Vaiado no
Festival de Cannes e trucidado pela crítica, o filme de estreia na direção do
ator Ryan Gosling, “Lost River” (2014), teve um destino injusto. Filmado em
Detroit, Gosling transformou-a numa cidade gótica que lembra Louisiana pós
furacão Katrina – crise econômica, ruínas e um mistério que envolve uma parte
submersa pela construção de uma represa na fictícia cidade de Lost River. Por
trás das camadas de estilizações da fotografia, personagens e cenografias (que
fizeram a crítica chamar o filme de “um David Lynch de segunda mão”), estão
alusões à crise econômica dos EUA pós explosão da bolha especulativa de 2008
combinados com misticismo gnóstico: qual o mistério que torna os protagonistas
prisioneiros daquela cidade? O filme tem estreia prevista nos cinemas
brasileiros em julho desse ano.
Recentemente
poucos filmes foram tão destruídos pela crítica como Lost River, produção que marca a estreia na direção do ator Ryan
Gosling - A Passagem (2007) e Drive
(2011). Quando estreou no Festival de Cannes em 2014 foi muito mal recebido
pelo público: nos créditos finais a plateia respondeu com assovios e vaias como
uma torcida irritada em um estádio de futebol. Depois disso Gosling e seu filme
desapareceram e nada foi falado deles por dez meses.
Mas
agora Lost River reaparece com nova
edição (foram retirados 10 minutos da edição original) para ser exibido em
alguns cinemas selecionados em Nova York e Los Angeles, além de canais de TV
pay-per-view e arquivos torrent na Internet – no Brasil é esperado nos cinemas
em julho.
Ryan
Gosling nasceu em Londres e cresceu no Canadá. Nas entrevistas sobre o filme,
Gosling conta que, para ele, os EUA eram como “uma boneca pin up em cima de uma
geladeira”. Ele então ficou fascinado pelas fotos da cidade de Detroit,
fachadas de casas e prédios deteriorados ou em ruínas pela depressão econômica
de um lugar que outrora foi a capital da indústria automobilística mundial.
Por
isso Lost River, filmado naquela
cidade, transformou-a em uma Detroit gótica misturada com uma atmosfera de
Louisiana após devastação do furação Katrina em 2005 e depressão econômica dos
EUA pós-crise do mercado imobiliário de 2008. Para Gosling, Lost River é uma “versão sombria do
filme Goonies” (clássico
infanto-juvenil dos anos 1980) com atmosfera e estética de David Lynch do filme
Veludo Azul de 1986.
Por
isso o filme é estranho e de difícil digestão para os críticos que acusaram
Ryan Gosling de fazer um “Veludo Azul de segunda mão sem pé nem cabeça” - sobre esse conceito de "filme estranho" (weird movie) clique aqui.
Porém,
para este blog Cinegnose a crítica
foi apressada e não percebeu que Gosling fez uma atualização dos grandes
arquétipos da cultura pop (os Detetives, Viajantes e Estrangeiros que povoam o
nosso imaginário pelas suas conexões com a mitologia gnóstica), cujos mestres
como David Lynch foram os primeiros a torná-los mais explícitos no cinema.
O Filme
O título é o nome da cidade fictícia onde o filme passa. As
estradas que saem de Lost River parecem terminar em vasta área que foi inundada
para a construção de alguma espécie de represa. Vemos postes no meio do mato
que terminam na água da represa como fossem pescoços esticados de
plesiossauros, criando um sugestivo cenário.
E o que acontece? Encontramos uma mãe solteira chamada Billy
(Christina Hendricks) que está prestes a perder sua casa depois de um
empréstimo mal feito. Ela visita seu gerente no banco chamado Dave (Ben
Medelsohn) implorando por uma suspensão da execução da dívida.
A solução apresentada por Dave é emprega-la em uma espécie de
clube fechado de cabaré gótico onde mulheres também endividadas atuam em shows
eróticos que simulam automutilação com facas e baldes de sangue para a diversão
de uma clientela formada por homens ricos.
Enquanto isso, o filho mais velho, Bones (Iain De
Caestecker), entra em uma disputa com um gangster chamado Bully (Matt Smith – Doctor Who) por canos de cobre roubados
em prédios abandonados.
Vizinho a Bones mora uma garota chamada Rats - chamada assim
porque tem um rato de estimação. Ela mora com sua avó que passa os dias em
silêncio olhando para um vídeo de casamento (seu noivo morreu durante a
construção da represa) repetidas vezes enquanto os presentes em volta dela
apodrecem.
O ritmo lento da narrativa, os enquadramentos assimétricos e
a fotografia estourada em cores translúcidas criam uma atmosfera estranha com
momentos bizarros e altamente estilizados, lembrando os melhores momentos de
David Lynch em Veludo Azul ou Twin Peaks. Tudo isso sugere que há um
mistério naquela cidade: por que eles não saem dali? Billy fala, sem convicção,
em “lugar onde tive meus filhos” etc.
Mitologias gnósticas
Rat fala em algum tipo de “feitiço” que amaldiçoou a parte
que restou da cidade após a inundação da represa. O fato é que todos parecem
prisioneiros daquele lugar, sugerindo uma mitologia gnóstica parecida com o
filme Show de Truman (o protagonista
vive prisioneiro e cercado por um mar artificial) – isto é, a Terra como parte
de uma prisão cósmica.
Todos prisioneiros: a avó obcecada pelo vídeo do casamento
que passa em looping; Billy prisioneira do empréstimo bancário; Bones
engalfinhado com a sua luta particular contra o gangster Bully e Rat morando em
uma casa cheia de objetos do passado.
O gerente bancário Dave é uma espécie de arconte (na
mitologia gnóstica, entidades auxiliares do Demiurgo – no filme, o próprio sistema
financeiro) que conduz as mulheres em estado de insolvência para o clube gótico
onde serão exploradas para a alegria dos demiurgos milionários.
Por isso Lost River
parte de uma evidente crítica social (a crise econômica dos EUA provocada pela
explosão da bolha especulativa financeira) mas com toques metafísicos da
mitologia gnóstica: todos experimentam o mal estar dessa prisão como detetives, viajantes e estrangeiros – sobre esses arquétipos contemporâneos e
suas conexões com a mitologia gnóstica clique aqui.
Esquecimento, Confronto e Jogo – AVISO DE SPOILERS
Como detetives, terão que se confrontar com alguma coisa
esquecida no passado que está nas fundações daquela cidade (o “feitiço” e a
inundação). Há um enigma ou mistério por trás de toda aquela decadência – “nada
acontece por acaso”, repete Bones. O tema aqui correspondente ao arquétipo do Detetive é o ESQUECIMENTO.
Mas a melancolia que transpassa todos os personagens. Tudo
começa com a relação de estranhamento dos protagonistas com o lugar onde moram,
vivem e se relacionam. São estrangeiros dentro do seu próprio país, vivem um
auto-exílio. Sentem não pertencer àquele mundo, estão em constante mal-estar e
à deriva. O que está errado?
O Estrangeiro
pressente a inautenticidade do mundo em que ele está. Demonstra desdém aos
papéis sociais, padrões, modelos de felicidade. É um melancólico. Pretende se
reconhecer no submundo, nas ruínas, em todos os lugares que estão acabando, no
erro, no suicídio, na morte. Este fascínio pelo universo loser levará o protagonista a um confronto final contra um dos
arcontes (Bully) que mantém o mundo inautêntico que o rodeia. O tema
correspondente ao arquétipo do Estrangeiro é o CONFRONTO.
E como Viajantes, o outro tema é o do JOGO: Billy será
prisioneira dos jogos eróticos de simulação sadomasoquista do cabaré gótico.
Mas o jogo que o arconte Dave proporá para Billy como solução para o empréstimo
fará muito mais do que isso – possibilitará o confronto com seus próprios medos
interiores que a prendem em Lost River (a claustrofobia) ao se submeter ao jogo
erótico da “Concha” nos porões do cabaré.
A sequência da “Concha” (dispositivo onde a mulher fica fechada
numa espécie de molde plástico transparente de um corpo feminino, de maneira
que o cliente faça sexo com ela sem tocá-la) é o ponto alto do filme – Billy
está aprisionada em uma “concha” de plástico, transparente, enfrentando a
claustrofobia e podendo ver simultaneamente o cliente e todo o horror que a
cerca.
Ali está a gnose final que possibilitará aos protagonistas
escaparem de Lost River e de todo esquema corrupto que está “inundando” dessa
vez a parte da cidade que escapou da enchente da represa.
FIM DOS SPOILERS
Talvez o fracasso de crítica de Lost River esteja na suas
camadas de estilizações na composição dos personagens, fotografias e cenários –
na verdade, o filme parece muitas vezes um pastiche dos melhores momentos da
filmografia de David Lynch. Todas essas camadas, digamos assim, chiques e cults
parecem fazer a crítica não perceber os interessantes simbolismos e arquétipos
explorados pelo diretor Ryan Gosling.
Mesmo assim, Lost River é um filme obrigatório,
principalmente como consegue combinar a crítica social dos EUA atuais com
mitologias e arquétipos universais gnósticos.
Ficha Técnica |
Título: Lost
River
|
Diretor:
Ryan Gosling
|
Roteiro:
Ryan Gosling
|
Elenco: Christina
Hendricks, Iain De Caestecker, Matt Smith, Ben Medelsohn
|
Produção:
Bold Films
|
Distribuição:
Warner Bros.
|
Ano: 2014
|
País: EUA
|
Postagens Relacionadas |
|
|
|
|