Como
viemos desenvolvendo em postagens recentes (veja links abaixo), esse projeto
tecnognóstico consiste numa confluência entre ciências cognitivas,
neurociências, Inteligência Artificial e ciências computacionais com a seguinte
agenda tecnocientífica: criar modelos de simulação do funcionamento do cérebro,
entender natureza da consciência e estabelecer as bases para o surgimento da
interface final da história da tecnologia, a conexão direta entre cérebro e
máquina, biológico/eletrônico, rede neuronal/rede digital.
Esta
agenda ampla somente pode ser possível através de um gigantesco projeto de
engajamento coletivo, o que chamo de “Cartografias e Topografias da Mente”.
Acompanhamos na Internet o crescimento de instrumentos de mapeamentos ou
representações cartográficas de nossos pensamentos, hábitos, relacionamentos e
escolhas por meio de sites de redes sociais, softwares e projetos pessoais que
buscam elaborar verdadeiras “geografias interiores”. Há um esforço e incentivo
deliberado para que todos os usuários, espontaneamente, disponibilizem seus
dados pessoais ou apresentem, por conta própria, seus mapas mentais e
geografias pessoais. Temos uma série de exemplos como o “Inner Geographies Project”,
o “Lifestream” ou o “Life-Tracking”.
Isso
sem falar nas redes sociais como Orkut ou Facebook onde o timeline das interações oferece um precioso banco de dados para um
mapeamento de tendências de hábitos e comportamentos, como, por exemplo, mostra
uma notícia divulgada pela BBC Brasil “Facebook revela os períodos que mais
namoros terminam” onde o jornalista e especialista em informação David
McCandless e o designer Lee Bryon analisaram 10 mil mudanças de status no site
de relacionamentos. O Resultado foi um gráfico onde se localizavam os picos das
separações (clique
aqui para ler a matéria)
Essas
cartografias da mente e das relações humanas, assim como o projeto
tecnognóstico como um todo, somente são possíveis graças à antiga e gnóstica
busca pela transcendência da carne. Esse é o emocional subtexto por trás dessa
euforia tecnológica por simulações, interfaces e a fusão direta e sem mediações
entre cérebro e máquina.
O
desejo de virtualidade é a atual recorrência desse impulso atávico humano.
Voltando a Sean Parker no filme “A Rede Social”, sua afirmação é emblemática. O
desejo por digitalizar a vida real, ir a uma festa com uma câmara digital para
tudo ser revivido on line representa
um autêntico impulso por transcendência, porém, vivido de uma forma falsa por
uma tecnologia que promete um atalho para a felicidade e iluminação.
Arthur Kroker e o “reclínio” do
corpo.
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Arthur Kroker |
Como
o filósofo alemão Theodor Adorno afirmava, toda ideologia tem o seu momento de
verdade. O desejo por virtualidade incorpora esse momento gnóstico de verdade:
a secreta desconfiança de que o que entendemos por realidade é uma ilusão é que
somos exilados num cosmos físico imperfeito, prisioneiros de um acidente de
dimensões cósmicas por obra de um Demiurgo, ou seja, uma divindade imperfeita e
inebriada pela ilusão de se considerar o único deus. Esse momento de verdade, a
busca humana pela gnose (a forma de conhecimento que nos reconecta com o
divino), está presente em vários momentos da história.
Do
Tratado Corpus Hermeticum (conjunto de 17 tratados sobre os
quais se funda a ciência alquímica), o gnosticismo de Platão, as seitas
gnósticas cristãs dos séculos II e III DC, e o gnosticismo alquímico, todos
esses são os momentos da gnosis, o
momento de verdade desse desejo por transcendência da carne.
Mas
o impulso por transcendência transforma-se em má consciência. Capturado por
sistemas econômicos e políticos torna-se ideologia, como nos demonstra o
pesquisador em ciência política, tecnologia e cultura Arthur Kroker. Através de
importantes trabalhos como The Postmodern
Scene, Data Trash – The Theory of the
virtual class, Hacking The Future
e Digital Delirium, Kroker nos
apresenta como a tecnologia computacional, Internet e realidade virtual
encarnam o principal fundamento religioso do pensamento ocidental: o
Cristianismo, tal qual desenvolvida pela sacra Igreja.
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Da Santíssima Trindade de Santo Agostinho às tecnologias computacionais, a separação entre corpo e espírito |
O
cristianismo causou uma separação artificial matéria e espírito, resolvendo a
questão em favor do espírito. Quando Santo Agostinho inventou a Trindade, e
depois de São Paulo inventou Graça, a Igreja Romana criou uma forma de poder
mortal conhecido como "Espírito".
Continuando
o raciocínio de Kroker, alienado de seu corpo foi cortado para o homem o
caminho da salvação defendida por todas as religiões divinas (o autocultivo),
substituindo-a pela expiação vicária por meio do sangue de Cristo celibatário.
As inovações da Igreja conduziram às renúncias e difamações da carne humana,
todos os em nome da libertação do suposto Salvador. Tornou-se necessário matar
o corpo a fim de salvar a alma.
Embora
a civilização ocidental tenha passado por um período de secularização, muitas
das inovações da Igreja continuaram na época do Iluminismo. Descartes exigiu
uma divisão dicotômica entre mente e corpo como base para sua ontologia.
Bentham defendeu uma fiscalização rigorosa do corpo para cultivar a mente,
enquanto Comte invocou uma nova ordem comandada por uma elite tecnológica.
As
prisões, escolas, hospitais e asilos operaram no mesmo princípio: a necessidade
do policiamento de um organismo irracional para o cultivo uma mente racional.
Todas instituições consagradas pela ordem político-econômico do Ocidente até a
atualidade.
A
tecnologia do computador aumenta essa dicotomia na ontologia ocidental. A
imagem idealizada do cibersurfista é a de uma pessoa sentada diante do
computador, olhos fixos, onde a mente viaja em tempo real através do
ciberespaço enquanto o corpo está paralisado. Mas esta é uma jornada alienante,
pois os usuários nunca deixam suas cadeiras. É uma viagem virtual, em busca de
conhecimentos virtuais, em um mundo frio virtual.
Arthur
Kroker pinta um quadro sombrio de um futuro onde a sociedade ocidental está em
"reclínio" ao entrar lentamente em uma fase terminal. Kroker
substitui o termo declínio por “reclínio” por não ver uma decadência do corpo,
mas o ápice de uma tendência histórica em denegrir, inferiorizar ou fazer
reclinar o corpo frente às demandas “espirituais”.
O
fascismo, violência e pornografia são outros sintomas da vontade de
virtualidade nesse mundo pós-cristão. O fascismo é o policiamento final de um
corpo depravado, enquanto a violência gratuita e pornografia degradante são os
estímulos principais para reclinar os corpos. Liberdades e prazeres sutis são
coisas do passado, morto com o corpo desprezado para salvar a alma
virtualizada. Não é por acaso que o sexo e morte são os temas mais populares no
mundo virtual, uma vez que fornecem a hiper-estimulação necessária para um
corpo que outrora se conhecia melhor.
Desejo do virtual como substituto
da gnose
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Adicionar legenda |
Esse
diagnóstico sombrio de Kroker é importante, porém falta o momento de verdade
por esse desejo de virtualidade: o impulso por transcendência, por gnose. Como
cientista político, Kroker vê no complexo tecnocientífico atual apenas mais um
instrumento de alienação e o fascínio pela vitualidade como apenas uma
ideologia imposta a pessoas hipnotizadas e estáticas em suas cadeiras em frente
às telas dos computadores.
O
fascínio pela virtualidade (mascarado pelo marketing do discurso da
conveniência) da atual agenda tecnognóstica explora o sagrado e gnóstico
impulso humano pela transcendência da carne. Porém, oferece uma transcendência
não por meio da redenção da carne, mas a partir do seu “reclínio”
(policiamento, controle, monitoramento e humilhação do orgânico) sob uma
promessa de um Eu espiritualizado e livre no ciberespaço. Em síntese: oferece a
promessa de um “atalho para Satori”, uma transcendência e imortalidade do Eu em
uma Nova Jerusalém cibernética.
Sabemos
que ao longo da História temos o combate entre duas perspectivas: gnosis versus episteme, idealismo versus materialismo, Aristotelismo versus
Platonismo etc. Todas as formas religiosas ou de conhecimento hermético
(gnosticismo histórico e alquimia, por exemplo) que fundamentavam a
transcendência por meio de um conhecimento baseado no autocultivo que permitia
uma reconexão com o divino foram sistematicamente reprimidas.
Em seu lugar, a
criação de verdadeiras tecnologias do espírito comandadas pela Razão (do
Iluminismo ao Tecnognosticismo cabalístico da atualidade) que prometem a
satisfação desse impulso por transcendência mediante o engajamento do Eu a
gadgets tecnológicos que espelham a ordem do Capital e do “livre mercado”.