terça-feira, fevereiro 25, 2014

Não existe almoço grátis para o remake "RoboCop"

“Não existe almoço grátis”, diz uma frase popular americana que sintetiza bem o espírito pragmático daquele país. E José Padilha, diretor brasileiro de Tropa de Elite (2008), deve ter comprovado isso ao ser convidado pelos estúdios da MGM para dirigir o remake do clássico de ficção científica “RoboCop” dirigido pelo holandês Paul Verhoeven em 1987. Atravessando séria crise financeira, o estúdio não quis se arriscar em fazer uma refilmagem com o mesmo tom crítico visceral da versão original: os temas da ganância corporativa, do desmanche e da privatização da segurança pública estão diluídos em um roteiro onde os vários coadjuvantes se equivalem em meras opiniões ou pontos de vista. Mais ainda, o filme parece apresentar um estranho ato falho: ao colocar o papel da mídia como o principal instrumento de manipulação corporativa, sugere que o próprio filme estaria mostrando que o seu herói RoboCop poderia ser o instrumento de um lobby bastante atuante em Hollywood, o da indústria de armas.

Na verdade o filme seria dirigido por Darren Aronofsky ("Cisne Negro" e "Pi"), que abandonou o projeto no meio do caminho (o roteiro já estava pronto) diante das sérias dificuldades financeiras do estúdio – segundo a revista Financial Time a MGM possui uma dívida atual de 3,7 bilhões de dólares e grande parte dos seus lucros são atualmente drenados para o pagamento dos juros – sobre isso clique aqui. As especulações sobre o motivo da desistência de Aronofsky foram muitas: resistências fazer um filme em 3D, recusa da MGM em pagar alto salário a um consagrado diretor e rejeição do estúdio pelo roteiro apresentado por Aronofsky.

O fato é que José Padilha acabou trabalhando com o roteiro do estreante Joshua Zetuner e como protagonista escolheu o sueco Joel Kinnaman. As locações foram feitas fora dos EUA, no Canadá – as más línguas diriam que todas essas alternativas mais em conta teriam sido escolhas naturais de um estúdio pendurado sobre um abismo financeiro.

Em épocas de vacas magérrimas, o estúdio MGM não quis arriscar-se a fazer um remake tão visceral quanto o original Robocop de 1987. E a estreia de José Padilha em Hollywood não foi um almoço grátis: o roteiro do remake parece querer agradar ao lobby da indústria de armamentos militares, bastante ativo em Hollywood e sempre sintonizado com a política externa dos EUA – quem não se lembra da participação especial na entrega do Oscar no ano passado da Primeira Dama Michelle Obama em um link ao vivo diretamente da Casa Branca anunciando o Oscar de Melhor Filme para Argo, produção que fazia apologia a uma imaginosa tática de libertação de reféns da embaixada norte-americanos presos no Irã em 1979.

A aparente complexidade do roteiro com diversos
coadjuvantes serve apenas para diluir os
temas mais viscerais que
a versão original destacava
Em 1987 Verhoeven construiu um cenário cínico e direto (é antológica a sequência quando um robô protótipo metralha por mau funcionamento um advogado durante uma reunião de executivos e ninguém dá bola e o encontro segue normalmente) de uma Detroit onde o Departamento de Polícia era privatizado pela empresa OCP criando um sistema corrupto envolvendo um cartel de drogas. A indiferença yuppie e a ganância corporativa, o desmanche do poder público, a precarização do trabalho policial e os consequentes conflitos trabalhistas (policiais resistem fazendo greve) e a utopia da paz social pela força contados sob a forma de uma comédia sangrenta em estética de filme B.

Ao contrário, o roteiro de RoboCop 2014 é ambíguo, indireto e até metalinguístico: todos os acontecimentos do filme são comentados por um apresentador histérico e ultranacionalista de direita de um programa sensacionalista (“The Novak Element”) em que abertamente apoia o projeto da OmniCorp de uma América pacificada por robôs policiais. Bem diferente do original, o remake é construído através de um roteiro que cria um intricado painel de pontos de vista com uma série de coadjuvantes: o cientista e as questões da ética na ciência; a corrupção policial; o debate do poder e influência da mídia através do âncora de TV reacionário e os profissionais do departamento de marketing da OmniCorp (a questão da engenharia de opinião pública).

O filme abre com uma sequência da cidade de Teerã “pacificada” por um exército robótico da OmniCorp – num futuro próximo os EUA já dominam o Irã (!), uma evidente projeção da atual pauta da política externa norte-americana. “Tudo isso sem arriscar vidas americanas!”, exclama o âncora que defende também a aplicação de drones e robôs nas cidades violentas dos EUA. E com uma vantagem: máquinas não são corrompidas como os seres humanos.

Um senador com o argumento humanista de que máquinas não podem puxar um gatilho e decidir sobre a vida e a morte porque não têm sentimentos ou juízo moral, bloqueia no Congresso todas as tentativas da OmniCorp de expandir seus negócios no mercado norte-americano.

E aí surge a grande chance para os negócios corporativos: o honesto policial Alex Murphy da polícia de Detroit é vítima de um atentado de um cartel de drogas corruptor de policiais. Uma explosão o deixa com apenas 20% do corpo que será completado pela biotecnologia ciborgue em sofisticados laboratórios em uma sucursal na China. Ele será a peça de marketing perfeita: a alma humana dentro de uma máquina, o personagem ideal para que a opinião pública aceite a nova paz social mantida por ciborgues da OminiCorp.

Mas o que deveria ser uma aliado, torna-se um conflito: os sentimentos humanos de Alex Murphy diminuem a resposta e performance do novo ciborgue, comparado com os RocoCops que rodam softwares 100% digitais. Sentimentos como compaixão e medo reduzem o desempenho em momentos de ação. Solução: dopar a consciência e emoções do policial até transformá-lo em zumbi comandado por um software.

Ambiguidades e clichês


 Se fosse na versão original de Verhoeven, esse conflito seria o momento para expor de forma direta a ganância corporativa e os danos coletivos de um projeto de privatização da segurança pública. Ao contrário, RoboCop de José Padilha em primeiro lugar dilui esse núcleo temático no drama familiar de Alex Murphy: o filho não quer ir mais para a escola e a esposa luta contra a corporação apenas para trazer seu marido de volta para casa – ou o que restou dele.

Clichê hollywoodiano: esposa enfrenta a
corporaçãopara reaver o marido e
salvar sua família
Típico clichê hollywoodiano onde o contexto político é diluído em um drama onde uma família ou um casal de amantes luta para, desculpe o trocadilho, reunir os pedaços – clichê comum em thrillers e filmes-catástrofe como Guerra dos Mundos ou 2012 onde, diante do apocalipse, dramas familiares tentam ser resolvidos.

Mas o pior é a ambiguidade dos múltiplos pontos de vista representados pelos diversos coadjuvantes do filme: o cientista (Gary Oldman), o apresentador de TV histérico (Samuel Jackson), o CEO da OmniCorp (Michael Keaton), a oficial de polícia (Marianne Jean-Baptiste) e o senador Hubert Dreyfuss (Zach Grenier). Todos os pontos de vista parecem encontrar suas justificativas e motivos, anulando qualquer juízo do espectador. A impressão é que estamos diante de uma narrativa complexa e profunda, mas tudo é mera diluição.

Efeitos em CGI como vídeo games


O mais sério é o caso do apresentador de TV Pat Novak. Se o pesquisador em mídia o francês Regis Debray estiver certo, toda imagem é afirmativa: é impossível criticar uma realidade através de uma imagem midiática que mostre essa mesma realidade – leia DEBRAY, Regis. Curso de Midiologia Geral, Vozes, 1993.

O mais alto investimento do filme RoboCop foram nos efeitos em CGI envolventes e sedutores (bem diferentes dos efeitos stop motion da versão original)  onde, por exemplo, acompanhamos a interface da mente de Alex Murphy e as decisões que ele tem que tomar em frações de segundo. Somos rendidos aos argumentos de Novak e da OmniCorp porque parece que nos divertimos muito mais com o Alex Murphy sem sentimentos humanos e sob o comando do software. Tudo porque os pontos altos do filme não são as ironias e a violência em humor negro (como na versão original), mas a tecnologia dos efeitos especiais em CGI.

Dessa maneira RoboCop, assim como o discurso militar norte-americano das guerras “cirúrgicas”, transforma-se em um vídeo game que suspende qualquer crítica social ou política possível, críticas que foram viscerais na versão original.

A interface de RoboCop: altos investimentos
em efeitos em CGI também dilui o roteiro em
sequências video game
Em tempos de denúncias de Edward Snowden e espionagem mundial da NSA, o filme até sugere uma crítica que era inexistente na versão original: RoboCop pode se conectar não só ao banco de dados da polícia como com todas as câmeras de vigilância da cidade, Internet e meios de comunicação, tendo uma visão de toda a cidade em tempo real. Porém, entra em ação a ambiguidade do roteiro que suspende a crítica em múltiplos pontos de vista: Alex Murphy consegue em segundos prender no meio da multidão um condenado foragido há seis anos – o preço da segurança é a perda da privacidade e liberdade: palmas para Pat Novak e o novo mundo da OmniCorp.

Diante dos efeitos especiais em CGI e sequências vídeo game de performance e alta eficiência, a crítica humanista do senador Hubert Dreyfuss falando na superioridade ética e moral do homem sobre a máquina transforma-se em verborragia. Como Regis Debray falava, o poder das imagens é o fato delas serem em si mesmas afirmativas, transformando qualquer discurso crítico contra elas em mero ruído ou dessincronia.

Filme RoboCop é engenharia de opinião pública?


 O mais irônico do filme RoboCop de José Padilha é que, ao focar as jogadas de engenharia de opinião pública do departamento de Marketing da OmniCorp com a criação do “produto” Alex Murphy vendido como o herói da nova América de paz e segurança, estranhamente a narrativa parece fazer uma inesperada metalinguagem.

Ao contrário da visão criticamente sombria de Verhoeven em 1987, o RoboCop de José Padilha é anódina, sem posicionamento ou profundidade, preferindo expor de forma aparentemente democrática todos os pontos de vista de um debate. Mas sabemos que isso é uma manjada tática de engenharia de opinião pública já denunciada em filmes como Obrigado Por Fumar (2005): tanto para o lobby do tabaco como para o das armas, não importa convencer pessoas. Eles sabem que as opiniões já estão formadas e qualquer informação, seja para o lado contra ou a favor, é mera informação aditiva.

O que interessa é que o tema esteja sempre em pauta na mídia como polêmica, discussão aparentemente livre e democrática. Uma verdadeira cortina de fumaça atrás da qual são tomadas as verdadeiras decisões longe da opinião pública.

Dessa maneira, como uma espécie de ato falho metalinguístico, RoboCop estaria falando de si mesmo, do seu verdadeiro papel em uma real engenharia de opinião pública e de um suspeito apoio daqueles que o filme pretensamente parece querer criticar. Apoio que poderia ser muito bem vindo para um estúdio como a MGM à beira da falência.

Ficha Técnica


Título: RoboCop
Diretor: José Padilha
Roteiro: Joshua Zetumer
Elenco: Joel Kinnaman, Gary Oldman, Michael Keaton, Samuel Jackson, Abbie Cornish
Produção: Metro Goldwin Mayer (MGM), Columbia Pictures
Distribuição: Columbia Pictures
Ano: 2014
País: EUA


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