Filme sugerido
pelo nosso leitor Felipe Resende. Além do mal causado pela pedofilia, essa
disfunção ainda pode ser o pretexto para a sociedade criar o mito da infância
como uma fase idílica e ingênua onde as crianças seriam incapazes de mentir. No
filme “A Caça” o diretor dinamarquês Thomas Vinterberg está interessado em
dissecar os mecanismos que originam as denúncias e insinuações capazes de provocar
linchamentos e destruição de reputações. E como muitas vezes o mito da pureza
infantil (colocado abaixo há muito tempo pela psicanálise freudiana) é
utilizado hipocritamente para criar válvulas de escape ou bodes expiatórios
para aliviar tensões sociais.
Plot: um professor de jardim da infância (Mads Mikkelsen) é
adorado pela população da pequena cidade em que vive. Participa dos grupos de
caça (uma tradição local), é apoiado durante seu divórcio e tem amigos leais.
Mas quando Klara (Annika Wedderkopp), uma menina de 8 anos, filha de seu melhor
amigo, confunde seus sentimentos pelo professor e tenta beijar-lhe, o homem
pacientemente tenta explicá-la a impropriedade daquele desejo. Mas Klara,
confusa, resolve repetir à diretora da escolinha uma frase que ouviu dos irmãos
- algo que coloca a cidade inteira contra o professor, que é acusado gravamente
de ter abusado sexualmente da menininha.
Por que
está “Em Observação”? – Lendo as sinopses e críticas desse filme do diretor dinamarquês
Thomas Vinterberg (um dos participantes do grupo Dogma 95 - movimento cinematográfico dinamarques que reivindicava um cinema mais realista, fazendo uma série de restrições técnicas e tecnológicas na produção) não há como deixar
de associar o tema do filme primeiro ao escândalo midiático da Escola Base em
São Paulo em 1994: denúncias de supostos abusos sexuais envolvendo crianças
fizeram a escola ser fechada diante do linchamento dos meios de comunicação.
Mais tarde as investigações concluíram que era tudo mentira, condenando o
Estado e jornais como a Folha de São Paulo e a emissora SBT a pagar
indenizações aos proprietários da escola.
E segundo, a
descoberta pela psicanálise freudiana de que a vida psíquica infantil era tão
intensa quanto a adulta. Para Freud, a infância estabelece as chamadas
fantasias originárias (a cena primitiva, a da sedução e da castração) onde,
através delas, a criança tenta explicar a sua própria origem, a sexualidade e a
origem da diferença sexual. Temos o exemplo clássico dado por Freud da paciente histérica que
supõe ter sido vítima de um abuso sexual na infância. Esta fantasia de sedução,
ao colocar o sujeito em posição passiva, comporta a marca do recalque que
incide sobre o desejo sexual do próprio. É o carimbo da passagem pelo Complexo
de Édipo que promove os efeitos traumáticos da sexualidade infantil.
Essas
descobertas da psicanálise colocaram em xeque a visão que a sociedade tinha até
então da criança, como uma figura ingênua e pura, incapaz de mentir. O filme A Caça parece tratar de como os adultos
mantém essa visão idílica sobre as crianças como ferramenta para manter
diversas convenções e instituições sociais, a hipocrisia e a sociabilidade na
sua pior forma: através de linchamentos de reputações, funcionando como bode
expiatório ou válvula de escape para as tensões sociais.
Na coletiva de
imprensa no Festival de Cannes de 2012, o diretor Thomas Vinterberg afirmou
que o roteiro foi baseado no estudo de diversos casos de pedofilia. Ele não
estava interessado em entender a motivação das pessoas que cometeram esses
atos, mas sim dissecar os mecanismos que originam as denúncias e insinuações.
Muito mais do que o mal da pedofilia, Vinterberg estava interessado em
compreender como o poder do imaginário humano é capaz de distorcer as relações
humanas e a própria realidade.
O que
esperar do filme? – Em 1998 o diretor já
tinha abordado o tema da pedofilia em Festa
de Família. Na época o tema foi abordado com humor negro e sátira. Bem
diferente de A Caça, um filme sutil,
centrado e emocionalmente contido. O ponto alto do filme é o da missa na
véspera de Natal onde todos os temas do filme são concentrados em uma única
sequência: pessoas descrentes e hipócritas que destróem a reputação de um homem
sem provas como uma espécie de válvula de escape para as tensões daquela
comunidade se reúnem em uma missa para celebrar uma época supostamente cheia de
compaixão e amor. O nascimento do símbolo de pureza que representa o menino
Jesus é associado à menina Klara rodando de felicidade na neve branca numa
verdadeira celebração dos significados de pureza e inocência associados às
crianças para manter a hipocrisia adulta. Com filmes como A Caça talvez compreendamos porque até hoje, em pleno século XXI,
as ideias de um velho psiquiatra Vienense, desenvolvidas em plena Era Vitoriana,
ainda perturbam e incomodam tanto as pessoas.