A Volkswagen anunciou o encerramento da
produção da Kombi no Brasil, o último país que ainda produzia esse veículo.
Junto com o fusca, a Kombi transformou-se em um arquétipo moderno e o significante cultural
de uma constelação de conceitos que vão da esfera política às noções
espirituais de jornada e liberdade. A presença da Kombi no cinema vai refletir
esse imaginário irônico onde, apesar de nascido de um projeto nacionalista de
Hitler e depois sintonizado com o lazer e o consumo individualista de
pós-guerra, transformou-se em ícone da contracultura e representante de um
estilo de vida antimaterialista e solidário. Abaixo, uma lista de dez filmes
onde a Kombi é um personagem cinematográfico com seus múltiplos simbolismos.
Ao lado do fusca, foi o veículo
que fez parte do imaginário de uma geração. A Kombi (abreviação da expressão
alemã “kombinationsfahrzeug” – traduzindo, “van cargo-passageiro”), nos EUA
chamada de VW Bus, acabou tornando-se
mais do que um veículo de transporte: deu colorido e ressonância à cultura
moderna, transformando-se em um arquétipo cultural, significante de uma
constelação de conceitos que vai da esfera política (contracultura e a ética
anticonsumista) à espiritual (viagem e liberdade).
Desde o
início a Kombi esteve intimamente ligada ao campo do imaginário. O veículo foi
um derivado do fusca desenhado por Ferdinand Porsche na década de 1930 e que se
encaixou na política nacionalista e populista de Hitler em produzir o “carro do
povo”. O “Transporter” ou “Type 2” surge em 1947, com design baseado em
caminhões onde a forma e a utilidade se sobrepunham ao conforto e luxo.
Do lazer de classe média à contracultura
A Kombi
entra nos EUA visto como um veículo dotado de estranho design: uma espécie de
caixa arredondada (contrastando com os enormes carros potentes e luxuosos de
uma América consumista e vitoriosa) e com um motor simples refrigerado a ar.
Ideologicamente, a Kombi atendeu a uma atmosfera coletiva de pós-guerra onde os
cidadãos afastavam-se da política e da esfera pública para se concentrar na
esfera privada e individualista do consumo e do lazer.
Como
veículo barato e de fácil manutenção (qualquer problema mecânico era resolvido
“no tranco”) tornou-se o primeiro utilitário para a nova classe média viajar
para o campo, praia ou montanha. A publicidade dos anos 1950 destacava tudo
isso, mas, principalmente, a sua atitude e distinção em relação aos outros
carros. Ficou famosa a foto de um imenso estacionamento de shopping repleto de
carros parecidos com a Kombi destacando-se imponente entre eles - veja foto ao lado.
O
veículo logo chamou a atenção de jovens pertencentes a uma cultura boêmia e
nômade dos anos 1950 dos círculos de Nova York e São Francisco: os beatniks – ou “geração beat” cujo
símbolo máximo foi o escritor Jack Kerouac e seu livro “On The Road” que subscreve
um estilo de vida antimaterialista e solidário.
Eles já haviam subvertidos dois
elementos do estilo de vida da classe média: a t-shirt e a calça “rancheiro”. A primeira, de underware os jovens começam a usar como roupa social; e a segunda
de roupa símbolo de status por ser usada por “rancheiros” (proprietários de
casas de campo ou pequenas fazendas) passa a ser usada como símbolo de rebeldia
ao ser usada sem vinco e propositalmente surrada e desbotada.
A Kombi torna-se também símbolo dessa
rebeldia ironicamente subvertendo os próprios conceitos publicitários: o
veículo barato, com atitude e simples. A Kombi parecia recriar o próprio
conceito de propriedade, uma espécie de “do it yourself”, “faça você mesmo” que
os punks e a geração X posterior retomariam mais tarde: qualquer um podia
consertar um motor VW. E a procura de peças em qualquer loja reforçava esse
espírito comunitário que se contrapunha à ética individualista das prestadoras
de serviço das companhias de seguro e de auxílio mecânico – veja BURNETT,
David. “From Hitler to
Hippies: The Volkswagen Bus in America”, Thesis Master of Arts, University of
Texas at Austin, 2002 – clique aqui
e leia o texto.
Kombi: uma roadtrip espiritual
“On The
Road” de Kerouac elegia a estrada como significante de uma busca espiritual.
Nos anos 1960, músicas como “Magic Bus” do The Who e filmes como “Magical
Mistery Tour” com The Beatles e “Easy Rider” com Peter Fonda e Denis Hooper
ressoam na cultura pop a roadtrip como uma jornada espiritual de transformação
espiritual. Seja em um ônibus (transporte solidário e coletivo) ou motocicleta
(sempre em grupos), a viagem será tanto geográfica como mental por meio das drogas
lisérgicas experimentadas no caminho.
E qual
o companheiro mais confiável que dá um sentido de atitude e independência? A
Kombi, que se transforma no ícone mais acabado da contracultura seja beatnik ou
hippie.
Nessa
lista de 10 filmes, percebemos três estratégias da indústria do entretenimento
para estereotipar, neutralizar ou simplesmente expiar esse arquétipo de
liberdade em que se transformou esse fascinante veículo: como um clichê
nostálgico de uma época que morreu, como veículo de vilões estrangeiros
hollywoodianos ou como insincera e oportunista estratégia de marketing
corporativo da Volkswagen em, por exemplo, reeditar os velhos designs como o New Beetle ou o Microbus.
A Kombi no cinema em dez filmes:
1. Kombi Nation (2003)
Filme neozelandês independente em estilo reality show onde três jovens saem em
uma viagem em uma Kombi através da Europa com uma equipe de TV, como uma
espécie de rito de passagem. Ecos distantes da mística conexão do passado entre
a Kombi e a viagem como jornada espiritual. Aqui, reduzida a um “American Pie”
motorizado.
2. The Bus Movie (2012)
Um precioso documentário de Damon Ristau sobre a história do
“VW Bus” e a sua ressonância na cultura pop, Publicidade, rock e literatura. Ristau
explora a história do VW, a partir de volta ao seu local de nascimento no
pós-Segunda Guerra Mundial na Alemanha, levando o espectador a um passeio ao coração
de Woodstock e do movimento contracultural. Vai à estrada e entrevista os
proprietários do VW Bus de todo o mundo. Ristau pinta uma imagem mais clara de
por que a "hippie van" tornou-se o símbolo internacional de
liberdade, amor, aventura e amizade.
3. Carros (2006)
Nessa animação da Pixar/Disney temos o clássico estereótipo
através de uma Kombi Hippie chamada Fillmore – referência à mítica “The
Fillmore Auditorium” em São Francisco onde abrigava os shows das maiores bandas
de rock dos anos 1960. Fillmore pertence a um grupo de outros antigos carros
que moram em uma cidadezinha perdida no tempo na Rota 66 - referência à mítica
estrada da geração beat. Vivem das reminiscências das glórias do passado. Olhar
condescendente e piedoso da indústria cultural corporativa vitoriosa para os
derrotados. Mas eles têm bons valores a ensinar ao protagonista Relâmpago
McQueen... que o importante é competir e não vencer... ironicamente, uma
mensagem em um vitorioso blockbuster!
4. De Volta Para o Futuro (1985)
Ignorando a mensagem de paz e amor que as Kombis hippie
deixaram, terroristas libaneses usam o veículo em uma sequência onde armados
com pesadas metralhadoras tentam roubar de Doc e Marty o precioso plutônio que
necessitam para fabricarem armas de destruição em massa. Aqui Hollywood põe a
Kombi nas mãos de RAVs (Russos, Árabes e Vilões em geral). Claro, porque a
Kombi também é um carro estrangeiro... E não devemos esquecer que o filme foi
realizado no meio da era conservadora Reagan onde todo simbolismo “democrata”
deveria ser expiado.
5. Ronin (1998)
Uma Kombi verde modelo militarizado está nas mãos de
gangsters russos. Como a maioria dos filmes de ação norte-americanos, um carro
estrangeiro só pode estar nas mãos dos RAVs.
6. Pequena Miss Sunshine (2006)
Claro que não podíamos esquecer da Kombi amarela desse filme
onde uma família de losers
desajeitados e pouco adaptados ao estilo de vida norte-americano cruzam os EUA
para levar sua pequena filha às finais de um concurso de beleza. O mérito do
filme é desenvolver dois simbolismos associados à Kombi: a roadtrip espiritual e o forte princípio de independência do veículo
– como sempre ele quebra, para em seguida toda a família empurrá-lo e o motor
pegar “no tranco”. A associação da simplicidade mecânica da Kombi com autonomia
e liberdade.
7. I Am Kombi (2012)
Um curioso contraponto francês da visão cinematográfica da
Kombi vista pelos olhos da diretora Claudia Marschal. Uma perdida e confusa
Kombi decide fazer uma viagem ao redor do mundo em busca de sua verdadeira
identidade. Visto através dos olhos de vários proprietários, a Kombi se depara
com alguns fatos cativantes que ilustram revelações surpreendentes sobre sua
reputação no passado e presente. Através de uma onipresente narração em of, somos levados a uma aventura
informativa que é ao mesmo tempo divertida e misteriosa.
i am Kombi - teaser V0 from claudia marschal on Vimeo.
8. Lost (TV série – 2004-2010)
A misteriosa Iniciativa Dharma, projeto científico de
pesquisa com objetivos obscuros na cultuada série de TV Lost, era formada
claramente por geeks hippies que
desenvolveram algum experimento relacionado à manipulação do tempo/espaço. Qual
o veículo de transporte dessa Iniciativa? Uma Kombi. Veículo perfeito para um
misterioso experimento que mistura ciência com misticismo, a começar pelo nome
da instituição.
9. VW Bus Tour: Americana Bohemia (2009)
Um rockmentary e mais um exemplar de roadtrip. A redescoberta da América em uma Kombi. Um jovem
recém-formado decide se mudar de Ohio para a Califórnia viajando de bicicleta.
No meio do caminho publica um livro independente sobre sua aventura, lança um
DVD com a trilha musical da viagem e continua a jornada em uma Kombi vermelha
1970. Um filme autorreferencial que tenta buscar a América profunda em uma
mistura de estilos grunge e hippie.
10. Bran Nue Dae (2009)
Musical que conta a história de um jovem no final dos anos
1960 que tenta manter-se moralmente puro no Outback australiano em meio à
música selvagem e mulheres à solta. Mas perde-se nos bares locais e acaba sendo
colocado à força pela mãe em uma conservadora escola católica, da qual fugirá e encontrará hippies que se oferecem para levá-lo numa Kombi através das lindas paisagens
desérticas. Mais uma roadtrip que
associa a Kombi à jornada de liberdade e amadurecimeto espiritual.