O DVD passou e já
estamos na geração do Blu-Ray. Mas parece que no Brasil ninguém entendeu as
potencialidades de antigos dispositivos tecnológicos como o controle remoto e o
finado videocassete. As promessas do controle remoto de “se livrar de
comerciais chatos” graças à “magia negra da eletrônica”, como era divulgado o
novo dispositivo na década de 1950, se equivalem às perspectivas de que o
videocassete era a “libertação do vídeo” e que transformaria o espectador no “senhor
da TV” na década de 1980. Muitas teorias conspiratórias sustentam que foi muito
conveniente para o monopólio televisivo da Rede Globo que tais inventos não
fossem compreendidos na sua plenitude pelo telespectador. Com a possibilidade de gravações programadas que o videocassete oferecia, certamente
a grade de programação da Globo (introjetada tão profundamente no psiquismo do
brasileiro que foi capaz de diminuir a taxa de natalidade) certamente sofreria
grande impacto. Mas essa oportunidade foi perdida.
O ano era 1972.
Após o sucesso editorial do Manual do
Escoteiro Mirim (publicação infantil inspirada na atividade do escotismo dos
sobrinhos do pato Donald, Huguinho, Zezinho e Luizinho), a editora lançava o Manual do Professor Pardal no qual eram
contadas as histórias de muitas invenções, sempre ilustradas pela presença do
simpático personagem da galeria Disney.
Folheando as coloridas páginas com várias
curiosidades do mundo dos inventores e invenções, a certa altura deparamo-nos com
um pequeno texto sobre o videocassete, até então uma invenção recente da Sony e
introduzida no mercado norte-americano um ano antes. O texto sobre o novo
dispositivo tecnológico tinha um tom futurista e revolucionário que prometia
mudar a televisão tal como até então se conhecia:
“O videocassete é para a televisão a mesma coisa que a fita magnética é para o rádio. Ele permitirá que as pessoas escolham na hora seu próprio programa de TV: bastará que liguem os terminais adequados do aparelho a uma máquina (do tamanho da máquina de escrever) que gravará o cassete. Para se reproduzir as imagens faz-se ligação entre essa máquina e o aparelho de TV devidamente adaptado. Ao ser ligada a máquina, as imagens, que na fita cassete estão representadas por sinais magnéticos, aparecerão na tela do televisor. O equipamento servirá também para as pessoas gravem suas próprias videofitas em casa para passá-las no televisor. Em futuro próximo, o aparelho de TV poderá estar ligado a uma loja de cassetes. A pessoa então escolherá, entre milhares de títulos, simplesmente discando um determinado número, um teledial. A videofita escolhida aparecerá na tela, dentro de casa, e a conta virá no final do mês, junto com a do gás e da luz” (Manual do Professor Pardal, São Paulo: Editora Abril, 1972, p. 124).
Manual do Professor Pardal: o tom futurista e otimista do videocassete |
Nesse pequeno e ingênuo
exercício de futurologia em uma publicação infantil já estava latente a possibilidade
de mudança drástica na relação entre a TV e o telespectador – abandonar a passividade
e tornar-se dono da sua própria programação, gravando os programas favoritos e
determinando o melhor horário para vê-los. Uma mudança tão drástica que poderia
ameaçar o precioso conceito de grade de programação (razão da existência
comercial da TV e da inserção publicitária) e do próprio monopólio político da
Rede Globo.
Controle remoto: a promessa do espectador se tornar o "senhor da TV" |
A história dessas
duas invenções que abriam a perspectiva do telespectador tornar-se “dono da sua
TV” e libertar-se dos restritos horários das emissoras é interessante e
curioso: demonstra como as décadas se sucederam e, principalmente no caso
brasileiro, os usuários não compreenderam o alcance transformador e até
político desses dispositivos tecnológicos. As pessoas se limitaram nas funções
mais básicas como troca de canal e efeito zapping no caso do controle remoto e
“play”, “stop” e “eject” no caso do videocassete – para desespero das
locadoras, a função “rewind” (rebobinar) era simplesmente ignorada.
Se nos EUA o
controle remoto e o videocassete resultaram em grandes mudanças nos hábitos
televisivos prejudicando a audiência das três grandes redes de TV que eram as
únicas opções da telinha (CBS, ABC e NBC), no Brasil as coisas foram muito
diferentes.
Desde o Golpe
Militar de 1964 era evidente que o projeto político do novo regime envolvia a
concentração midiática televisiva. Este monopólio implicou na decadência
de outras mídias (inclusive mais críticas ao regime militar) como cinema e
teatro, tornando a TV a única mídia formadora da identidade e consciência
nacionais. No caso dos jornais, revistas e livros, as conseqüências foram
perniciosas para a cultura: com o monopólio televisivo não só no mercado
publicitário, mas também no psiquismo do brasileiro, o hábito de leitura
torna-se cada vez mais rarefeito nas gerações pós-64.
E
apesar das novas tecnologias como a Internet, a TV continua sendo a principal
fonte de informação para o brasileiro segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia
2014 realizada pela Secretaria da Comunicação da Presidência da República
(Secom) e Ibope - sobre essa pesquisa clique aqui. Por que no Brasil dispositivos como o controle remoto e o
videocassete não foram assimilados em toda a sua potencialidade? Se fosse o
contrário, certamente resultaria em sério abalo a esse projeto brasileiro de
concentração midiática e comercial na TV.
Controle remoto e zapping
Quando surgiram os
primeiros modelos de controle remoto na década de 1950, havia uma expectativa
positiva em relação aos benefícios que traria à evolução da televisão.
Acreditava-se que o aumento de poder de comutação nas mãos do espectador o
tornaria mais exigente em termos de qualidade. Isso forçaria os canais
concorrentes a melhorar a qualidade das suas atrações para manter a fidelidade
do espectador. Mas não contavam com um efeito colateral imprevisto: o chamado “efeito
zapping”.
Mudou-se para
sempre a relação do espectador não só com a televisão, mas com todas as mídias
(o diretor inglês Peter Greenway, por exemplo, sempre afirmou que “o cinema
morreu em 1983 com o início do efeito zapping”): a relação passou de referencial
(a busca e escolha de uma atração ou narrativa para assistir) para lúdica – não
se trata mais de buscar uma narrativa para ser contemplada do começo ao fim,
mas de muda de canal sob qualquer pretexto (comerciais, queda de ritmo etc.). Não mais assiste a programas inteiros, nem acompanha mais histórias
completas. Ele salta continuamente, em pouco tempo ele
aprende a assistir qualquer coisa por amostragem.
O
efeito zapping fez a TV alterar seu ritmo e linguagem para manter a atenção do espectador,
revertendo os supostos benefícios do dispositivo. Por isso, o comportamento
zapeante foi um duro golpe na exatidão dos índices de audiência.
Mas
no Brasil uma série de fatores minimizou esse impacto: o monopólio televisivo da
Rede Globo implementado pelo projeto político do regime militar, a forma como a
grade da programação da Globo enraizou-se no dia-a-dia do brasileiro (em muitos
lugares, até hoje, compromissos são marcados antes ou depois das novelas ou
ainda a queda da natalidade dos brasileiros na medida em que a grade horária se
impôs ao bioritmo do brasileiro – sobre isso leia “Novelas provocam queda de natalidade no Brasil”, diz estudo). Ou ainda a entrada tardia do controle remoto
no mercado nacional, que além de tudo encarecia o custo dos televisores.
Muitas
teorias conspiratórias ainda sustentam que propositalmente a TV Globo não
veiculava anúncios de TVs com controle remoto ou, pelo menos, omitia a presença
desses dispositivos nos novos aparelhos. Corrobora com essas teorias o fato de
que com a entrada da TV por assinatura no País (que poderia incentivar o efeito
zapping com a multiplicação do número de canais disponíveis) a Rede Globo
praticamente “sentou” no mercado para evitar sua expansão. Era necessário
garantir a concentração das verbas publicitárias na TV aberta, que ainda podia
contar com fidelidade psíquica do espectador à grade tradicional de programação
– novela das 7 / Jornal Nacional / novela das 9 /entretenimento / futebol ao
vivo.
Por
isso, pelos menos duas gerações se passaram sem compreender a oportunidade
oferecida pelo controle remoto de, pelo menos, ameaçar um projeto midiático que
ainda persiste, herança do regime militar de 1964 a 1985.
Poucos entenderam o videocassete
Em
julho de 1981 a revista Veja declarava de forma bombástica que o videocassete
era “a libertação do vídeo”. Apostava que depois de mudar o hábito de dois
milhões de famílias americanas, o “invasor japonês” da Sony chegava ao Brasil e
que o brasileiro “ainda não conhecia o equipamento e seus usos” e ainda que “ele
não poderá continuar vivendo sem essa realidade” – sobre essa matéria clique aqui.
Mas pode! Não conseguiu entender (ou não o permitiram, diriam os
conspiratórios) o alcance revolucionário de um aparelho que permitira ao
espectador criar sua própria grade de programas e planejando programações
semanais de gravações. Depois, confortavelmente aceleraria os intervalos
comerciais com a tecla fast-foward.
Os vídeo-clubes
com suas cópias piratas de filmes VHS e, mais tarde, as locadores de vídeo
acabaram estereotipando a imagem do videocassete como um “cinema em casa” ou “home
theater”, que, no Brasil, acabou reforçando ainda mais o monopólio televisivo da
Rede Globo com a Globo Filmes e suas produções com atores das novelas da
telinha, criando uma espécie de retro-alimentação entre TV e vídeo.
Além disso, a
produção cinematográfica nacional era prejudicada: os filmes nacionais eram transformados
em um gênero à parte nas prateleiras das locadoras. A denominação “cinema
brasileiro” fez as produções nacionais diferenciarem-se de produtos dos quais
não deveriam se distinguir e perderam grande parte de sua atração de público.
Com isso, mais uma
ameaça ao monopólio televisivo da Rede Globo era anulada, mantendo-se a
irracional adaptação do espectador à grade de programação, capaz de ditar até
ritmos biológicos.