domingo, setembro 29, 2013

De Hitler aos Hippies: a Kombi no cinema em dez filmes


A Volkswagen anunciou o encerramento da produção da Kombi no Brasil, o último país que ainda produzia esse veículo. Junto com o fusca, a Kombi transformou-se em um arquétipo moderno e o significante cultural de uma constelação de conceitos que vão da esfera política às noções espirituais de jornada e liberdade. A presença da Kombi no cinema vai refletir esse imaginário irônico onde, apesar de nascido de um projeto nacionalista de Hitler e depois sintonizado com o lazer e o consumo individualista de pós-guerra, transformou-se em ícone da contracultura e representante de um estilo de vida antimaterialista e solidário. Abaixo, uma lista de dez filmes onde a Kombi é um personagem cinematográfico com seus múltiplos simbolismos.

Ao lado do fusca, foi o veículo que fez parte do imaginário de uma geração. A Kombi (abreviação da expressão alemã “kombinationsfahrzeug” – traduzindo, “van cargo-passageiro”), nos EUA chamada de VW Bus, acabou tornando-se mais do que um veículo de transporte: deu colorido e ressonância à cultura moderna, transformando-se em um arquétipo cultural, significante de uma constelação de conceitos que vai da esfera política (contracultura e a ética anticonsumista) à espiritual (viagem e liberdade).

                O Brasil era o único país que ainda produzia esse veículo. Mas, segundo a Volkswagen, a produção será encerrada dia 31 de dezembro desse ano com a produção de uma última série limitada e comemorativa unindo todas as características de design das várias versões da Kombi nesses 63 anos.

                Desde o início a Kombi esteve intimamente ligada ao campo do imaginário. O veículo foi um derivado do fusca desenhado por Ferdinand Porsche na década de 1930 e que se encaixou na política nacionalista e populista de Hitler em produzir o “carro do povo”. O “Transporter” ou “Type 2” surge em 1947, com design baseado em caminhões onde a forma e a utilidade se sobrepunham ao conforto e luxo.

Do lazer de classe média à contracultura


                A Kombi entra nos EUA visto como um veículo dotado de estranho design: uma espécie de caixa arredondada (contrastando com os enormes carros potentes e luxuosos de uma América consumista e vitoriosa) e com um motor simples refrigerado a ar. Ideologicamente, a Kombi atendeu a uma atmosfera coletiva de pós-guerra onde os cidadãos afastavam-se da política e da esfera pública para se concentrar na esfera privada e individualista do consumo e do lazer.

                Como veículo barato e de fácil manutenção (qualquer problema mecânico era resolvido “no tranco”) tornou-se o primeiro utilitário para a nova classe média viajar para o campo, praia ou montanha. A publicidade dos anos 1950 destacava tudo isso, mas, principalmente, a sua atitude e distinção em relação aos outros carros. Ficou famosa a foto de um imenso estacionamento de shopping repleto de carros parecidos com a Kombi destacando-se imponente entre eles - veja foto ao lado.

                O veículo logo chamou a atenção de jovens pertencentes a uma cultura boêmia e nômade dos anos 1950 dos círculos de Nova York e São Francisco: os beatniks – ou “geração beat” cujo símbolo máximo foi o escritor Jack Kerouac e seu livro “On The Road” que subscreve um estilo de vida antimaterialista e solidário.

Eles já haviam subvertidos dois elementos do estilo de vida da classe média: a t-shirt e a calça “rancheiro”. A primeira, de underware os jovens começam a usar como roupa social; e a segunda de roupa símbolo de status por ser usada por “rancheiros” (proprietários de casas de campo ou pequenas fazendas) passa a ser usada como símbolo de rebeldia ao ser usada sem vinco e propositalmente surrada e desbotada.

A Kombi torna-se também símbolo dessa rebeldia ironicamente subvertendo os próprios conceitos publicitários: o veículo barato, com atitude e simples. A Kombi parecia recriar o próprio conceito de propriedade, uma espécie de “do it yourself”, “faça você mesmo” que os punks e a geração X posterior retomariam mais tarde: qualquer um podia consertar um motor VW. E a procura de peças em qualquer loja reforçava esse espírito comunitário que se contrapunha à ética individualista das prestadoras de serviço das companhias de seguro e de auxílio mecânico – veja BURNETT, David. “From Hitler to Hippies: The Volkswagen Bus in America”, Thesis Master of Arts, University of Texas at Austin, 2002 – clique aqui e leia o texto.

Kombi: uma roadtrip espiritual


                “On The Road” de Kerouac elegia a estrada como significante de uma busca espiritual. Nos anos 1960, músicas como “Magic Bus” do The Who e filmes como “Magical Mistery Tour” com The Beatles e “Easy Rider” com Peter Fonda e Denis Hooper ressoam na cultura pop a roadtrip como uma jornada espiritual de transformação espiritual. Seja em um ônibus (transporte solidário e coletivo) ou motocicleta (sempre em grupos), a viagem será tanto geográfica como mental por meio das drogas lisérgicas experimentadas no caminho.

                E qual o companheiro mais confiável que dá um sentido de atitude e independência? A Kombi, que se transforma no ícone mais acabado da contracultura seja beatnik ou hippie.

                Nessa lista de 10 filmes, percebemos três estratégias da indústria do entretenimento para estereotipar, neutralizar ou simplesmente expiar esse arquétipo de liberdade em que se transformou esse fascinante veículo: como um clichê nostálgico de uma época que morreu, como veículo de vilões estrangeiros hollywoodianos ou como insincera e oportunista estratégia de marketing corporativo da Volkswagen em, por exemplo, reeditar os velhos designs como o New Beetle ou o Microbus.

A Kombi no cinema em dez filmes:


1. Kombi Nation (2003)

Filme neozelandês independente em estilo reality show onde três jovens saem em uma viagem em uma Kombi através da Europa com uma equipe de TV, como uma espécie de rito de passagem. Ecos distantes da mística conexão do passado entre a Kombi e a viagem como jornada espiritual. Aqui, reduzida a um “American Pie” motorizado.

2. The Bus Movie (2012)

Um precioso documentário de Damon Ristau sobre a história do “VW Bus” e a sua ressonância na cultura pop, Publicidade, rock e literatura. Ristau explora a história do VW, a partir de volta ao seu local de nascimento no pós-Segunda Guerra Mundial na Alemanha, levando o espectador a um passeio ao coração de Woodstock e do movimento contracultural. Vai à estrada e entrevista os proprietários do VW Bus de todo o mundo. Ristau pinta uma imagem mais clara de por que a "hippie van" tornou-se o símbolo internacional de liberdade, amor, aventura e amizade.

3. Carros (2006)

Nessa animação da Pixar/Disney temos o clássico estereótipo através de uma Kombi Hippie chamada Fillmore – referência à mítica “The Fillmore Auditorium” em São Francisco onde abrigava os shows das maiores bandas de rock dos anos 1960. Fillmore pertence a um grupo de outros antigos carros que moram em uma cidadezinha perdida no tempo na Rota 66 - referência à mítica estrada da geração beat. Vivem das reminiscências das glórias do passado. Olhar condescendente e piedoso da indústria cultural corporativa vitoriosa para os derrotados. Mas eles têm bons valores a ensinar ao protagonista Relâmpago McQueen... que o importante é competir e não vencer... ironicamente, uma mensagem em um vitorioso blockbuster!

4. De Volta Para o Futuro (1985)

Ignorando a mensagem de paz e amor que as Kombis hippie deixaram, terroristas libaneses usam o veículo em uma sequência onde armados com pesadas metralhadoras tentam roubar de Doc e Marty o precioso plutônio que necessitam para fabricarem armas de destruição em massa. Aqui Hollywood põe a Kombi nas mãos de RAVs (Russos, Árabes e Vilões em geral). Claro, porque a Kombi também é um carro estrangeiro... E não devemos esquecer que o filme foi realizado no meio da era conservadora Reagan onde todo simbolismo “democrata” deveria ser expiado.

5. Ronin (1998)

Uma Kombi verde modelo militarizado está nas mãos de gangsters russos. Como a maioria dos filmes de ação norte-americanos, um carro estrangeiro só pode estar nas mãos dos RAVs.

6. Pequena Miss Sunshine (2006)

Claro que não podíamos esquecer da Kombi amarela desse filme onde uma família de losers desajeitados e pouco adaptados ao estilo de vida norte-americano cruzam os EUA para levar sua pequena filha às finais de um concurso de beleza. O mérito do filme é desenvolver dois simbolismos associados à Kombi: a roadtrip espiritual e o forte princípio de independência do veículo – como sempre ele quebra, para em seguida toda a família empurrá-lo e o motor pegar “no tranco”. A associação da simplicidade mecânica da Kombi com autonomia e liberdade.

7. I Am Kombi (2012)

Um curioso contraponto francês da visão cinematográfica da Kombi vista pelos olhos da diretora Claudia Marschal. Uma perdida e confusa Kombi decide fazer uma viagem ao redor do mundo em busca de sua verdadeira identidade. Visto através dos olhos de vários proprietários, a Kombi se depara com alguns fatos cativantes que ilustram revelações surpreendentes sobre sua reputação no passado e presente. Através de uma onipresente narração em of, somos levados a uma aventura informativa que é ao mesmo tempo divertida e misteriosa.


i am Kombi - teaser V0 from claudia marschal on Vimeo.

8. Lost (TV série – 2004-2010)

A misteriosa Iniciativa Dharma, projeto científico de pesquisa com objetivos obscuros na cultuada série de TV Lost, era formada claramente por geeks hippies que desenvolveram algum experimento relacionado à manipulação do tempo/espaço. Qual o veículo de transporte dessa Iniciativa? Uma Kombi. Veículo perfeito para um misterioso experimento que mistura ciência com misticismo, a começar pelo nome da instituição.

9. VW Bus Tour: Americana Bohemia (2009)

Um rockmentary e mais um exemplar de roadtrip. A redescoberta da América em uma Kombi. Um jovem recém-formado decide se mudar de Ohio para a Califórnia viajando de bicicleta. No meio do caminho publica um livro independente sobre sua aventura, lança um DVD com a trilha musical da viagem e continua a jornada em uma Kombi vermelha 1970. Um filme autorreferencial que tenta buscar a América profunda em uma mistura de estilos grunge e hippie.

10. Bran Nue Dae (2009)

Musical que conta a história de um jovem no final dos anos 1960 que tenta manter-se moralmente puro no Outback australiano em meio à música selvagem e mulheres à solta. Mas perde-se nos bares locais e acaba sendo colocado à força pela mãe em uma conservadora escola católica, da qual fugirá e encontrará hippies que se oferecem para levá-lo numa Kombi através das lindas paisagens desérticas. Mais uma roadtrip que associa a Kombi à jornada de liberdade e amadurecimeto espiritual.

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