segunda-feira, abril 07, 2014

A dialética gnóstica do senhor e escravo no filme "Expresso do Amanhã"

Mais um filme hollywoodiano de ficção científica distópico e pós-apocalíptico? Com elenco estelar dirigido pelo coreano Jooh-ho Bong em sua estreia em filmes de língua inglesa, “Expresso do Amanhã” (Snowpiercer,  2013) narra como uma espécie de arca ferroviária com sobreviventes da espécie humana após uma catástrofe climática que fez o planeta entrar em nova Era do Gelo, se transforma em um microcosmo da Terra. Em um gigantesco trem com centenas de vagões que circula indefinidamente pelo planeta cria-se um sistema totalitário com luta de classes, exploração, dominação e manipulação psicológica. Mas as dificuldades de distribuição e lançamento do filme apontam para uma produção com narrativa não convencional que foge da dualidade Bem/Mal lembrando a famosa dialética do senhor e escravo tal como descrita pelo filósofo alemão Hegel. Porém, com desfecho não convencional nem para Hollywood e nem para Hegel. Filme sugerido pelo nosso leitor Joari Carvalho.

Um filme com diversos problemas de produção e, principalmente, distribuição. A ideia de associar o ótimo diretor coreano Jooh-ho Bong com atores conhecidos nos EUA como Chris Evans (Capitão América), John Hurt, Ed Harris e Tilda Swinton era promissora dentro da atual política de Hollywood em globalizar os aspectos de direção e produção cinematográficas. Porém, algo não deu certo: mesmo já tendo sido exibido na Ásia, o filme ainda não estreou no Ocidente (nos EUA até o dia 31/03 não havia estreado e no Brasil e era esperado para esse mês nos cinemas brasileiros) e sua estreia tem sido adiada diversas vezes: diversas versões do filme parecem terem sido criadas, com diversos cortes que chegam a totalizar 20 minutos, tentando agradar os estúdios e desagradar o diretor Bong.

Por que essa dificuldade de lançamento de um filme com atores mainstream hollywoodiano com um tema sci fi aparentemente tão clichê? É o que vamos tentar descobrir.

O Filme


Baseado na HQ francesa Le Transperceneige, o filme Expresso do Amanhã (Snowpiecer, 2013) é ambientado em um futuro distópico e pós-apocalíptico. Numa tentativa de frear o aquecimento global, 79 países firmam um acordo de dispersar na alta atmosfera uma substância resfriadora chamada CW-7 como a última alternativa para evitar o colapso climático.

Mas o plano dá errado e ocorre um catastrófico efeito inverso: o planeta é congelado extinguindo toda a vida sobre a face da Terra. Os únicos sobreviventes são uma pequena parcela da população em uma espécie de arca indestrutível sobre rodas. Projetado por Wilford (Ed Harris), um engenheiro fascinado por trens e ferrovias e um cético em relação a emissão de CW-7 na atmosfera. Prevendo a catástrofe, criou um projeto faraônico de uma ferrovia interligando todos os continentes onde rodaria um gigantesco trem (o “Snowpiecer”) com centenas de vagões que circularia os 438 mil quilômetros em um ciclo exato de um ano.

Dezessete anos depois da tragédia climática, a Terra vive sua nova Era do Gelo com milhares de sobreviventes nessa arca ferroviária que se transformou em um sistema totalitário de exploração e luta de classes que lembra a distopia orwelliana de 1984. O engenheiro Wilford transformou-se numa entidade divina e mítica, glorificado em um misto de adoração e idolatria, que habita na locomotiva e controla as máquinas, comandando um sistema repressivo onde os mais pobres foram colocados nos últimos vagões imundos e sem janelas. São diariamente castigados de forma sádica e humilhados em contagens com finalidade de controle populacional feitos por soldados. O único alimento para os chamados “vagões da cauda” é uma barra de proteína escura e de péssimo aspecto.

Liderados por Curtis (Chris Evans), um grupo planeja iniciar mais uma revolta - ao longo dos anos outras foram reprimidas com terríveis chacinas. Mas dessa vez querem fazer diferente: com a ajuda de Song Kang-Ho (projetista do sistema de segurança do trem) pretendem atravessar toda a extensão do Snowpiecer até chegar à locomotiva para arrancar os controles das mãos de Wilford.

Tem início uma jornada pelas mais diversas formas de vidas humanas que são descobertas ao passar por cada vagão. Cada vez mais o espectador vai percebendo que o gigantesco trem é uma reprodução microcósmica de todas as mazelas da política, economia e a da estrutura de classes que levou o planeta à catástrofe de dezessete anos atrás. Vagões onde encontrarão as primeiras janelas depois de tantos anos, confrontos com exércitos fortemente armados, sessões arborizadas com jardins belíssimos e outros com aquários espetaculares. Além de vagões onde encontramos os filhos da classe média que entoam cânticos de idolatria a Wilford e outros da elite se divertindo em boates regadas a bebidas e drogas.

Hegel e a dialética senhor-escravo


O tema geral do filme são as estratégias de manipulação e dominação psicológica do Poder através da religião, drogas, entretenimento, o medo de ser jogado do trem ser congelado em segundos e a guerra como forma maquiavélica de controle populacional.

Fazendo a sinopse dessa maneira, parece que estamos em mais um daqueles filmes clichês hollywoodianos de corajosos heróis querendo libertar seu povo como em Jogos Vorazes (Hunter Games, 2012). Mas Expresso do Amanhã surpreende com uma narrativa que, quanto mais avança, vamos percebendo que não estamos numa simples batalha entre o Bem e o Mal. Nada é o que parece em um roteiro bem construído e cheio de reviravoltas, com um final primoroso com um sabor gnóstico: o confronto entre Bem e Mal representado pela luta Curtis versus Wilford, na verdade esconde uma estranha dialética que não transcende e nem encontra uma síntese.

Esse tema do confronto entre dominantes e dominados pela forma como é narrada pelo diretor coreano lembra bastante a famosa passagem da dialética do Senhor e do Escravo do livro Fenomenologia do Espírito escrito pelo filósofo alemão Hegel no século XIX. Passagem marcante na dialética hegeliana por ser o ponto de partida das reflexões de Karl Marx.

Vamos tentar fazer um resumo dessa reflexão hegeliana: O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não faz sua própria comida e não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.

Porém, o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só é reconhecido como tal porque é reconhecido pela consciência do escravo e também porque vive do trabalho dele. Nesse raciocínio o senhor seria uma espécie de escravo de seu escravo. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Mas aqui acabam as semelhanças entre o filme e a dialética hegeliana do Senhor e do Escravo.

A dialética gnóstica de Joon-ho Bong – alerta da spoilers


Hegel ainda via uma redenção, uma síntese na dialética onde a liberdade estoica do escravo era a via da reconciliação entre o domínio e a servidão. Já Joon-ho Bong não encontrará o happy end na luta entre Curtis e Wilford. Aliás, o confronto final entre os dois lembrará muito o diálogo final do filme Show de Truman entre Christopher (o diretor do reality show coincidentemente feito também pelo próprio Ed Harris) e o herói Truman: na verdade ambos fazem parte de um jogo que jamais terá síntese, superação ou transcendência. Assim como em Show de Truman, cada revolta era sistematicamente estimulada e controlada, principalmente como estratégia de controle populacional no trem cujo espaço é limitado.

Tal como na filosofia gnóstica, não existe dialética (porque não há sínteses e superações possíveis dos conflitos nesse mundo), mas apenas oposições que se retroalimentam como dois lados de uma mesma moeda.

Por isso, somente um personagem conseguirá enxergar além dessa dialética sem síntese: o projetista Song Kang-Ho que a cada volta anual do trem pelos continentes percebeu pequenas e quase imperceptíveis alterações da paisagem que indicavam um lento aumento da temperatura global, permitindo a fuga daquele trem e a sobrevivência na neve. Enquanto Curtis e Wilford são prisioneiros na dialética do senhor e escravo, Kang-ho vislumbra a oportunidade de transcender aquela situação, simplesmente explodindo a porta e fugindo.

Lógica gnóstica onde os opostos não chegam a uma síntese, mas são transcendidos: nem realidade, nem a ilusão; nem a verdade, nem a mentira. Mas buscar um tertium quid, conceito associado à alquimia referindo-se a um não identificado terceiro elemento de uma relação.

Talvez aqui possamos compreender o porquê das dificuldades de lançamento do filme nos EUA e os cortes e novas edições à revelia do diretor: primeiro, o filme não oferece um happy end tradicional do maniqueísmo hollywoodiano onde o bem sempre vence o mal. Simplesmente, a narrativa nos mostra que o bem e o mal, mocinho e bandido, dominados e dominadores são os dois lados de uma mesma moeda, um jogo reversível que nunca termina ou transcende a si mesmo.

E segundo, o único personagem que consegue transcender enxergando para além do maniqueísmo é um oriental, viciado pela droga kronol assim como a sua filha de 17 anos. Isso parece demais para o conservadorismo da indústria do entretenimento e do próprio público.

Ficha Técnica


Título: O Expresso do Amanhã
Direção: Joon-ho Bong
Roteiro: Joon-ho Bong e Kelly Masterson baseado na HQ Le Transperceneige de J. Rpchette, B. Legrand e J. Lob
Elenco: Chris Evans, Tilda Swinton, Jamie Bell, John Hurt, Ed Harris
Produção: Moho Films, SnowPiercer, Opus Pictures
Distribuição: Weinstein Company
Ano: 2013
País: Coréia do Sul, EUA



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