quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Comercial "Eu Sou O Futebol" é uma bomba semiótica?

O novo vídeo publicitário da Brahma alusivo à Copa do Mundo no Brasil intitulado “Eu Sou O Futebol” surge no momento de pesada atmosfera política do “Não Vai Ter Copa” nesse início de ano. Numa coincidência significativa, o vídeo toma emprestados clichês midiáticos da cobertura das manifestações para compor o protagonista “Futebol” e a torcida brasileira nas ruas: o “Futebol” como uma figura encapuzada, vestida de preto e calçando coturno e a torcida representada através de uma composição visual ambígua que em alguns planos de câmera parece se assemelhar a manifestantes. O que significaria essa coincidência? Intertextualidade? Ressignificação de signos negativos em imagens positivas tal como no vídeo do ano passado? Um ato falho da criação publicitária? Ou mais uma deliberada “bomba semiótica” para reforçar o pesado ambiente político?

Nosso leitor Francisco Freire se diz intrigado com o novo comercial da Brahma intitulado “Eu Sou O Futebol”, alusivo à Copa do Mundo no Brasil nesse ano. Ele suspeita que  haveria algo de muito errado nesse filme: uma figura protagonista encapuzada, de coturno carregando uma mala preta representando o futebol.

Instigado por esse estranhamento demonstrado pelo nosso leitor, vamos analisar essa peça publicitária e submetê-la uma análise semiótica: será que o comercial da Brahma poderia ser mais uma bomba semiótica? E, o que seria surpreendente, dentro do campo publicitário?!


O filme, criado pela Agência Africa conta a narrativa histórica do personagem Futebol, desde sua transformação, até a sua volta para casa. “O futebol está voltando pra casa é mais que uma campanha, é um conceito que estará presente em todas as ações de Brahma para 2014, dando continuidade à nossa mensagem de otimismo, traduzida na assinatura ‘Imagina a Festa’. Vamos receber os melhores jogadores aqui na nossa casa e queremos que desde já os brasileiros usem sua alegria para tornar esse momento único para o país”, declara Bruno Cosentino, diretor de marketing da Brahma.

"Imagina na Copa": estratégia de
ressignificar uma
mensagem negativa
Olhando em retrospectiva os filmes publicitários da Brahma, desde a copa de 1994, mostram que suas criações primam pelo trivial de campanhas que associam cerveja com festas populares: o ufanismo, música axé, mulheres sensuais e exóticas para o olhar estrangeiro, a dobradinha clichê mulheres/cerveja, jogadores da seleção como artistas ou guerreiros (por exemplo, o Brasil contra o “resto do mundo” na Copa de 2010) e a tirada humorística do torcedor símbolo “tartaruga, né!” para a Copa do Japão em 2002.

Com o crescimento do movimento anti Copa nas mídias e as grandes manifestações de rua, a Brahma lançou no ano passado um vídeo publicitário que brincava com o bordão “Imagina na Copa”. O vídeo pretendia “resgatar a alegria e o orgulho de ser do país sede do mais importante evento global”.

Mas no atual vídeo não encontramos a inequívoca leitura positiva ou otimista do comercial do ano passado: ele é marcado por uma significação ambígua e recorrência de clichês ícônicos que marcam fotograficamente a cobertura das manifestações de rua.

Ambiguidade e dissociação áudio/imagem


O primeiro traço de ambiguidade está no descompasso entre o áudio e as imagens. O plano que abre o comercial é de uma figura encapuzada totalmente de preto, em contra-luz diante da janela no interior de um quarto de hotel, enquanto vemos na cama uma mala preta aberta com peças de roupas. Corta para o plano detalhe dos coturnos figura de preto agora caminhando e segurando a mala também preta. A composição visual dos planos iniciais remete à imagerie dos filmes de suspense e ação: franco-atiradores em quarto de hotéis, espiões, James Bond etc.

Nos planos seguintes imagens de festa, alegria, comemorações e, de repente, vemos essa figura soturna como que se infiltrando no meio da multidão que vibra com o futebol. Ninguém parece perceber a sua presença que passa pela multidão como um fantasma. E no final, a figura encapuzada (sempre em contra-luz – com exceção de um plano em que ela atravessa um campo de futebol à luz do dia) se detém na saída de um túnel que dá acesso às arquibancadas de um estádio lotado e põe a mala preta no chão. Se tomarmos em consideração a sequências dos planos sem o áudio, estaremos diante de uma narrativa que contaria um thriller policial ou de suspense.
Acima à esquerda: clichê de black bloc criado pela mídia; abaixo: cena do
vídeo da Brahma. Ao lado: black blocs elogiados em uma revista de oposição

 O que reforça essa impressão visual é a mala preta: ela não parece ser uma típica mala de viagem, mas lembra aquelas malas de franco-atiradores de filmes que carregam armas desmontadas com miras telescópicas.

Enquanto isso, o discurso do áudio narra outra estória: a figura visual soturna é o Futebol, de volta à sua pátria (o Brasil) onde o esporte se transformou em arte. O texto fala em “minha casa”, “a maior festa de todos os tempos” etc. Talvez a estranheza do nosso leitor Francisco Freire seja provocada por essa dissociação entre a sequência dos planos e o áudio.

Mas há também uma ambiguidade nos próprios planos de câmera, principalmente quando a narrativa apresenta as imagens do protagonista “Futebol” chegando ao Brasil. Das ruas ensolaradas onde vemos bandeiras brasileiras sendo desfraldadas em contra plongée (plano de câmera debaixo para cima) tendo ao fundo o céu azul, de repente corta-se para imagens noturnas de uma massa de torcedores (sempre em contra-luz) e atrás deles vemos fumaça e o predomínio de uma intensa luminosidade amarelada e avermelhada que se sobrepõe à verde e amarela que está isolada no canto à esquerda.

Ambiguidade: típicas imagens de comemorações nas ruas mescladas com os clichês visuais da cobertura jornalística das manifestações: incêndios e depredações. Vemos “vuvuzelas”, mas, também, punhos fechados imergindo da massa de torcedores que de repente pode ganhar uma conotação de manifestantes.

Recorrência de signos midiáticos


Acima: manifestantes em contra-luz 
na cobertura midiáticas das 
manifestações;
abaixo: cena do vídeo da Brahma
Outra característica desse vídeo publicitário é a recorrência. Como já apontamos brevemente acima, uma repetição de ícones que já se transformaram em verdadeiros clichês fotográficos nas coberturas jornalísticas nas manifestações desde junho.

Para começar a figura encapuzada, trajando roupa totalmente negra e calçando coturnos. Na grande mídia é o clichê do “vândalo-black-bloc-manifestante”. A narração em of nos informa que aquela figura é o próprio Futebol em pessoa, o que causa estranhamento diante de uma figura tão soturna representar algo tão alegre – dissociação áudio e imagem. Isso dá o que pensar: ressonâncias das manifestações anti-Copa em um filme publicitário que pretende homenagear o evento máximo do futebol mundial?

Outro clichê visual: o efeito dramático da composição fotográfica em contra-luz, estilo retórico marcante em fotos e vídeos das coberturas das manifestações - o protagonista e o perfil da massa de torcedores com luzes incidindo por trás em amarelo e vermelho e fumaça: torcedores com sinalizadores?

Algumas hipóteses para explicar o vídeo


Em síntese, o vídeo publicitário produzido pela Agência Africa para o produto Brahma da Ambeve S.A. apresenta uma evidente aproximação com os signos midiáticos das manifestações de rua no País. Resta saber se esta aproximação tem uma intencionalidade criativa (uma forma de intertextualidade como, por exemplo, alusão, paráfrase ou contiguidade), uma intencionalidade política (mais uma bomba semiótica lançada no contínuo midiático para tornar a atmosfera politicamente ainda mais carregada) ou simplesmente um caso de contaminação ou ressonância involuntária da histeria midiática em torno do tripé Copa/manifestações/eleições.

Por isso, valeria a pena levantarmos algumas hipóteses sobre esse vídeo:

(a) O vídeo manteria a coerência da criação do comercial do ano passado cujo mote era ressignificar de forma positiva o bordão negativo do “Imagina na Copa”. “O Futebol está Voltando para Casa” estaria novamente ressignificando clichês anti-Copa, dessa vez a figura do black bloc e manifestações de rua transformados em comemorações pela volta do Futebol ao nosso País;

(b) Um ato falho da criação publicitária demonstrando como está saturado o contínuo midiático atmosférico: na representação visual das comemorações de rua e do próprio futebol são incorporados involuntariamente clichês da cobertura midiática;

(c) Utilização intencional dessa ambiguidade produzida pela dissonância imagem/áudio e o soturno personagem parecido com um black bloc para representar o Futebol. Como discutíamos em outra postagem, o fator ambiguidade é o principal elemento que auxilia na disseminação a princípio de boatos como descreveram Gordon Allport e Leo Postman em 1947. Hoje, estaria por trás na disseminação de memes e imagens – sobre esse tema clique aqui. A intencionalidade de uma construção semioticamente ambígua estaria no desejo de transformar o vídeo em meme.

(d) Numa hipótese conspiratória, a Agência Africa, junto com o seu cliente Ambev S.A., teria criado mais uma deliberada bomba semiótica para o atual cenário político. Assim como o banco Itaú que mesmo com seus lucros recordes e crescimento contínuo põe o seu economista chefe na reunião de Davos para desaconselhar os investidores a investirem na “economia instável” brasileira (sobre isso clique aqui), da mesma forma a Ambeve S.A. apostaria suas fichas numa crise política para uma vitória oposicionista nas próximas eleições.

(e) E se o movimento oposicionista anti-Copa desse certo e o evento no País fosse uma catástrofe ou, talvez, nem ocorresse pelo nível de violência das manifestações de rua fora do controle das autoridades? Bom, aí pelo menos teríamos a realização do desejo implícito do anunciante: se tudo der errado, pelo menos você terá uma lata de cerveja Brahma na mão...

Ficha Técnica

Título: Eu Sou o Futebol
Diretor de Arte: Estefânio Holtz/ Lucas Reis/ Diego Lauton
Diretor Geral de Criação: Sergio Gordilho
Produção/agência: Rodrigo Ferrari/ Iara Demartini
Agência: Africa São Paulo Publicidade Ltda
Anunciante: AMBEV S.A.
Produto: Brahma
Locução: Milhem Cortaz
Data da primeira inserção: 29/01/2014


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