segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Por que somos seduzidos pelo virtual?



“É a verdade... a digitalização da vida real. Você não vai só a uma festa. Vai a uma festa com uma câmera digital. E seus amigos revivem a festa on line.” Essa afirmação de Sean Parker (criador do Napster, interpretado no filme por Justin Timberlake), que aparece solta nas frenéticas linhas de diálogo no filme “A Rede Social” (The Social Network, 2010), é a síntese do “desejo de virtualidade”, essa motivação individual que sustenta todo o projeto tecnognóstico que domina a atual agenda tecnológica e científica. O desejo pela digitalização da vida seria a recorrência de uma milenar aspiração gnóstica pela transcendência da carne e a imortalidade da espécie. Mas essa aspiração por transcendência transforma-se em má consciência ao ser capturada por sistemas econômicos e políticos. Transforma-se em ideologia, como questiona o pesquisador canadense em ciência política, tecnologia e cultura Arthur Kroker.


Como viemos desenvolvendo em postagens recentes (veja links abaixo), esse projeto tecnognóstico consiste numa confluência entre ciências cognitivas, neurociências, Inteligência Artificial e ciências computacionais com a seguinte agenda tecnocientífica: criar modelos de simulação do funcionamento do cérebro, entender natureza da consciência e estabelecer as bases para o surgimento da interface final da história da tecnologia, a conexão direta entre cérebro e máquina, biológico/eletrônico, rede neuronal/rede digital.

Esta agenda ampla somente pode ser possível através de um gigantesco projeto de engajamento coletivo, o que chamo de “Cartografias e Topografias da Mente”. Acompanhamos na Internet o crescimento de instrumentos de mapeamentos ou representações cartográficas de nossos pensamentos, hábitos, relacionamentos e escolhas por meio de sites de redes sociais, softwares e projetos pessoais que buscam elaborar verdadeiras “geografias interiores”. Há um esforço e incentivo deliberado para que todos os usuários, espontaneamente, disponibilizem seus dados pessoais ou apresentem, por conta própria, seus mapas mentais e geografias pessoais. Temos uma série de exemplos como o “Inner Geographies Project”, o “Lifestream” ou o “Life-Tracking”.

Isso sem falar nas redes sociais como Orkut ou Facebook onde o timeline das interações oferece um precioso banco de dados para um mapeamento de tendências de hábitos e comportamentos, como, por exemplo, mostra uma notícia divulgada pela BBC Brasil “Facebook revela os períodos que mais namoros terminam” onde o jornalista e especialista em informação David McCandless e o designer Lee Bryon analisaram 10 mil mudanças de status no site de relacionamentos. O Resultado foi um gráfico onde se localizavam os picos das separações (clique aqui para ler a matéria)

Essas cartografias da mente e das relações humanas, assim como o projeto tecnognóstico como um todo, somente são possíveis graças à antiga e gnóstica busca pela transcendência da carne. Esse é o emocional subtexto por trás dessa euforia tecnológica por simulações, interfaces e a fusão direta e sem mediações entre cérebro e máquina.

O desejo de virtualidade é a atual recorrência desse impulso atávico humano. Voltando a Sean Parker no filme “A Rede Social”, sua afirmação é emblemática. O desejo por digitalizar a vida real, ir a uma festa com uma câmara digital para tudo ser revivido on line representa um autêntico impulso por transcendência, porém, vivido de uma forma falsa por uma tecnologia que promete um atalho para a felicidade e iluminação.

Arthur Kroker e o “reclínio” do corpo.


Arthur Kroker
Como o filósofo alemão Theodor Adorno afirmava, toda ideologia tem o seu momento de verdade. O desejo por virtualidade incorpora esse momento gnóstico de verdade: a secreta desconfiança de que o que entendemos por realidade é uma ilusão é que somos exilados num cosmos físico imperfeito, prisioneiros de um acidente de dimensões cósmicas por obra de um Demiurgo, ou seja, uma divindade imperfeita e inebriada pela ilusão de se considerar o único deus. Esse momento de verdade, a busca humana pela gnose (a forma de conhecimento que nos reconecta com o divino), está presente em vários momentos da história.

Do Tratado Corpus Hermeticum (conjunto de 17 tratados sobre os quais se funda a ciência alquímica), o gnosticismo de Platão, as seitas gnósticas cristãs dos séculos II e III DC, e o gnosticismo alquímico, todos esses são os momentos da gnosis, o momento de verdade desse desejo por transcendência da carne.

Mas o impulso por transcendência transforma-se em má consciência. Capturado por sistemas econômicos e políticos torna-se ideologia, como nos demonstra o pesquisador em ciência política, tecnologia e cultura Arthur Kroker. Através de importantes trabalhos como The Postmodern Scene, Data Trash – The Theory of the virtual class, Hacking The Future e Digital Delirium, Kroker nos apresenta como a tecnologia computacional, Internet e realidade virtual encarnam o principal fundamento religioso do pensamento ocidental: o Cristianismo, tal qual desenvolvida pela sacra Igreja.

Da Santíssima Trindade de
Santo Agostinho às tecnologias
computacionais, a separação entre
corpo e espírito
O cristianismo causou uma separação artificial matéria e espírito, resolvendo a questão em favor do espírito. Quando Santo Agostinho inventou a Trindade, e depois de São Paulo inventou Graça, a Igreja Romana criou uma forma de poder mortal conhecido como "Espírito".

Continuando o raciocínio de Kroker, alienado de seu corpo foi cortado para o homem o caminho da salvação defendida por todas as religiões divinas (o autocultivo), substituindo-a pela expiação vicária por meio do sangue de Cristo celibatário. As inovações da Igreja conduziram às renúncias e difamações da carne humana, todos os em nome da libertação do suposto Salvador. Tornou-se necessário matar o corpo a fim de salvar a alma.

Embora a civilização ocidental tenha passado por um período de secularização, muitas das inovações da Igreja continuaram na época do Iluminismo. Descartes exigiu uma divisão dicotômica entre mente e corpo como base para sua ontologia. Bentham defendeu uma fiscalização rigorosa do corpo para cultivar a mente, enquanto Comte invocou uma nova ordem comandada por uma elite tecnológica.

As prisões, escolas, hospitais e asilos operaram no mesmo princípio: a necessidade do policiamento de um organismo irracional para o cultivo uma mente racional. Todas instituições consagradas pela ordem político-econômico do Ocidente até a atualidade.

A tecnologia do computador aumenta essa dicotomia na ontologia ocidental. A imagem idealizada do cibersurfista é a de uma pessoa sentada diante do computador, olhos fixos, onde a mente viaja em tempo real através do ciberespaço enquanto o corpo está paralisado. Mas esta é uma jornada alienante, pois os usuários nunca deixam suas cadeiras. É uma viagem virtual, em busca de conhecimentos virtuais, em um mundo frio virtual.

Arthur Kroker pinta um quadro sombrio de um futuro onde a sociedade ocidental está em "reclínio" ao entrar lentamente em uma fase terminal. Kroker substitui o termo declínio por “reclínio” por não ver uma decadência do corpo, mas o ápice de uma tendência histórica em denegrir, inferiorizar ou fazer reclinar o corpo frente às demandas “espirituais”.

O fascismo, violência e pornografia são outros sintomas da vontade de virtualidade nesse mundo pós-cristão. O fascismo é o policiamento final de um corpo depravado, enquanto a violência gratuita e pornografia degradante são os estímulos principais para reclinar os corpos. Liberdades e prazeres sutis são coisas do passado, morto com o corpo desprezado para salvar a alma virtualizada. Não é por acaso que o sexo e morte são os temas mais populares no mundo virtual, uma vez que fornecem a hiper-estimulação necessária para um corpo que outrora se conhecia melhor.

Desejo do virtual como substituto da gnose

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Esse diagnóstico sombrio de Kroker é importante, porém falta o momento de verdade por esse desejo de virtualidade: o impulso por transcendência, por gnose. Como cientista político, Kroker vê no complexo tecnocientífico atual apenas mais um instrumento de alienação e o fascínio pela vitualidade como apenas uma ideologia imposta a pessoas hipnotizadas e estáticas em suas cadeiras em frente às telas dos computadores.

O fascínio pela virtualidade (mascarado pelo marketing do discurso da conveniência) da atual agenda tecnognóstica explora o sagrado e gnóstico impulso humano pela transcendência da carne. Porém, oferece uma transcendência não por meio da redenção da carne, mas a partir do seu “reclínio” (policiamento, controle, monitoramento e humilhação do orgânico) sob uma promessa de um Eu espiritualizado e livre no ciberespaço. Em síntese: oferece a promessa de um “atalho para Satori”, uma transcendência e imortalidade do Eu em uma Nova Jerusalém cibernética.

Sabemos que ao longo da História temos o combate entre duas perspectivas: gnosis versus episteme, idealismo versus materialismo, Aristotelismo versus Platonismo etc. Todas as formas religiosas ou de conhecimento hermético (gnosticismo histórico e alquimia, por exemplo) que fundamentavam a transcendência por meio de um conhecimento baseado no autocultivo que permitia uma reconexão com o divino foram sistematicamente reprimidas.

Em seu lugar, a criação de verdadeiras tecnologias do espírito comandadas pela Razão (do Iluminismo ao Tecnognosticismo cabalístico da atualidade) que prometem a satisfação desse impulso por transcendência mediante o engajamento do Eu a gadgets tecnológicos que espelham a ordem do Capital e do “livre mercado”.

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