Mais um filme hollywoodiano
de ficção científica distópico e pós-apocalíptico? Com elenco estelar dirigido pelo
coreano Jooh-ho Bong em sua estreia em filmes de língua inglesa, “Expresso do
Amanhã” (Snowpiercer, 2013) narra como
uma espécie de arca ferroviária com sobreviventes da espécie humana após uma
catástrofe climática que fez o planeta entrar em nova Era do Gelo, se
transforma em um microcosmo da Terra. Em um gigantesco trem com centenas de
vagões que circula indefinidamente pelo planeta cria-se um sistema totalitário
com luta de classes, exploração, dominação e manipulação psicológica. Mas as
dificuldades de distribuição e lançamento do filme apontam para uma produção
com narrativa não convencional que foge da dualidade Bem/Mal lembrando a famosa dialética do senhor e escravo tal como descrita pelo filósofo alemão Hegel. Porém,
com desfecho não convencional nem para Hollywood e nem para Hegel. Filme sugerido pelo nosso leitor Joari Carvalho.
Um filme com
diversos problemas de produção e, principalmente, distribuição. A ideia de
associar o ótimo diretor coreano Jooh-ho Bong com atores conhecidos nos EUA
como Chris Evans (Capitão América), John Hurt, Ed Harris e Tilda Swinton era promissora
dentro da atual política de Hollywood em globalizar os aspectos de direção e
produção cinematográficas. Porém, algo não deu certo: mesmo já tendo sido
exibido na Ásia, o filme ainda não estreou no Ocidente (nos EUA até o dia 31/03
não havia estreado e no Brasil e era esperado para esse mês nos cinemas
brasileiros) e sua estreia tem sido adiada diversas vezes: diversas versões do
filme parecem terem sido criadas, com diversos cortes que chegam a totalizar 20
minutos, tentando agradar os estúdios e desagradar o diretor Bong.
Por que essa
dificuldade de lançamento de um filme com atores mainstream hollywoodiano com
um tema sci fi aparentemente tão clichê? É o que vamos tentar descobrir.
O Filme
Baseado na HQ
francesa Le Transperceneige, o filme Expresso do Amanhã (Snowpiecer, 2013)
é ambientado em um futuro distópico e pós-apocalíptico. Numa tentativa de frear
o aquecimento global, 79 países firmam um acordo de dispersar na alta atmosfera
uma substância resfriadora chamada CW-7 como a última alternativa para evitar o
colapso climático.
Mas o plano dá
errado e ocorre um catastrófico efeito inverso: o planeta é congelado
extinguindo toda a vida sobre a face da Terra. Os únicos sobreviventes são uma
pequena parcela da população em uma espécie de arca indestrutível sobre rodas.
Projetado por Wilford (Ed Harris), um engenheiro fascinado por trens e
ferrovias e um cético em relação a emissão de CW-7 na atmosfera. Prevendo a
catástrofe, criou um projeto faraônico de uma ferrovia interligando todos os
continentes onde rodaria um gigantesco trem (o “Snowpiecer”) com centenas de
vagões que circularia os 438 mil quilômetros em um ciclo exato de um ano.
Dezessete anos
depois da tragédia climática, a Terra vive sua nova Era do Gelo com milhares de
sobreviventes nessa arca ferroviária que se transformou em um sistema
totalitário de exploração e luta de classes que lembra a distopia orwelliana de
1984. O engenheiro Wilford transformou-se numa entidade divina e mítica,
glorificado em um misto de adoração e idolatria, que habita na locomotiva e
controla as máquinas, comandando um sistema repressivo onde os mais pobres
foram colocados nos últimos vagões imundos e sem janelas. São diariamente
castigados de forma sádica e humilhados em contagens com finalidade de controle
populacional feitos por soldados. O único alimento para os chamados “vagões da
cauda” é uma barra de proteína escura e de péssimo aspecto.
Liderados por
Curtis (Chris Evans), um grupo planeja iniciar mais uma revolta - ao longo dos
anos outras foram reprimidas com terríveis chacinas. Mas dessa vez querem fazer
diferente: com a ajuda de Song Kang-Ho (projetista do sistema de segurança do
trem) pretendem atravessar toda a extensão do Snowpiecer até chegar à
locomotiva para arrancar os controles das mãos de Wilford.
Tem início uma
jornada pelas mais diversas formas de vidas humanas que são descobertas ao
passar por cada vagão. Cada vez mais o espectador vai percebendo que o
gigantesco trem é uma reprodução microcósmica de todas as mazelas da política,
economia e a da estrutura de classes que levou o planeta à catástrofe de
dezessete anos atrás. Vagões onde encontrarão as primeiras janelas depois de
tantos anos, confrontos com exércitos fortemente armados, sessões arborizadas
com jardins belíssimos e outros com aquários espetaculares. Além de vagões onde
encontramos os filhos da classe média que entoam cânticos de idolatria a
Wilford e outros da elite se divertindo em boates regadas a bebidas e drogas.
Hegel e a dialética senhor-escravo
O tema geral do
filme são as estratégias de manipulação e dominação psicológica do Poder
através da religião, drogas, entretenimento, o medo de ser jogado do trem ser
congelado em segundos e a guerra como forma maquiavélica de controle
populacional.
Fazendo a sinopse
dessa maneira, parece que estamos em mais um daqueles filmes clichês
hollywoodianos de corajosos heróis querendo libertar seu povo como em Jogos Vorazes (Hunter Games, 2012). Mas Expresso do Amanhã surpreende com uma narrativa que, quanto
mais avança, vamos percebendo que não estamos numa simples batalha entre o Bem
e o Mal. Nada é o que parece em um roteiro bem construído e cheio de
reviravoltas, com um final primoroso com um sabor gnóstico: o confronto entre
Bem e Mal representado pela luta Curtis versus Wilford, na verdade esconde uma
estranha dialética que não transcende e nem encontra uma síntese.
Esse tema do confronto
entre dominantes e dominados pela forma como é narrada pelo diretor coreano
lembra bastante a famosa passagem da dialética do Senhor e do Escravo do livro
Fenomenologia do Espírito escrito pelo filósofo alemão Hegel no século XIX. Passagem
marcante na dialética hegeliana por ser o ponto de partida das reflexões de
Karl Marx.
Vamos tentar fazer
um resumo dessa reflexão hegeliana: O senhor obriga o escravo, ao passo que ele
próprio goza os prazeres da vida. O senhor não faz sua própria comida e não
acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os
rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo.
O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de
seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de
seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.
Porém, o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona
a sua. O senhor só é reconhecido como tal porque é reconhecido pela consciência
do escravo e também porque vive do trabalho dele. Nesse raciocínio o senhor
seria uma espécie de escravo de seu escravo. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a
liberdade. Mas aqui acabam as semelhanças entre o filme e a dialética hegeliana
do Senhor e do Escravo.
A dialética gnóstica de Joon-ho Bong – alerta da spoilers
Hegel ainda via uma redenção, uma síntese na dialética onde a liberdade
estoica do escravo era a via da reconciliação entre o domínio e a servidão. Já
Joon-ho Bong não encontrará o happy end
na luta entre Curtis e Wilford. Aliás, o confronto final entre os dois lembrará
muito o diálogo final do filme Show de Truman entre Christopher (o diretor do
reality show coincidentemente feito também pelo próprio Ed Harris) e o herói Truman:
na verdade ambos fazem parte de um jogo que jamais terá síntese, superação ou
transcendência. Assim como em Show de Truman, cada revolta era sistematicamente
estimulada e controlada, principalmente como estratégia de controle
populacional no trem cujo espaço é limitado.
Tal como na
filosofia gnóstica, não existe dialética (porque não há sínteses e superações
possíveis dos conflitos nesse mundo), mas apenas oposições que se
retroalimentam como dois lados de uma mesma moeda.
Por isso, somente
um personagem conseguirá enxergar além dessa dialética sem síntese: o
projetista Song Kang-Ho que a cada volta anual do trem pelos continentes percebeu
pequenas e quase imperceptíveis alterações da paisagem que indicavam um lento
aumento da temperatura global, permitindo a fuga daquele trem e a sobrevivência
na neve. Enquanto Curtis e Wilford são prisioneiros na dialética do senhor e
escravo, Kang-ho vislumbra a oportunidade de transcender aquela situação,
simplesmente explodindo a porta e fugindo.
Lógica gnóstica
onde os opostos não chegam a uma síntese, mas são transcendidos: nem realidade,
nem a ilusão; nem a verdade, nem a mentira. Mas buscar um tertium quid, conceito associado à alquimia referindo-se a um não
identificado terceiro elemento de uma relação.
Talvez aqui
possamos compreender o porquê das dificuldades de lançamento do filme nos EUA e
os cortes e novas edições à revelia do diretor: primeiro, o filme não oferece
um happy end tradicional do
maniqueísmo hollywoodiano onde o bem sempre vence o mal. Simplesmente, a
narrativa nos mostra que o bem e o mal, mocinho e bandido, dominados e
dominadores são os dois lados de uma mesma moeda, um jogo reversível que nunca
termina ou transcende a si mesmo.
E segundo, o único personagem que consegue transcender enxergando para além do maniqueísmo é um
oriental, viciado pela droga kronol assim como a sua filha de 17 anos. Isso
parece demais para o conservadorismo da indústria do entretenimento e do
próprio público.
Ficha Técnica |
Título: O Expresso do Amanhã
|
Direção: Joon-ho Bong
|
Roteiro: Joon-ho Bong e Kelly Masterson baseado na HQ Le
Transperceneige de J. Rpchette, B. Legrand e J. Lob
|
Elenco: Chris Evans, Tilda Swinton, Jamie Bell,
John Hurt, Ed Harris
|
Produção: Moho Films, SnowPiercer, Opus Pictures
|
Distribuição: Weinstein Company
|
Ano: 2013
|
País: Coréia do Sul, EUA
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