“Não existe almoço
grátis”, diz uma frase popular americana que sintetiza bem o espírito pragmático
daquele país. E José Padilha, diretor brasileiro de Tropa de Elite (2008), deve
ter comprovado isso ao ser convidado pelos estúdios da MGM para dirigir o
remake do clássico de ficção científica “RoboCop” dirigido pelo holandês Paul
Verhoeven em 1987. Atravessando séria crise financeira, o estúdio não quis se
arriscar em fazer uma refilmagem com o mesmo tom crítico visceral da versão
original: os temas da ganância corporativa, do desmanche e da privatização da
segurança pública estão diluídos em um roteiro onde os vários coadjuvantes se
equivalem em meras opiniões ou pontos de vista. Mais ainda, o filme parece
apresentar um estranho ato falho: ao colocar o papel da mídia como o principal
instrumento de manipulação corporativa, sugere que o próprio filme estaria
mostrando que o seu herói RoboCop poderia ser o instrumento de um lobby bastante
atuante em Hollywood, o da indústria de armas.
Na verdade o filme seria dirigido por Darren Aronofsky ("Cisne Negro" e "Pi"), que abandonou o
projeto no meio do caminho (o roteiro já estava pronto) diante das sérias
dificuldades financeiras do estúdio – segundo a revista Financial Time a MGM possui uma dívida atual de 3,7 bilhões de
dólares e grande parte dos seus lucros são atualmente drenados para o pagamento
dos juros – sobre isso clique aqui. As especulações
sobre o motivo da desistência de Aronofsky foram muitas: resistências fazer um
filme em 3D, recusa da MGM em pagar alto salário a um consagrado diretor e
rejeição do estúdio pelo roteiro apresentado por Aronofsky.
O fato é que José Padilha acabou trabalhando com o roteiro do estreante
Joshua Zetuner e como protagonista escolheu o sueco Joel Kinnaman. As locações
foram feitas fora dos EUA, no Canadá – as más línguas diriam que todas essas
alternativas mais em conta teriam sido escolhas naturais de um estúdio
pendurado sobre um abismo financeiro.
Em épocas de vacas magérrimas, o estúdio MGM não quis arriscar-se a
fazer um remake tão visceral quanto o
original Robocop de 1987. E a estreia
de José Padilha em Hollywood não foi um almoço grátis: o roteiro do remake parece querer agradar ao lobby da indústria de armamentos
militares, bastante ativo em Hollywood e sempre sintonizado com a política
externa dos EUA – quem não se lembra da participação especial na entrega do
Oscar no ano passado da Primeira Dama Michelle Obama em um link ao vivo
diretamente da Casa Branca anunciando o Oscar de Melhor Filme para Argo, produção que fazia apologia a uma
imaginosa tática de libertação de reféns da embaixada norte-americanos presos
no Irã em 1979.
A aparente complexidade do roteiro com diversos coadjuvantes serve apenas para diluir os temas mais viscerais que a versão original destacava |
Ao contrário, o roteiro de RoboCop
2014 é ambíguo, indireto e até metalinguístico: todos os acontecimentos do
filme são comentados por um apresentador histérico e ultranacionalista de
direita de um programa sensacionalista (“The Novak Element”) em que abertamente
apoia o projeto da OmniCorp de uma América pacificada por robôs policiais. Bem
diferente do original, o remake é
construído através de um roteiro que cria um intricado painel de pontos de
vista com uma série de coadjuvantes: o cientista e as questões da ética na
ciência; a corrupção policial; o debate do poder e influência da mídia através
do âncora de TV reacionário e os profissionais do departamento de marketing da
OmniCorp (a questão da engenharia de opinião pública).
O filme abre com uma sequência da cidade de Teerã “pacificada” por um
exército robótico da OmniCorp – num futuro próximo os EUA já dominam o Irã (!),
uma evidente projeção da atual pauta da política externa norte-americana. “Tudo
isso sem arriscar vidas americanas!”, exclama o âncora que defende também a
aplicação de drones e robôs nas cidades violentas dos EUA. E com uma vantagem:
máquinas não são corrompidas como os seres humanos.
Um senador com o argumento humanista de que máquinas não podem puxar um
gatilho e decidir sobre a vida e a morte porque não têm sentimentos ou juízo
moral, bloqueia no Congresso todas as tentativas da OmniCorp de expandir seus
negócios no mercado norte-americano.
E aí surge a grande chance para os negócios corporativos: o honesto policial
Alex Murphy da polícia de Detroit é vítima de um atentado de um cartel de
drogas corruptor de policiais. Uma explosão o deixa com apenas 20% do corpo que
será completado pela biotecnologia ciborgue em sofisticados laboratórios em uma
sucursal na China. Ele será a peça de marketing perfeita: a alma humana dentro
de uma máquina, o personagem ideal para que a opinião pública aceite a nova paz
social mantida por ciborgues da OminiCorp.
Mas o que deveria ser uma aliado, torna-se um conflito: os sentimentos
humanos de Alex Murphy diminuem a resposta e performance do novo ciborgue,
comparado com os RocoCops que rodam softwares 100% digitais. Sentimentos como
compaixão e medo reduzem o desempenho em momentos de ação. Solução: dopar a
consciência e emoções do policial até transformá-lo em zumbi comandado por um software.
Ambiguidades e clichês
Se fosse na versão original de
Verhoeven, esse conflito seria o momento para expor de forma direta a ganância
corporativa e os danos coletivos de um projeto de privatização da segurança
pública. Ao contrário, RoboCop de
José Padilha em primeiro lugar dilui esse núcleo temático no drama familiar de
Alex Murphy: o filho não quer ir mais para a escola e a esposa luta contra a
corporação apenas para trazer seu marido de volta para casa – ou o que restou
dele.
Clichê hollywoodiano: esposa enfrenta a corporaçãopara reaver o marido e salvar sua família |
Mas o pior é a ambiguidade dos múltiplos pontos de vista representados
pelos diversos coadjuvantes do filme: o cientista (Gary Oldman), o apresentador
de TV histérico (Samuel Jackson), o CEO da OmniCorp (Michael Keaton), a oficial
de polícia (Marianne Jean-Baptiste) e o senador Hubert Dreyfuss (Zach Grenier).
Todos os pontos de vista parecem encontrar suas justificativas e motivos,
anulando qualquer juízo do espectador. A impressão é que estamos diante de uma
narrativa complexa e profunda, mas tudo é mera diluição.
Efeitos em CGI como vídeo games
O mais sério é o caso do apresentador de TV Pat Novak. Se o pesquisador
em mídia o francês Regis Debray estiver certo, toda imagem é afirmativa: é
impossível criticar uma realidade através de uma imagem midiática que mostre
essa mesma realidade – leia DEBRAY, Regis. Curso
de Midiologia Geral, Vozes, 1993.
O mais alto investimento do filme RoboCop
foram nos efeitos em CGI envolventes e sedutores (bem diferentes dos efeitos stop motion da versão original) onde, por exemplo, acompanhamos a interface
da mente de Alex Murphy e as decisões que ele tem que tomar em frações de
segundo. Somos rendidos aos argumentos de Novak e da OmniCorp porque parece que
nos divertimos muito mais com o Alex Murphy sem sentimentos humanos e sob o
comando do software. Tudo porque os pontos altos do filme não são as ironias e
a violência em humor negro (como na versão original), mas a tecnologia dos
efeitos especiais em CGI.
Dessa maneira RoboCop, assim como o discurso militar norte-americano das
guerras “cirúrgicas”, transforma-se em um vídeo
game que suspende qualquer crítica social ou política possível, críticas
que foram viscerais na versão original.
A interface de RoboCop: altos investimentos em efeitos em CGI também dilui o roteiro em sequências video game |
Diante dos efeitos especiais em CGI e sequências vídeo game de performance e alta eficiência, a crítica humanista do
senador Hubert Dreyfuss falando na superioridade ética e moral do homem sobre a
máquina transforma-se em verborragia. Como Regis Debray falava, o poder das
imagens é o fato delas serem em si mesmas afirmativas, transformando qualquer
discurso crítico contra elas em mero ruído ou dessincronia.
Filme RoboCop é engenharia de opinião pública?
O mais irônico do filme RoboCop
de José Padilha é que, ao focar as jogadas de engenharia de opinião pública do
departamento de Marketing da OmniCorp com a criação do “produto” Alex Murphy
vendido como o herói da nova América de paz e segurança, estranhamente a
narrativa parece fazer uma inesperada metalinguagem.
Ao contrário da visão criticamente sombria de Verhoeven em 1987, o RoboCop de José Padilha é anódina, sem
posicionamento ou profundidade, preferindo expor de forma aparentemente
democrática todos os pontos de vista de um debate. Mas sabemos que isso é uma
manjada tática de engenharia de opinião pública já denunciada em filmes como Obrigado Por Fumar (2005): tanto para o
lobby do tabaco como para o das armas, não importa convencer pessoas. Eles
sabem que as opiniões já estão formadas e qualquer informação, seja para o lado
contra ou a favor, é mera informação aditiva.
O que interessa é que o tema esteja sempre em pauta na mídia como
polêmica, discussão aparentemente livre e democrática. Uma verdadeira cortina
de fumaça atrás da qual são tomadas as verdadeiras decisões longe da opinião
pública.
Dessa maneira, como uma espécie de ato falho metalinguístico, RoboCop estaria falando de si mesmo, do
seu verdadeiro papel em uma real engenharia de opinião pública e de um suspeito
apoio daqueles que o filme pretensamente parece querer criticar. Apoio que poderia
ser muito bem vindo para um estúdio como a MGM à beira da falência.
Ficha Técnica |
Título: RoboCop
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Diretor: José Padilha
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Roteiro: Joshua Zetumer
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Elenco: Joel Kinnaman, Gary Oldman, Michael
Keaton, Samuel Jackson, Abbie Cornish
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Produção: Metro Goldwin Mayer (MGM), Columbia Pictures
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Distribuição: Columbia Pictures
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Ano: 2014
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País: EUA
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