O canal AMC nos EUA fez um remake da cultuada série britânica dos anos 60 "O Prisioneiro". Sinal dos tempos: se naquela época a série refletiu o clima dos tempos da Guerra Fria e das distopias como "1984", o remake atual apresenta os sintomas do neo-liberalismo e da utopia tecnognóstica por meio da privatização do controle social e das técnicas das neurociências que pretendem mapear e fazer uma cartografia da mente. Atenção: essa postagem possui spoilers.
Há 40 anos estreava uma série transmitida pela televisão britânica que combinava espionagem, ficção científica e drama psicológico. A cultuada série “O Prisioneiro” contava a estória de um homem que, após entregar uma carta de renúncia ao que seria um alto cargo no serviço secreto do governo britânico em plena Guerra Fria, é seguido até sua casa. Através do buraco da fechadura é introduzido um gás branco que o faz dormir. Ao acordar, está em outro lugar, uma vila litorânea, cheia de gente feliz desfrutando uma vida repleta de atividades recreativas. Logo descobrirá que é uma prisão onde ninguém tem nome, apenas números. O seu é número seis.
No ano passado o canal AMC (American Movie Classics) nos EUA fez um remake dessa série, ironicamente em seis episódios. Se “O Prisioneiro” dos anos 60 apresentava a atmosfera das distopias de pós-guerra como "1984" de George Orwell ou "Farenheit 451" de Ray Bradbury (Governos totalitários e estados policiais vigiando, controlando e punindo o indivíduo que transgride sistemas, aqui a série sofreu duas importantes adaptações aos novos tempos:
Primeiro, não temos mais um sistema de controle estatal. Todo o controle e dominação foi privatizado e está a cargo de uma empresa de mineração de dados chamada Summakor. Um novaiorquino chamado Michael (James Caviezel) pede demissão dessa empresa de uma forma ostensiva e desafiadora (como vemos nas imagens dos créditos iniciais, onde aparece o protagonista pichando “Resign” numa divisória de vidro do escritório, para escândalo dos funcionários). Logo depois, ele acorda num deserto, sem saber como veio parar ali. Ele é levado para um lugar chamado A Vila onde ninguém tem nomes, apenas números, e todos o chamam por Seis, como se lá morasse há muito tempo. Aos poucos descobre que possui um irmão e que trabalha como motorista de ônibus turístico. Micheal vê-se numa situação surreal, pois se lembra de quem era em Nova York.
Número Dois (o governador daquele lugar - Ian McKellen), diz para ele que A Vila é a única realidade e que para além dos seus limites nada existe, a não ser o deserto. Portanto, a missão de Michael é encontrar uma saída para retornar a sua vida em Nova York. A Vila possui uma atmosfera que lembra muito O Show de Truman: tudo é a-histórico (a arquitetura das casas, o design dos automóveis, as roupas dos habitantes etc). Um enorme pastiche de estilos de épocas diferentes criando um conjunto lógico a-temporal.
Segundo: ao contrário da série original, essa adaptação apresenta uma explicação final sobre o propósito da Vila e o porquê de Micheal ter parado lá. Após os seis episódios com muitos flash backs da última noite de Micheal, em seu apartamento em Nova York na companhia da enigmática Lucy, colega de trabalho na Summakor, chegamos à revelação ensaiada ao longo da série: Summakor não era apenas uma empresa de mineração de dados: mais do que isso, uma gigantesca empresa de engenharia social. A Vila fazia parte de uma experiência de tecnologia de controle social.
A agenda Tecnognóstica
A adaptação de 2009 de “O Prisioneiro” encaixa-se claramente na agenda tecnológica desse início de século. Se na era da Guerra Fria o grande tema era discussão sobre estados totalitários que esmagavam a liberdade individual (herança dos estados nazistas e stalinistas), agora a agenda se concentra nas tecnologias do espírito (neurociências, neuromarketing, neurolinguística, memética etc.) e na aplicação sócio-política dessas pesquisas puras: a engenharia social.
Em postagens anterioras vimos que essa agenda vem influenciando os argumentos e roteiros de filmes como “A Origem”, “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” e “Vanilla Sky”: narrativas que dramatizam as novas experiências de controle social a partir do mapeamento da mente, onde a vida mental é representada por uma cartografia e topografia, revelando mundos imaginários dentro dos quais se encontram personagens que tentam manipulá-los.
“O Prisioneiro” de 2009 claramente se sintoniza com essa tendência: A Vila é mais um desses lugares imaginários, uma cartografia da vida mental feita pela Summakor para “consertar pessoas quebradas” como fala o personagem Dois. A partir da indução por drogas pesadas, a Vila é a construção de uma “alucinação consensual” (definição que o escritor William Gibson deu para o ciberespaço) para onde são enviados os egos de pessoas disfuncionais à ordem social (paranoicas, violentas, deprimidas etc.). Lá vivem numa vila em tons pastéis dentro de uma rotina idílica, simples e inocente.
Michael se insurge contra a Summakor (“nenhuma dessas pessoas pediram para ser consertadas”, diz indignado para número Dois). Ele é mais uma das “pessoas quebradas”, um funcionário insurgente da mega empresa que vigia a todos na busca de comportamentos disfuncionais que necessitem ser enviados à Vila para serem “consertados”.
Simbolismos Gnósticos
Paranóia, pessoas que despertam em mundos paralelos, demiurgos que criam e mantém lugares que aprisionam pessoas que perderam suas memórias. “O Prisioneiro” trabalha com temas clássicos do filme gnóstico. Porém, dois temas da simbologia gnóstica são explorados em profundidade: o papel da mulher (a personagem mítica de Sophia) e a representação distópica da reencarnação (representada pela existência da Vila).
Toda a infra-estrutura da “alucinação consensual” da Vila é criada a partir do material psíquico de M2, esposa de Dois, governador, demiurgo e, na vida real, neurocientista. Junto com sua esposa (ambos formados no MIT – Massachusetts Institute of Technology) criaram a engenharia social da Summakor. Tal como na simbologia gnóstica, Sophia dá vida ao mundo criado por formas etérias e vazias do Demiurgo. Aprisionada nesse cosmos material, a ascensão de Sophia para as dimensões elevadas deverá ser o caminho pelo qual o homem deverá também trilhar (a gnose).
A Vila em “O Prisioneiro” é o próprio simbolismo da natureza regressiva e aprisionadora da reencarnação para o Gnosticismo. Os egos das pessoas “quebradas” chegam à Vila sem lembranças de sua vida “terrena” (com exceção de Michael, que fará de tudo para escapar). Essa é a condição inicial para o tratamento: assim como na reencarnação onde sempre somos condenados a partir do zero, esquecendo-se das outras existências, os habitantes da Vila deletam suas existências e problemas psíquicos para viverem uma vida conformista de uma típica cidade interiorana. Para a engenharia social da Summakor (e para o Demiurgo na mitologia gnóstica) essa é a terapia ideal para, a partir do esquecimento, realizar o eterno retorno da existência na prisão do cosmos material.
Embora a adaptação do canal AMC de “O Prisioneiro” se insira nessa agenda tecnognóstica atual, seu viés é bem mais crítico. Ao contrário de “A Origem” de Christopher Nolan que faz uma apologia das neurociências ao apresentar a heroica luta do protagonista contra as projeções do seu próprio subconsciente, em “O Prisioneiro” o amargo e irônico final nos faz lembrar a máxima de Stephen King no livro “A Tempestade do Século”: “O inferno é a repetição”.
- Série: O Prisioneiro
- Direção: Nick Hurran
- Roteiro/adaptação: Bill Galagher
- Elenco: James Caviezel, Hayley Atwell, Ruth Wilson, Ian McKellen
- Produção: Granada Internacional, ITV Productions
- Distribuição: AMC (American Movie Classics)
- País: EUA
- Ano: 2009
Trailer de "O Prisioneiro"
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