É inevitável a
comparação entre “Aurora” (Vanishing Waves, 2012) da lituana Kristina Buozyte
com “A Origem” (Inception, 2010) de Christopher Nolan: enquanto a produção
hollywoodiana abordava o mundo onírico pelo viés das neurociências
(jamais a palavra “inconsciente” era citada), a produção lituana aborda o mesmo
tema, mas fiel ao ponto de vista freudiano sobre a dinâmica do psiquismo, inovando as representações do inconsciente no cinema através de
engenhosos efeitos inspirados em MC Escher e expressionismo alemão. Se Freud
considerava o inconsciente como o “Isso” e o “Estranho”, “Aurora” mostra como
uma neurociência atual munida de interfaces digitais e mapas neuronais tenta
ignorar essa origem de toda atividade humana impossível de ser apreendida pela
ciência racionalista.
Em postagem
passada quando discutíamos o filme A Origem (Inception, 2010)
observamos que a grande deficiência do filme de Nolan era abordar o tema dos
estados imersivos de alteração de consciência e o mundo onírico dos sonhos sob
um ponto de vista associado à engenharia do espírito das neurociências: embora
tudo ocorresse no mundo dos sonhos, nunca se tocava na palavra inconsciente e o
psiquismo era abordado pela possibilidade pragmática de manipulação
neurocientífica comandada por interesses corporativos.
O que tornou A Origem num filme estéril e assexuado
onde a presença feminina tornou-se masculinizada ou, então, um objeto abstrato
tal como uma princesa de contos de fadas. Bem diferente é o filme da lituana
Kristina Buozyte Aurora (Vanishing Waves) em que a narrativa
revisita alguns conceitos das viagens no mundo dos sonhos de A Origem. Porém, em Aurora, o psiquismo do mundo dos sonhos é uma mix de surrealismo e
de uma primitiva psicossexualidade que faria Freud ficar corado. Kristina se
aproxima muito mais do funcionamento do psiquismo humano do que Nolan ao
capturar como a experiência real do sonho pode ser assustadora e desagradável,
mesclada com primitivas e incontroláveis fantasias eróticas. O que torna Aurora um filme diferenciado no gênero
de ficção científica: uma erótica e surreal viagem mental.
Mas Kristina vai
ainda mais fundo ao assumir a sua inspiração em filmes que fizeram verdadeiras trips nos estados alterados de
consciência como Altered States
(1980) de Ken Russell ou Solaris
(1972) de Tarkovsky. Se em A Origem
tínhamos a apologia das tecnologias neurocientíficas onde o subconsciente
aparecia apenas como um obstáculo a ser deletado por engenhosas técnicas, em Aurora o inconsciente surge na exata
acepção dada por Freud como o “Isso”, o “Estranho”, isto é, um magma de
energias e associações impossíveis de serem deduzidas ou apreendidas pela
cultura ou ciência.
O Filme
O filme acompanha
Lukas (Marius Jampolskis), um cientista selecionado para participar de uma
experiência de “transferência neuronal” que envolve a colocação dele em um
tanque de privação sensorial com o seu cérebro conectado a sensores, através
dos quais ele tentará fazer uma conexão mental com o psiquismo de uma paciente
em estado de coma chamada Aurora.
Os cientistas estão
à espera de qualquer indício vago de conexão, mas depois de uma falsa ligação
inicial marcada por ruídos e biofeedbacks Lukas de repente salta para os mais obscuros
recônditos do inconsciente. A partir daí, a maior parte do filme passará no
interior das viagens alucinatórias de Lukas no interior do labirinto mental de
Aurora.
Embora Lukas tenha
sido orientado pelos cientistas a se manter um observador imparcial durante as
incursões psíquicas, ele rapidamente deixará para trás a ética profissional
para dar início a um tórrido caso de amor em um mundo e sonhos psicodélicos
incluindo uma praia paradisíaca, uma casa de óperas vazia e uma casa de madeira
cuja arquitetura parece ser o resultado do cruzamento dos desenhos de MC Escher
com a cenografia do filme O Gabinete do
Dr. Caligari de Robert Wiene.
Lukas se entrega e
começa a literalmente nadar no infinito oceano psíquico de Aurora e beijar e
mergulhar no desconhecido: um mundo livre e sem culpas feito de erotismo,
orgias, ao mesmo tempo infantil e primitivo como na sequência de uma festa
imaginária onde os dois espirram um no outro vinho, sopas e amoras, mastigando
no meio de seus rostos e saboreando a textura dos alimentos contra a suas
peles.
Logo podemos
entender porque Lukas começa a se viciar e a querer sempre mais, escondendo
essas interações da equipe de cientistas que monitora as sinapses cerebrais do
experimento. Eles nada podem saber do que ocorre já que apenas observam nas
telas efeitos fractais mórficos de luz branca difusa e mapas neuronais que
cintilam como corpos celestes no vazio. Lukas ficará tão dependente que
prejudicará sua vida conjugal tornando insustentável a duplicidade da sua vida
de vigília e as viagens oníricas. Torna-se obcecado em saber o motivo do estado
de coma de Aurora (Jurga Jutaite, numa performance hipnótica e poderosa) e
penetra cada vez mais fundo no buraco de coelho do inconsciente, procurando dar
sentido às suas memórias e tentar trazê-la para o mundo dos vivos.
A impotência das neurociências
O viés neurocientífico
de Nolan no filme A Origem acompanha
a tradição cartesiana ocidental que simplesmente ignorou a antiguidade grega que
dividia o ser humano em três partes: Soma (o corpo físico), Nous (o
conhecimento e a inteligência pura) e Psiquê (a própria Alma ou a Alma
materializada). Descartes opera a divisão entre extensão e pensamento (matéria
e espírito), e a alma é afastada do discurso; o corpo e mente tornam-se as
únicas realidades possíveis.
O pensamento passa
a ser identificado com o espírito que só poderá ser localizado no cérebro
(Descartes acreditava ser na glândula pineal), órgão privilegiado que
comandaria e daria sentido a um corpo agora inerte e submisso. Por isso, para
as neurociências o pensamento seria um conjunto de sinapses neuronais e as
fantasias, desejos, pulsões do psiquismo seriam meras ilusões ou obstáculos
primitivos que devem ser deletados. Tal como no filme de Nolan onde a “culpa”
do protagonista deve ser eliminada de seus sonhos para poder cumprir uma
missão.
Ao contrário, Aurora mostra a impotência de
neurocientistas munidos de suas interfaces e mapas neuronais diante da energia
primitiva e caótica do inconsciente da psique. Os visuais que Kristina Buozyte e sua equipe
de efeitos que evocam as paisagens oníricas distorcidas não são nada menos do
que surpreendentes. O imaginário cinematográfico mais assombroso e
verdadeiramente surreal já visto em anos. Os cineastas fazem um trabalho
incrível ao recriar a experiência momento a momento do sonho, e com um talento especial
para manter o espectador espacialmente fora de equilíbrio, com distâncias que
parecem comprimir e expandir sutilmente de momento a momento em conjuntos que
são constantemente alterados de forma difícil de descrever.
O homem é um animal racionalizante
Aurora coloca o
psiquismo e o inconsciente como os protagonistas da vida onírica (ao contrário
de A Origem de Nolan), tornando-se
bastante fiel às descrições freudianas da dinâmica psíquica. O grande mérito de
Freud foi romper coma tradição racionalista cartesiana da divisão mente/corpo e
o primado da Razão. Ele descobriu que o homem não é um ser racional, mas
racionalizante: a verdadeira motivação dos seus atos são os impulsos. O homem
age a maior parte do tempo de forma inconsciente, impulsiva, procurando a posteriori justificativas e álibis
racionais para seus atos.
O inconsciente
seria o reservatório das pulsões, a energia envolvida em toda atividade humana,
mas também responsável pelas demandas mais primitivas e perversas. Todo o
projeto tecnognóstico neurocientífico (no filme representado pela equipe de
cientistas que tenta criar um mapa das conexões entre Lukas e Aurora)
simplesmente tenta ignorar a energia do inconsciente, concebendo-a como energia
corporal a ser controlada pela mente racional.
Porém não percebem
que essa ignorância é mais um dos álibis racionalizadores que escondem um
impulso primitivo e infantil do inconsciente tão velho quanto a espécie humana:
o controle e a dominação. Nas neurociências pelo projeto de criar uma
cartografia e topografia da mente humana como uma nova forma de engenharia
social por meio do monitoramento e controle da subjetividade humana.
Muito melhor que
em A Origem, o filme Aurora consegue criar imageticamente representações instigantes do
inconsciente no sentido próximo do “Isso” ou “O Estranho” a que Freud se
referia: primeiro, a casa de madeira em estilo MC Escher que parece estar
eternamente num processo de destruição de si mesma; e a perturbadora cena da
orgia que parece ser nada mais do que um emaranhado de braços desmembrados e
pernas, ondulando todos juntos em uma única massa autônoma.
Por isso Aurora se filia a filmes como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004)
onde não só a dimensão do inconsciente ganha criativas representações
cinematográficas como também desafia o projeto tecnognóstico de controle e
engenharia social que sustenta as neurociências atuais que pretende ignorar
esse elemento fundador do psiquismo por um motivo: o inconsciente é anárquico e
indomável demais para ser controlado pela ciência.
Ficha Técnica |
Título: Aurora (Vanishing Waves)
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Diretor: Kristina Buozyte
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Roteiro: Kristina Buozyte e Bruno Samper
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Elenco: Marius Jampolskis, Jurga Jutaite, Rudolfas Jansonas, Martina
Jablonskyte
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Produção: Tremora, Les Films 2 Cinema, Acajou Films
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Distribuição: Artsploitation Films
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Ano: 2012
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País: Lituânia, França, Bélgica
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