Cinema,
percepção e memória têm uma longa parceria temática: se a percepção humana
funciona como um mecanismo cinematográfico, como dizia o filósofo Henri
Bergson, compreende-se o fascínio pelo tema da amnésia no cinema. De
Hitchcook a “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” de 2004, “Antes
de Dormir” (2014) é mais um filme dessa longa tradição. Lembra o clássico “Amnésia” (2000) de Nolan – uma mulher não
consegue manter as memórias por mais de um dia e diariamente acorda sem saber
onde está e também sem saber quem é o
homem que dorme ao seu lado. Perda das memórias levam sempre os protagonistas à
condição paranoica. A paranoia é um estado alterado de consciência que pode
levar tanto à autodestruição quanto à libertação das aparências que encobrem a
realidade. A paranoia pode abrir duas portas: a narcísica ou a gnóstica. E é isso que o “Cinegnose”
vai conferir no filme.
Diretor: Rowan Joffé
Plot: Christine Lucas (Nicole Kidman) acorda na cama com um
desconhecido. Ela acha que tem 20 anos e aquilo é o resultado de uma noite de
sexo casual. Vai até o banheiro e se depara com várias fotos em que os dois
estão juntos e quando retorna Ben (Colin Firth) que na verdade ele é seu
marido, Christine tem 40 anos e ela sofre de uma espécie de amnésia
psicogênica: desde um acidente de carro sofrido há décadas, depois de cada
noite de sono, nada se lembra do dia anterior e só restaram flashes ocasionais
dos últimos anos. Ao mesmo tempo, depois que Ben vai ao trabalho, Christine é
tratada sigilosamente por um neuropsicólogo chamado Dr. Nasch que procura incitá-la
a resgatar lembranças do que aconteceu. Aos poucos ela descobrirá que nem tudo
é o que aparenta ser. Um dos dois está mentido.
Por que está “Em Observação” ? – Basta lermos
esse plot para lembrarmos do memorável filme de Christopher Nolan Amnésia (Memento, 2000), onde Guy Pearce é Leonard, um homem que sofre de
perda de memórias de curto prazo e tenta descobrir quem matou sua esposa, em
uma narrativa contada em sentido inverso.
A
perda da memória é um dos temas privilegiados dos filmes gnósticos. O filme Amnésia de Nolan é um modelo de desenvolvimento
do tema nesse gênero de filme. Assim como no Gnosticismo onde o que chamamos de
realidade é uma resultante do nosso sono e esquecimento, também em Nolan o
protagonista eleva o tema da amnésia ao questionamento da própria
concreticidade do real: “Eu tenho que crer num mundo fora da minha
mente. Tenho que crer que minhas ações permanecem tendo um sentido embora não
consiga lembrar qual seja. Tenho que acreditar que quando meus olhos fecham o
mundo permanece lá. O mundo
ainda está lá? Está lá fora? Sim. Todos nós precisamos de espelhos para
relembrar a nós mesmos quem somos. Eu não sou diferente.”, diz o protagonista
Leonard em dos momentos de mais alta paranoia na trama onde tentar manter a fé
de que exista algo de “real” nas sua percepção.
O tema da amnésia e esquecimento inevitavelmente leva ao
estado de paranoia: em quem confiar? O que é ilusão e realidade? O tema sempre
conduzirá o protagonista a crises existenciais (a identidade perdida) e
epistemológicas (qual método seguir para recuperar a identidade?). Essas
questões é que fazem diferenciar a abordagem comum da paranoia (narcísica, isso
é, a ideia de que o mundo conspira somente contra mim) da abordagem gnóstica - haveria
uma conspiração da realidade contra todos nós?
Vale lembrar que Antes de Dormir é mais um filme de uma longa
tradição do tema das memórias abordada em filme, o que de certa forma confirma
a tese de muitos teóricos de que a há uma conexão entre fotografia e cinema com
o próprio funcionamento do cérebro, das percepções e a formação das memórias. Como, por exemplo, o filósofo francês Henri
Bergson (1859-1941) que encontrava uma analogia entre o mecanismo
cinematográfico e a percepção humana.
Por isso, o cinema sempre revisita o tema: desde as elegantes
narrativas de mistérios de Hitchcock, passando pelos horrores de um
protagonista que procura sua própria identidade em Coração Satânico (Angel Heart,
1987), as manipulações da memória no sci-fi Total
Recall (1990), a obra-prima Amnésia de Nolan, a melancólica tragicomédia de
Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembrança
(2004) e até na boba comédia romântica Como
Fosse a Primeira Vez (50 First Dates,
2004).
O Que Esperar? – Um jogo de
quebra cabeças pela dubiedade de todos os personagens, que, por isso, tornam-se
suspeitos. A crítica especializada parece dividida em relação ao filme: de uma
lado, um roteiro que prende o espectador com sub-tramas colocada para confundir e testar
possibilidades; e do outro, a de que o filme seria um “Adrian Lyne tímido”,
onde o diretor Joffé faria um julgamento moral das consequências da traição
conjugal. Outros falam até na criação de um subgênero chamado “perigo entre
quatro paredes”: o casamento que pode se transformar em uma prisão domiciliar e
o marido em um perigoso estranho.