A grande mídia coloca a morte
trágica do cinegrafista Santiago Andrade num quadro mais geral de supostos
“ataques arbitrários a jornalistas” que representaria uma “ameaça à liberdade
de informação”. Esse discurso parece cumprir um duplo propósito: esconder o
fato de que essas manifestações apontam para uma profunda mudança nas relações
entre mídia e sociedade e, também, encobrir o aproveitamento oportunista do episódio
com o objetivo de reforçar ainda mais a escalada da percepção do medo e
instabilidade que colocaria em xeque a legitimidade de um governo
democraticamente eleito. A morte do cinegrafista poderia ser o sintoma de uma
tendência mais generalizada onde as ruas se transformam em extensões do estúdio
da TV e a mídia acaba se transformando na própria notícia. Se isso for verdade,
estamos diante de mais uma bomba semiótica que demonstra que a atual guerra
semiológica travada para a conquista da opinião pública passou para a fase da
guerra total.
Certa vez o teórico e estrategista da ditadura militar brasileira,
Golbery do Couto e Silva, disse: “Tudo, menos um cadáver!”. Era o período
tenebroso da repressão política e do desaparecimento de ativistas políticos.
Aparecer um cadáver que se transformasse em mártir era tudo que a ditadura não
queria naquele momento e, por isso, a mídia era duramente controlada e
censurada.
Era uma época em que a informação era perigosa para o Estado militar. A
informação era um bem escasso, alienado e submetido às formas de dissimulação
como a manipulação, mentira, censura etc.
Hoje, esse cenário de dissimulações da informação foi deixado para trás.
Vivemos o momento da simulação ou daquilo que o pensador francês Jean
Baudrillard chamava de “obscenidade” e “êxtase da comunicação”: não só as
imagens de acontecimentos se proliferam e se multiplicam como, principalmente,
começam a surgir relações cada vez mais promíscuas entre os acontecimentos e as
mídias a tal ponto que não sabemos mais quem transmite e o que é transmitido –
é o império da simulação.
A própria mídia é a notícia? |
Em 1990 muitos acharam que Baudrillard exagerava ao afirmar que diante
de acontecimentos como a Revolução Romena (onde um gigantesco ossário com
milhares de corpos foi montado para a mídia para parecerem vítimas da polícia
secreta do ditador Ceausescu) as ruas estariam se transformando em “gigantescas
extensões dos estúdios de TV”: todos os agentes sociais promoveriam
acontecimentos para atrair o enquadramento das câmeras e serem promovidos à
existência pública - leia BAUDRILLARD, Jean, "Televisão/Revolução: A Revolução Romena" In: PARENTE, André. Imagem Máquina, São Paulo: Editora 34. Veremos adiante que o caso dos black blocs poderia ser inserido nessa tese.
Se fosse vivo, Golbery ficaria espantado com essa inversão irônica de
estratégia: hoje, um cadáver foi necessário. E, mais irônico ainda, não através
da morte de um ativista supostamente vítima dos embates políticos, mas alguém
da própria mídia cuja tragédia se transformou em notícia.
O duplo propósito da grande mídia
A grande mídia insiste em interpretar a morte do cinegrafista da TV
Bandeirantes na cobertura de protestos no Rio de Janeiro, ainda dentro do paradigma
dos tempos de Golbery (o da dissimulação e alienação da informação): em editoriais fazem graves alertas que o
episódio representaria uma “ameaça ao direito à informação”, à “liberdade de
imprensa” e o fantasma da volta da censura com o “radicalismo das posições
políticas”. Para a grande mídia a morte do profissional da Band foi
oportunamente inserida dentro das narrativas tradicionais dos cinegrafistas e
jornalistas que tombaram mortos nas coberturas de guerras e revoluções ao longo
da História: Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial, Kosovo, Guerra do
Golfo etc.
Essa visão da grande mídia para o trágico acontecimento parece atender a
dois propósitos bem claros:
(a) Esconder que as relações mídia/sociedade mudaram radicalmente: não
temos mais veículos de comunicação que relatam acontecimentos da sociedade
(algo como o lema “testemunha ocular da História” do antigo programa da TV
brasileira “Repórter Esso”), mas agora câmeras e repórteres entram em uma relação
cada vez mais simbiótica com os fatos: incitando-os e ao mesmo tempo sofrendo o
movimento inverso – fatos são criados pelos agentes sociais para atrair a mídia
e notícias são plantadas para jornalistas moderem a isca e repercutirem um
determinado tema, seja involuntariamente por meio de “barrigas” ou voluntariamente
por ambições profissionais.
(b) Colocar a morte trágica do cinegrafista no mesmo patamar dos
profissionais da notícia mortos em situações de guerra é transformar o episódio
em mais uma bomba semiótica: o reforço da percepção na opinião pública de que o
País vive de fato um estado de caos, pré-insurgência civil e medo. E
ideologicamente martelar a convicção de que um governo que não controla as ruas
não tem legitimidade, mesmo que democraticamente eleito. Não é por acaso que,
no dia da morte do cinegrafista, o Jornal Nacional da TV Globo relatou o
impacto internacional do caso e, de forma oportunista, foi lido um trecho de um
jornal dos EUA que informava que o incidente ocorria em um momento de
crescimento de protestos devido ao “desaquecimento da economia brasileira”.
De certa forma esse discurso que associa a morte do cinegrafista da Band
às mortes de jornalistas em situações de guerra, realiza o desejo incontido
revelado nos telejornais pela constante colocação das imagens de protestos no
Brasil no mesmo bloco de notícias dos conflitos na Síria e Ucrânia: o sonho de
ver o País também pegando fogo.
A morte do cinegrafista e o esvaziamento dos protestos
A morte do cinegrafista da Band surge num momento de visível
esvaziamento icônico das manifestações de rua. Ao contrário das grandes
manifestações de junho do ano passado e de alguns meses subsequentes, onde as
câmeras mostravam planos aéreos (por que em terra os repórteres eram
hostilizados) de grandes massas humanas com milhares de manifestantes que
tomavam ruas e avenidas com faixas e bandeiras, ao contrário, nos últimos meses
tornou-se visível o esvaziamento: planos aéreos mostram espaços vazios com
algumas dezenas de mascarados depredando, incendiando e correndo de forma desencontrada.
Ao contrário do ano passado, imagens dos protestos são marcados por grandes espaços vazios nas ruas e imagens fixadas nos confrontos dos black blocs contra a polícia |
Enquanto isso cidadãos correm, se escondem e desaparecem. Tal como nas
coberturas futebolísticas onde a TV Globo, para esconder as arquibancadas
vazias fecham as câmeras nas áreas com torcedores e abre o áudio para encher o
silêncio do estádio, da mesma forma as câmeras fecham em incêndios, vitrinas
quebradas e ônibus incendiados, descontextualizando as cenas.
Por isso, as tomadas de imagens das últimas manifestações têm retornado
ao chão para conseguir dar um gás maior de dramaticidade e gravidade aos
eventos: planos com mais detalhe e imagens mais vívidas e dinâmicas com menos
imagens em plano conjunto que evidencie o baixo número de pessoas concentradas.
Um número baixo, pelo menos comparando com as célebres imagens das
manifestações do ano passado.
Os black blocs ou grupos
radicais sabem disso. Por isso suas ações são cada vez mais icônicas, pois
sabem que contarão com os planos fechados das câmeras: colchão incendiando no
meio da rua, flagrantes de ponta-pés e pedradas em fachadas comerciais, caixas-eletrônicos
sendo estourados. Supostas provas incontestes do caos da vida do brasileiro: ele
não pode ir e vir, fazer compras no comércio e nem fazer transações
financeiras.
O estúdio da TV como central revolucionária
Gestos estereotipados e indumentária overacting |
Por toda parte há uma pulsão irresistível de comunicação, uma vontade de
transparência: grande mídia diz que a liberdade de informação foi ameaçada e os
block blocs compulsivamente querem
ocupar um lugar na tela da TV.
Seus gestos são estereotipados, seu gestual e indumentária são overacting. Remetem a todo um
inconsciente coletivo de símbolos e imagens de épocas onde as revoluções,
protestos e confrontos visavam imediatamente a tomada do Poder e do Estado: a
Queda da Bastilha, a Revolução Bolchevique, a Revolução Iraniana, os protestos
estudantis de Maio de 68 na França etc.
Eles não visam mais o Poder e o Estado: querem ocupar o não-lugar da
tela da TV. Todos fazendo figurações para aparecerem a todo custo na tela.
Porém, existe um rendimento político da ação desses jovens que acreditam que o
estúdio de TV se tornou a central revolucionária: atores envolvidos numa má
produção e que se transformaram numa bomba semiótica lançada contra a opinião
pública dentro de um projeto sinistro: desestabilização política, a escalada da
percepção de medo e insegurança em um ano em que qualquer coisa se transformará
em nitroglicerina pura.
A morte do cinegrafista como sintoma
E se essa família morresse no lugar do cinegrafista? |
Portanto, a trágica morte do
cinegrafista da Band deve ser vista principalmente como um duplo sintoma:
primeiro, das transformações estruturais que a mídia, e o jornalismo em
particular, estão sofrendo onde o objeto da notícia não é simplesmente alienado
(como na época da ditadura), mas agora é simplesmente abolido. A mídia cria seu
próprio objeto noticiável enquanto o objeto apenas obedece ao script que chefes
e editores estabelecem. Os “vândalos” black
blocs fazem apenas isso: correspondem aos estereótipos midiáticos como uma
espécie de profecia auto-realizável.
Dessa vez, a vítima foi um profissional da mídia que se transformou em
notícia, em uma espécie de cadáver oportuno para manter a dramaticidade
necessária de uma atração que já começava a esvaziar. Mas poderia ter sido a
família do fusca em chamas em São Paulo (vítimas perfeitas para o momento), mas
não deu certo. Caso contrário, talvez o cinegrafista da Band ainda estivesse
vivo.
E segundo, o sintoma de que as bombas semióticas tornam-se cada vez mais
sujas. Elas parecem que abandonaram a precisão cirúrgica das primeiras
detonações, e agora buscam a guerra total (blitzkrieg) sem quartéis. A
indignação moral da grande mídia contra a ameaça à “liberdade de imprensa” é
uma reposta necessária para manter a ilusão de que ainda existe a informação (o
objeto da notícia) e a prova inconteste de que o País supostamente caminharia
em passos largos para o abismo.
Por isso, a partir desse momento apertem os cintos...
Postagens Relacionadas |