Ensinar lições de moral e cidadania através de simulações. Mais
precisamente através de “pegadinhas”, dessa vez “do bem” e na TV. Cuidado! Sob
o pretexto de nobres propósitos programas como o “Fantástico” da Globo e “CQC”
da Band estão detonando mais uma “bomba semiótica”, dessa vez sob a forma do “infotenimento”
(informação + entretenimento), com situações do cotidiano simuladas para
flagrar contraventores da ordem, da moral e dos princípios de cidadania para
nos ensinar que o bem sempre compensa. Ambos os programas alinham-se à pauta
atual imposta pela mídia: a pauta da moralidade e do combate à corrupção, o
último papel de protagonismo que lhe resta no cenário político atual.
Vamos desmontar mais uma “bomba
semiótica”. Porém esta é de um tipo sofisticado e difícil de lidar
semioticamente, pois envolve um elemento “meta”: a simulação, e não
simplesmente uma simples manipulação ou encobrimento de fatos como
habitualmente estamos acostumados a ver em telejornais ou revistas impressas.
O “Fantástico” estreou
recentemente um quadro chamado “Vai Fazer o Quê?” no qual o repórter Ernesto
Paglia conduz uma série de “experiências” para descobrir como reagem as pessoas
diante de situações polêmicas como pit
boys que ofendem um mendigo e tentam expulsá-lo de uma praça pública ou uma
cuidadora que maltrata seu paciente idoso. O repórter privilegia mostrar
aqueles que atuaram corretamente, pede desculpas ao estresse que os atores
criaram na simulação, constrange os cidadãos menos valorosos que nada fizeram
com perguntas do tipo “você ficou ali olhando, mas não reagiu...” e discorre
como os espectadores devem agir em uma situação dessas.
O "jornalismo justiceiro" do CQC |
O quadro lembra muito um tipo de
“jornalismo justiceiro”. Mas quem leva essa ideia de fazer justiça com as
próprias mãos (ou câmeras) é o quadro do “CQC” “Olho Por Olho” onde Marco Luque
e Maurício Meirelles se vingam de todos aqueles que desrespeitam códigos de
trânsito, lei do consumidor, educação e cidadania: operadores de telemarketing,
valets ilegais, motoristas que estacionam em vagas para deficientes etc. Simulam-se
situações onde atores ou integrantes da produção expõem o contraventor no
intuito de dar uma lição que jamais será esquecida por ele. O título é
claramente inspirado na antiga e bíblica lei mosaica da vingança (“Olho por
olho, dente por dente”) como um ato divino, mas não legal, pelo menos para a
Justiça moderna. Estranho para um quadro que pretende dar lições de
cidadania...
Ambos os quadros (o primeiro
mais soft e o segundo mais agressivo)
encaixam-se perfeitamente na pauta atual imposta pela mídia à Política, ao
Governo e às manifestações nas ruas: a pauta da moralidade e do combate à
corrupção como a grande panaceia que, dizem, tiraria o País do suposto buraco
onde se encontra. Por isso essas “pegadinhas do bem” (para contrastar com
aquelas produzidas desde os anos 1990 pelo Gugu, João Kleber, Silvio Santos ou
Sérgio Mallandro) se transformam em verdadeiras “bombas metonímicas” onde,
através das suas explosões, reforçam cognitivamente essa pauta que, para a
mídia, parece ser a última que lhe resta para aparentar um papel de
protagonismo no atual cenário político.
Cidadania neurótica e cidadania esquizofrência
A febre
das chamadas “pegadinhas” na TV mundial pode ser considerada uma evolução das
chamadas “vídeo-cassetadas”: pequenos acidentes familiares e situações
inusitadas envolvendo pessoas desatentas e/ou desajeitadas capturadas por
câmeras caseiras. O princípio do prazer psíquico do espectador baseado em uma
dose de voyeurismo e sadismo não é uma novidade no cinema e audiovisual. Estava
presente de forma latente desde o primeiro cinema de Lumière e Meliès.
Mas as
pegadinhas e vídeo-cassetadas são na verdade herdeiras das gags das comédias slapsticks e
desenhos animados: o secreto prazer sádico retirado da cumplicidade entre a
narrativa e o espectador contra o protagonista – por exemplo, todos sabem que o
chão acabou em um abismo, menos o protagonista que continua andando no ar, até
se dar contado do que todos já sabem e cair. O nosso prazer sádico está em
saber que a vítima é o último a saber.
"Pegadinhas do mal": pelo menos era fiéis às suas origens nas gags dos desenhos animadose filmes slapsticks |
As “pegadinhas do mal” de João Kleber
e companhia pelo menos eram mais fiéis às origens do gênero do que os quadros
de “infotenimento” (o hibridismo entre informação e entretenimento) mostrados
pelos quadros do “Fantástico” e do “CQC”. Continua latente nas “pegadinhas do
bem” esse prazer sádico em saber que a vítima (o cidadão contraventor ou
indiferente à injustiça) são os últimos em saber que estão sendo filmados.
Enquanto o “Fantástico” racionaliza essa forma de prazer sublimando em lições
de cidadania, o “CQC” transmuta o puro prazer sádico em desejo de vingança por
uma boa causa.
Enquanto no “Fantástico” o
prazer sádico é envergonhado porque jogado para trás de camadas de discursos de
cidadania e virtude, no “CQC” sadismo, desejo de vingança e princípios de cidadania
são colocados no mesmo plano. Pensando de forma freudiana, o “Fantástico” nos
apresenta uma cidadania neurótica, enquanto o “CQC” constrói uma cidadania
esquizofrênica.
Produção de Notícias e Simulações
O Jornalismo é uma produção
cultural essencialmente simbólica: signos são editados e montados para criar
uma narrativa sobre o mundo, uma certa maneira de enquadramento chamado de
“notícia”. Do ponto de vista semiológico é um processo de recorte de uma
“narrativa sem fim” do real, para que tenha um sentido – o fato “político”, o
“econômico”, o “cultural” etc.
A questão é que na atualidade os
sistemas tornam-se cada vez mais complexos porque eles vão criando outros
sistemas que vão se sobrepondo até o ponto que eles não mais apenas “recortam”
ou “editam” o real, mas agora se auto-referenciam, fecham-se em si mesmos,
adquirem uma natureza “meta”: filtram o real a partir dos seus próprios termos,
como já analisamos em postagem anterior – veja links abaixo. Eles não mais
manipulam e dissimulam, mas agora simulam.
Como se fecham em si mesmos, o real não pode mais ser editado ou, se quer,
manipulado.
As constantes críticas e
desconfianças sobre a manipulação nas edições fizeram os telejornais e a
própria TV buscarem na atualidade novas estratégias narrativas que buscam a simulação
de realismo a partir de dispositivos que criam efeitos de realidade. Os antigos programas como “Aqui e Agora” do SBT
nos anos 1990 foi um dos precursores: carro de reportagem seguindo viaturas
policiais, câmeras trepidando, microfones deixados propositalmente abertos para
que ouçamos a respiração dramaticamente ofegante do repórter no meio do
tiroteio etc.
Programas reality shows, vídeo-cassetadas e “pegadinhas” foram a evolução
dessa necessidade televisiva em ser realista para se contrapor à perda de
credibilidade pelas críticas de manipulação. Os efeitos de realidade criam uma
sensação de “TV verdade” e, ao mesmo tempo, atiçam o prazer sádico-voyeurístico
do espectador: é a essência do “infotenimento”.
Os novos quadros do “Fantástico”
e do “CQC” são a confirmação de uma tendência que já estava latente nas câmeras
ocultas dos telejornais onde o repórter criava situações para induzir o
corrupto a confessar o esquema de propinas e tirar os maços de dinheiro dos
bolsos e maletas. Aqui, o telejornalismo deixa de ser um sistema semiológico
que representa a realidade sob o enquadramento da notícia: agora deve simular
ou induzir os fatos, produzir situações. Em outras palavras: a notícia tem que
ser criada. Agora o sistema é mais complexo: o problema não está mais na edição,
mas na própria fonte.
Existiria uma Simulação da Simulação?
Para a simulação ser realista
entram em ação os efeitos de realidade: imagens noturnas granuladas, enquadramentos
inclinados para criar o signo da tensão e, por último e não menos importante,
muita metalinguagem: Ernesto Paglia mostra os bastidores da produção da “pegadinha”
(contaminação do programa “Profissão Repórter” do Caco Barcelos?), a preparação
da caracterização e maquiagem dos atores, a apresentação dos recursos
tecnológicos envolvidos etc. É como se dissessem ao espectador: “nós
transmitimos, logo é verdade”.
Portanto, teríamos sobre o
sistema semiológico da representação simbólica da notícia, o sistema de
simulação da própria fonte da notícia por meio da produção de “pegadinhas”. Mas
ainda podemos imaginar a possibilidade de um terceiro sistema: a simulação da
própria simulação! Se Ernesto Paglia faz uma metalinguagem da produção da “pegadinha”
com o objetivo evidente de caracterizar uma espontaneidade da simulação (“criamos
a simulação, mas as reações das pessoas são espontâneas”), nada impede de as
próprias reações “espontâneas” sejam selecionadas em uma pós-produção,
direcionando o quadro através de um script pré-determinado.
Assim como no primeiro sistema
semiológico o repórter vai à rua com a pauta pré-estabelecida (quem deve ser entrevistado,
enquadramentos e hipóteses que obrigatoriamente devem ser confirmadas pela
captação das informações etc.), nesse terceiro sistema reações excessivamente
espontâneas dos participantes que saiam da curva esperada pelos editores seriam
cortadas na edição final.
A descoberta pelo espectador da
natureza editada seria fatal para a legitimidade jornalística da “pegadinha”.
Por isso, a metalinguagem que os homens de preto do “CQC” fazem sobre detalhes
de produção e as entrevistas que Ernesto Paglia faz com os próprios atores que
participaram da simulação para arrancar depoimentos sobre a “emoção” e “tensão”
da experiência dos papéis representados, dilui na consciência do espectador
leigo essa suspeita da existência desse terceiro sistema fatal.
Portanto, essa complexa bomba
semiótica funciona a partir de três sistemas semiológicos: (1) o sistema de
recorte e enquadramento da criação da notícia; (2) o sistema de simulação da
fonte da notícia – a “pegadinha”; (3) o sistema que simula a simulação, isto é,
simula a espontaneidade dos eventos que envolvem a “pegadinha” através de efeitos de realidade e metalinguagens - veja diagrama abaixo.
Na medida em que a atmosfera
política brasileira torna-se cada vez mais carregada, as “bombas semióticas”
têm demonstrado uma engenharia cada vez mais sofisticada. Quais as próximas
espécies de bombas que nos aguardam?
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