Filme precursor de um subgênero chamado “psicodrama alt. Sci-fi” (filmes
que usam argumentos sci-fi para, na verdade, discutir temas bem terrestres com
baixos orçamentos e nenhum efeito especial), “K-Pax - O Caminho da Luz” (K-Pax, 2001) foi injustamente
esquecido pela crítica e público. Um homem é internado em hospital psiquiátrico
afirmando ser um visitante de um planeta distante. Astrônomos e psiquiatras
tentam encaixá-lo em algum script racionalizante que tente explicar seus
conhecimentos, mas os paradoxos colocados pelo seu comportamento colocam em
xeque todos ao redor: será que uma vida inteira dedicada à ciência terá sido
para nada?
Um filme que acabou esquecido
pelos críticos e público, principalmente por ter sido lançado a pouco mais de
um mês depois dos atentados de 11 de setembro em Nova York. Talvez poucas
pessoas estivessem interessadas em discussões filosóficas em torno de um potencial
visitante de outro planeta que nos visita sob a forma humana, chamado Prot
(Kevin Spacey) e que se encontra preso em um hospital psiquiátrico em
Manhattan. Se ele é de fato um visitante do planeta K-Pax ou apenas um louco
“com a história mais convincente que eu já vi”, como confessa o psiquiatra que
tenta “curá-lo”, é a dúvida que acompanhará o espectador até a última cena,
cabendo a ele fazer uma contabilização das pistas deixadas ao longo da
narrativa.
Provavelmente o filme “K-Pax”
pode ser considerado o precursor de uma espécie de subgênero que sob o pretexto
de abordar temas caros da ficção científica (visitantes extraterrestres, viagem
no tempo, eventos cósmicos etc.), através de filmes com baixo orçamento e
praticamente sem nenhum efeito especial discute temas bem terrestres e
familiares: dilemas dos relacionamentos, a alteridade, conhecimento, hierarquia
e autoridade. O nosso leitor Ricardo Afonso percebeu a essência desse novo
subgênero: “A cena em que ele [Prot] simula uma viagem no tempo simplesmente nos faz
rir de nossa própria limitação, quando acreditamos que para tal empreitada
seriam necessárias luzes, cenas e cenários dignos de ficção cientifica de
Hollywood”.
Filmes como
“Another Earth” (2011), “Melancolia” (2011), “Sound of My Voice” (2011) ou “Prime”
(2005) entrariam nesse subgênero que alguns críticos chamam de “psicodrama
alt.sci-fi”.
Kevin Spacey faz um
irônico, sutil é inteligente Prot, um estranho homem encontrado pela polícia
vagando em uma estação ferroviária que educadamente explica a quem quiser ouvir
que veio de um planeta muito distante chamado K-Pax, da constelação de Lira.
Jeff Bridges é o
Dr. Powell, o psiquiatra que tem que convencer o paciente de que ele é
delirante. Hipnoterapia regressiva parece descobrir um trauma e, portanto, uma
explicação psicológica - mas Prot tem habilidades surpreendentes e um
conhecimento extraordinário de sistemas solares que os especialistas não
conseguem explicar. Além disso, o protagonista tem o alcance da sua visão fora
dos padrões normais, uma versátil pressão sanguínea e uma descomunal tolerância
à droga Torazine que se torna ineficaz no tratamento.
Terríveis pensamentos começam a passar pela cabeça
do Dr. Powell: Prot é realmente de outro planeta? Será que uma vida inteira
dedicada à racionalidade científica foi para nada?
Uma narrativa AstroGnóstica
“K-Pax” aproxima-se bastante do
que chamávamos em postagem anterior (veja links abaixo) de narrativa
AstroGnóstica: seres extraterrestres caem ou despertam a consciência nesse
mundo onde se descobrem envolvidos em alguma conspiração corporativa (“O Homem
Que Caiu na Terra”, 1974) ou simplesmente prisioneiros em uma roupagem humana,
nostálgicos pelo seu planeta de origem – “Earthling”, 2010. No final, são
filmes cuja narrativa é alegoria da própria gnóstica condição humana como seres
cuja luz espiritual encontra-se encarcerada em um cosmos frio e indiferente.
Mas “K-Pax” tem uma
característica essencial do gênero AstroGnóstico: o extraterrestre (ou o
suspeito de ser, como no filme) não trás nenhuma mensagem filosófica de paz ou
de conhecimento metafísico como em “O Dia em que a Terra Parou” onde o alien
parece querer dizer a todo momento “levem-me ao seu líder!”. Aqui o
protagonista Prot até ameaça em uma linha de diálogo falar sobre Buda e Cristo
e como não entendemos suas mensagens, mas para por aí.
Todo o filme é centrado no duelo
verbal entre Prot e o Dr. Powell (e no duelo artístico entre as fantásticas
performances de Kevin Spacey e Jeff Bridges), isto é, entre a racionalidade científica
que tenta encaixar o paciente alien em algum script previsto pela psicanálise
(traumas, abuso na infância etc.) e o desafiador mix de pureza e inteligência
de Prot que coloca o psiquiatra em diversas situações paradoxais e embaraçosas.
Como explicar o conhecimento de
Prot sobre o sistema binário da constelação de Lira onde se encontra seu
planeta, conhecido na Terra apenas por um seleto grupo de astrônomos? “Ora, apenas
sei, assim como qualquer criança da Terra sabe que a Terra gira em torno do Sol”,
responde Prot para os incrédulos astrônomos.
No hospital psiquiátrico, Prot
começa a propor jogos para outros pacientes que os fazem aos poucos demonstrar
sinais de cura ou melhora em seus estados catatônicos. O psiquiatra Powell
sente-se desafiado na sua autoridade e hierarquia: “ouça, nesse planeta eu sou
o médico e você é o paciente... É o meu trabalho, não o seu”, protesta
enfurecido o doutor. “Então, por que não os curou ainda?”, responde calmamente
Prot.
Prot é o típico personagem do “Estrangeiro”,
tomado na cinematografia atual como alguém que veio de longe (terras, dimensões
ou planetas) e que mantém uma relação de estranhamento ou mal estar onde vive,
sentindo-se como um estrangeiro na sua própria família, trabalho ou sociedade.
Em “K-Pax” temos uma curiosa variação desse arquétipo cinematográfico: embora
estrangeiro, Prot não é exatamente um prisioneiro – ele tem data e hora para
retornar. Tudo o que ele faz é escrever um “relatório” em uma pequena caderneta
que levará de volta ao seu planeta. Mas a sua simples presença cria alteridade,
estranhamento. O mal estar não está nele, mas nos outros pela sua simples
existência. Por isso todos tentam encaixá-lo em algum plot, script, sentido,
motivo, razão ou hierarquia.
A “nostalgia” de K-Pax (spoilers à frente)
Quando
o espectador está quase convencido de que Prot é, de fato, um ser
extraterrestre, o Dr. Powell consegue através de hipnose regressiva chegar aparentemente
ao ponto do trauma: na verdade ele teria sido Robert Porter, cuja esposa e
filha foram estupradas e assassinadas por um fugitivo em sua casa, em algum
lugar remoto no Novo México. Aparentemente Porter teria se matado, mas seu
corpo jamais havia sido encontrado.
Toda a
história sobre o planeta K-Pax faria parte de uma estratégia de dissociação
psíquica, como forma de fuga do Ego perante a insustentável situação de ver a
destruição da sua família.
Como o
leitor irá perceber ao ver o filme, mesmo com essa aparente resolução do
mistério de Prot, o roteiro de Charles Leavitt deixa diversas reticências
deixando tudo em suspensão: como explicar o desaparecimento de um dos pacientes
do hospital? – Prot havia prometido levar um deles para seu planeta. E o seu
conhecimento técnico sobre a constelação de Lira, impossível somente com telescópios
amadores, mesmo na sua casa sob o céu limpo do estado do Novo México?
Seja
como for, tanto a nostalgia traumática pelo sua família assassinada ou a
nostalgia pelo planeta K-Pax têm um significado equivalente uma narrativa
AstroGnóstica: a condição humana alienígena em um cosmos indiferente e ausente
de sentido. K-Pax é o simbolismo da aspiração por transcendência para algum
lugar longe do “mísero composto universal do qual fazemos parte”, como falava
Tyler Durden no filme “Clube da Luta” (Fight Club, 1999).
O
estado de suspensão de sentido que a narrativa conduz o espectador (se Prot é
terráqueo ou alienígena são hipóteses que parecem equivaler) está presente em
vários paradoxos apresentados nas linhas de diálogo: “Admita a possibilidade de
que você é Robert Porter”, inquiri o Dr Powell a Prot. “Admitirei a
possibilidade de que sou Robert Porter se você admitir a possibilidade de que
sou de K-Pax”, responde Prot calmamente com um sorriso sutil.
Em
outras palavras, se o protagonista tem problemas psíquicos ou é de K-Pax pouco
importa: o filme se trata de uma metáfora sobre o visionário impulso das nossas
almas por transcendência que a fria e indiferente ciência da psicologia
institucionalizada em hospitais, custódias e tratamentos (táticas de encaixar
nosso mal estar aos scripts dessa mundo) jamais vai entender.
Ficha Técnica
- Título: K-Pax
- Diretor: Iain Softley
- Roteiro: Charles Leavitt baseado em romance de Gene Brewer
- Elenco: Kevin Spacey, Jeff Bridges, Mary McCormack, Alfre Woodward
- Distribuição: IMF Internationale Medien und Film GmbH & Co., Intermedia Films, Pathé Pictures International
- Distribuição: Universal Pictures and Home Video
- Ano: 2001
- País: EUA/Alemanha