose rapidamente perceberão que o protagonista do filme se enquadra no personagem gnóstico do Detetive: aquele que transforma a sensação de estranhamento com o mundo em um mistério que precisa ser desvendado. Mas quanto mais puxa o fio da meada, mais para sua surpresa cai em si que o mistério tem a ver com ele mesmo.

Estamos aqui no terreno clássico dos detetives, seja aqueles dos filmes noir (Relíquia Macabra, 1941) ou no gnóstico cult Coração Satânico (Angel Heart, 1987) onde na verdade o protagonista descobre que na verdade sempre esteve em busca de si mesmo.

Uma das chaves de compreensão do filme é a condição de todos os personagens da história: solitários, perdedores, gente sem filhos, família e nada a perder. São Estrangeiros, aqueles que experimentam a experiência do estranhamento e da alienação. A sensação de ser errante e deslocado no ambiente familiar em que vive.

Em muitos aspectos essa será a possibilidade do protagonista resolver o paradoxo temporal da predestinação, lembrando a forma como o paradoxo do mentiroso foi resolvido pelo matemático polonês a quem nos referimos acima.


A condição existencial do Estrangeiro é aquela que permite o distanciamento da própria vida pelo estado alterado da consciência criado pela melancolia que produz a sensação de estranhamento – a condição única de vermos a vida em perspectiva como num olhar de sobrevoo.

Um olhar metalinguístico, distanciando-se de si mesmo e criando, num relance, a totalidade na qual o protagonista está inserido. Isto é a própria metalinguagem, nível semanticamente superior da linguagem. Tal como a solução proposta por Alfred Tarski para o paradoxo de Epiménides.

E que totalidade é essa sugerida pelo filme O Predestinado? Uma perturbadora condição onde passado, presente e futuro coexistem e interagem simultaneamente no aqui e agora. O Tempo não seria mais uma sucessão de momentos, mas uma complexa tramas de paradoxos que nos prenderiam a uma espécie de eterno retorno. E a metalinguagem, estranhamento e alienação seriam a chave para nós, Detetives e Estrangeiros.


Ficha Técnica


Título: O Predestinado
Diretor: Michael e Peter Spierig
Roteiro:  Irmãos Spierig baseado no conto de Robert Heinlein
Elenco:  Ethan Hawke, Sarah Snook, Noah Taylor
Produção: Screen Australia, Blacklab entertainment
Distribuição: Stage 6 Films
Ano: 2014
País: Austrália


Postagens Relacionadas











Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review