Leitores desse blog chamaram atenção para um estranho fenômeno semiótico apresentado pelo jornal “O Estado de São Paulo” na edição de 31 de março, dia
marcado pela lembrança dos 50 anos do golpe militar de 1964. No caderno “Metrópole”
do jornal paulistano uma sequência de duas páginas ímpares criou uma curiosa
associação metonímica entre uma matéria sobre intervenção militar no Complexo
da Maré no Rio de janeiro e um anúncio do HSBC onde um desenho artisticamente
elaborado parece fazer um comentário pontual do que lemos na página anterior: a
cidade do Rio de Janeiro à beira de um abismo e carregada por um tanque
militar. Mais uma bomba semiótica? Delírios conspiratórios? Ou uma “coincidência
significativa”?
Desde as
grandes manifestações de rua de junho do ano passado sabemos que uma guerra
semiótica está sendo travada pelo domínio da opinião pública. Um domínio que
não visa a persuasão política ou disseminação ideológica, mas a explosão de
verdadeiras bombas semióticas para moldar a percepção: criar um clima de
opinião de que o país atravessa um estado de convulsão, caos e pré-insurgência
civil.
Desde a
morte do cinegrafista da Band, Santiago Andrade, em protestos no Rio de Janeiro
em fevereiro percebeu-se um refluxo nas manifestações de rua. Protestos de rua
turbinados por operações semióticas da mídia foram desde então substituídos pela
repercussão de pautas que acabam se tornando supercondutores de manifestações
de intolerância e de fascismo difuso – forma de pensar onde qualquer tema é
pensado a partir de soluções finais, radicais e intervencionistas.
Por
exemplo, a pesquisa do Ipea repercutida pela mídia de que para o brasileiro
“mulher direita” corre menos risco de estupro e a lembrança dos 50 anos do
golpe militar de 1964 incendiou a imaginação conservadora nas redes sociais. A abordagem moralista sobre
o tema do estupro e os debates em torno do regime militar (golpe ou revolução?
Ditabranda? Ditacurta?) só tornaram o clima de opinião cada vez mais pesado.
A tal
ponto que aqui e ali na grande mídia surgiram atos falhos como o de César
Tralli no telejornal SPTV da Globo em pleno 31 de março sobre os 50 anos do
golpe militar: “o que se imaginava que seria um governo curto de exceção, se
transformou numa longa ditadura...” em uma implícita sugestão de que a
intervenção militar foi necessária (medida de exceção) e que a ditadura foi um
acidente de percurso.
Também em
pleno 31 de março, o jornal O Estado de
São Paulo, em duas páginas ímpares sequenciais, nos oferece um sincronismo
entre texto e imagem que produziu uma estranha polissemia. Na primeira página
do caderno “Metrópole” vemos a notícia que ocupa página inteira: “Polícias e
Marinha ocupam Maré e líderes do tráfico fogem para Paraguai” onde se noticia a
intervenção forças de segurança (Corpo de Fuzileiros Navais, Polícia Militar e
Civil) no complexo de favelas da Maré no Rio de Janeiro, após décadas de
domínio do tráfico e de milicianos. Na parte central da matéria vemos a
fotografia de um tanque que se desloca por rua de favela do complexo.
O leitor
após virar a página dá de cara com a página 3 onde se vê um anúncio do banco
HSBC que ocupa ¾ da página. Uma imagem metafórica ocupa a parte central do anúncio
onde vemos a cidade do Rio de Janeiro sobre uma esteira rolante e a cidade de
Nova York na face oposta. O anúncio se trata do serviço HSBC Empresas que
promete “encurtar distâncias e abrir caminhos para novos negócios”, seja no Rio
de Janeiro ou Nova York, internacionalizando as perspectivas das empresas. É
uma metáfora por similaridade, onde a esteira rolante é a analogia icônica com
a ideia de encurtamento das distâncias nos negócios.
Porém,
essa metáfora se transforma em metonímia: quando o leitor vira a folha e passa
para a página três do caderno “Metrópole”, a metáfora do anúncio da HSBC é
imediatamente “contaminada” não só pela manchete da página um que trata da
intervenção de polícias e Marinha no Rio de Janeiro como também da fotografia
central de um tanque militar. A esteira rolante com os seus mecanismos de
funcionamento aparentes (necessários para criar a metáfora por similaridade) de
repente assume o aspecto de um tanque de guerra carregando a cidade do Rio de
Janeiro.
Graças a
esse efeito de contaminação a imagem do anúncio do HSBC assume um complexo de
significados: intervenção militar (coincidentemente no dia dos 50 anos do golpe
militar de 1964), Não Vai Ter Copa (o estádio do Maracanã ocupa destaque na
imagem sintética da cidade do Rio de janeiro) e uma inevitável associação com uma
situação de uma cidade que se movimenta para um abismo – um carro e um barco parecem
que já foram tragados...
O fusca em chamas de São Paulo ao lado das imagens do caos político na Ucrânia nos telejornais |
O tanque militar
real da fotografia da página um parece que ganha continuidade e movimento com a
gestalt de um tanque de guerra em que,
por contiguidade, se transforma a esteira rolante metafórica da página três.
Surpreendentemente, a imagem do HSBC parece sintetizar as situações de confronto
reportadas na primeira página do caderno.
Jornalismo metonímico
Delírio? Paranoia?
Devaneios psicóticos de uma teoria da conspiração? Uma operação semiótica
engenhosamente pensada? Alguns leitores desse blog chamaram a atenção desse
fenômeno da edição de 31 de março do Estadão, e pediram para nós um parecer
técnico a partir do referencial da Semiótica.
De fato,
acompanhando as bombas semióticas disseminadas pela grande mídia desde o ano
passado, percebe-se a recorrência das metonímias na elaboração oculta de
significados. Por exemplo, nesse ano telejornais como o Jornal Nacional e o Jornal da
Band fizeram matérias sobre diversos protestos contra a Copa do Mundo em
diversos estados. As imagens das manifestações eram colocadas nos mesmo bloco
noticioso das manifestações de rua da Ucrânia e do Líbano. O efeito evidente
era de contaminação metonímica ao aproximar os protestos brasileiros ao mesmo
status de caos político e insurgência civil das notícias internacionais.
Após essa série de
manifestações que culminaram com a imagem do fusca em chamas com uma família
sendo retirada às pressas, posteriormente em diversas vezes repetiu-se essa
bizarra organização da pauta noticiosa que tradicionalmente divide os blocos em
Nacional e Internacional.
Com certeza essa
coincidência metonímica é significativa e não pode passar despercebida como uma
mera coincidência ou paranoia de uma análise semiótica que misturaria má fé com
devaneios conspiratórios. Ainda mais na atual atmosfera política pesada onde
explicitamente a grande mídia assumiu o papel ativo de oposição política em um
ano eleitoral.
Os tanques entrando no Complexo da Maré: incendiando o imaginário dos adeptos de uma intervenção militar |
Poderíamos
elaborar algumas hipóteses para esse curioso fenômeno que o jornal O Estado de São Paulo nos ofereceu:
(a) Uma operação
semiótica deliberada. Sabendo-se que os espaços publicitários são
antecipadamente fechados pelo departamento comercial do veículo e que a redação
já conhece de antemão qual o espaço restante destinado aos textos,
propositalmente a notícia do Complexo da Maré foi colocado em uma página ímpar.
Também repare o leitor que a foto do tanque de guerra da página um praticamente
está na mesma linha visual da imagem metafórica do anuncio do HSBC na página
três.
(b) O fenômeno em
si seria neutro e uma mera coincidência. O efeito polissêmico seria decorrente
de um fator externo: a atmosfera politicamente pesada.
(c) Uma
coincidência significativa ou sincromística. Como se por trás dos fatos da
realidade se escondesse uma estranha sintaxe que faz símbolos e significados
convergirem em dados momentos, criando eventos de forte impacto no contínuo
midiático. Claro que aí entraríamos na "parapolítica", um
encontro da política, esoterismo e misticismo como procuram fazer pesquisadores
como Christopher Knowles ou Loren Coleman no seu blog Twilight Language. Para
eles, fatos como esses seriam mais do que meras coincidências...
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