Continuando nossa incansável e perigosa busca de “bombas semióticas” na
mídia, encontramos outra de uma nova espécie, dessa vez involuntária, produzida por uma
espécie de cacoete jornalístico: o furor em estabelecer conexões, religações ou
cadeias de causa-efeito entre notícias distantes. O que o Jornal “Hoje” da TV
Globo quis nos dizer ao aproximar a notícia de um incêndio em uma fábrica no
interior de São Paulo com a sessão do tempo prevendo altas temperaturas e
baixíssima umidade? De tanto forçar a barra na interpretação do noticiário político
e econômico a partir de uma espécie de agenda nacional e global invisível que reina nas redações das grandes mídias, acabou criando um "modus operandi",
um cacoete em que mesmo os "fatos diversos" acabam sendo involuntariamente tratados da
mesma forma pelos jornalistas - como a materialização de um script
político-ideológico pré-estabelecido.
Quinta-feira, 12 de setembro de
2013. O telejornal “Hoje” da TV Globo já havia apresentado os primeiros blocos
noticiosos das chamadas hard news
(política e economia) e entrava na sua parte final com o que se chama em
jornalismo faits divers (fatos
diversos – notícias locais, curiosidades, cultura, tempo etc.). De repente,
entra um link ao vivo: incêndio de grandes proporções em uma fábrica de
bebedouros na cidade de Itu, interior de São Paulo. Atrás do repórter vemos
grossos rolos de fumaça negra subindo a dezenas de metros de altura contra um
profundo céu azul. Corta para o estúdio. Sandra Annenberg imediatamente convoca
a jornalista do tempo Michelle Loreto e pergunta: “vai cair alguma gota de
chuva naquela região?”. Michelle responde negativamente e explica apresentando
em um mapa as zonas de alta pressão e temperaturas elevadas esperadas para
grande parte do país. Após a rápida previsão do tempo, Sandra Annenberg
finaliza com uma expressão grave: “é... e não chove há uma semana naquela
região...”
Curiosa
e estranha relação de aproximação entre um fato diverso e a coluna da previsão
do tempo. O costumeiro “e agora a previsão do tempo...” (forma tradicional de
estabelecer uma separação entre sessões do telejornal) foi suspensa nessa
particular edição do telejornal “Hoje” para sugerir uma estranha relação de
causa-efeito entre um incêndio e a previsão do tempo. Estranha relação, pois essa
aproximação metonímica entre um fato e a coluna do tempo pode sugerir várias
interpretações:
(a) uma possível chuva poderia ajudar a combater o incêndio?
(b) o tempo seco criou condições para que ocorresse o incêndio?
(c) se estivesse um tempo chuvoso ou úmido não haveria o incêndio?
(d) Sandra Annenberg apenas tentou dar um dinamismo à narrativa fazendo uma ligação direta entre a notícia do incêndio e a sessão do tempo para arrancar o espectador da tradicional preguiça de pós-almoço?
Para Ignácio Ramonet, mais importante que as notícias, é a forma como elas são dispostas na pauta de um telejornal |
A metereologia e a ditadura
As relações inusitadas entre as
condições atmosféricas e a política já ocorreram no Brasil. Conta-se que
durante a ditadura militar na década de 1970, a paranoia governamental em
relação à ordem era tamanha que até notícias sobre as altas temperaturas acima
de 40° no verão carioca eram censuradas. Achavam que isso poderia criar algum
tipo de comoção pública e desordem.
Certamente
nesse caso particular da edição de quinta-feira não houve uma proposital
motivação político-ideológico. Essa bomba semiótica involuntária do telejornal
acabou revelando outra coisa, uma espécie de tique nervoso, de cacoete que
parece incontrolável ao jornalismo atual: a presunção da catástrofe. De tanto
forçar a barra na aproximação das hard
news à pauta ou agenda nacional e global que parece reinar nas redações das
grandes mídias, acabou criando um modus
operandi, um cacoete em que mesmo as notícias diversas acabam sendo
tratadas da mesma forma – como confirmações cotidianas dessa agenda
político-ideológica.
Conexões, História e efeitos de realidade
Ignácio
Ramonet aponta algumas características do jornalismo atual: o furor por
conexões, a crença de que a TV mostra “a história acontecendo” e a elaboração
de “efeitos de realidade” (veja RAMONET, Ignácio. A Tirania da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 1999). As transmissões
ao vivo e as tecnologias de transmissão via satélite criaram no jornalismo um
furor de conectar, entrar em cadeia, religar. Correspondentes em várias partes
do país ou do mundo simultaneamente entram em cadeia como, por exemplo, nas
manifestações de rua no último sete de setembro. Para Ramonet, isso cria a
necessidade do repórter permanecer sempre próximo do link ao vivo, impedindo-o
de ir na busca da informação.
Acreditamos que a História acontece na TV |
Isso
conduz à segunda característica: a dependência do jornalismo em relação às imagens
e à tecnologia faz acreditar que a TV é a “história acontecendo” – a certeza
ontológica de que mostrar é fazer compreender em uma só mirada. Toda História
se manifestaria através de um rico material visual, levando à seguinte
conclusão: ver é compreender.
Por
isso uma série de efeitos de realidade é destacada para reforçar esse realismo
histórico: close no rosto de vítimas, depoimentos emocionados, desabafos,
protestos etc.
O furor
das conexões, a teoria da “História acontecendo”, os efeitos de realidade
somados à agenda invisível que permeia as redações dos grandes veículos criam
essa ansiedade em querer conectar qualquer notícia ao script. No seu íntimo, o jornalista acredita nessa teoria da
História televisionada: toda imagem deve ter um sentido porque é histórica, tem
um significado em si mesmo. Por isso, as notícias devem ser constantemente
religadas, aproximadas umas das outras para se criar blocos de sentido.
Por que
a aproximação entre um sinistro isolado no interior de São Paulo com a previsão
do tempo de todo território nacional? Se a câmera mostra um incêndio, isso não
pode ser um fato isolado. Deve ter um por que, um sentido que será dado por
essa agenda invisível. De tanto fazer isso intencionalmente nas hard news, essa operação semiótica acaba
se repetindo inconscientemente nas notícias diversas.
A agenda invisível
A grosso modo e rapidamente podemos dividir essa agenda invisível
pré-existente que reina nas grandes redações em Agenda Nacional e Agenda Global.
1.1. A corrupção e a perda dos valores morais é o mal que
corrói o Estado e a Política, levando a ineficiência da máquina estatal que
produz um efeito cascata de aumento de impostos e do chamado custo Brasil. A
escalada de manifestações em todo País seria um “basta!” dos brasileiros a esse
estado de coisas;
1.2. – Em nome dessa recuperação dos valores morais, a
Justiça deve ser mais dura, punitiva e intolerante. Por isso a redução da maioridade
penal é necessária e deve ser sempre lembrada a cada notícia de contravenções
praticada por menores. Nos últimos meses, há uma endêmica onda midiática de
notícias sobre menores praticando crimes, exterminando a própria família e
liderando arrastões;
1.3. – A cada matéria que conta a trajetória de anônimos que
ficaram ricos graças a um pequeno comércio, blog, ideia ou conceito, vem a
associação com o ideário do empreendedorismo, da liberdade de ser o próprio
patrão etc. Histórico de fracassos não são mostrados, a não ser que a matéria
consiga conectá-los ao fatores do item um;
1.4. – O noticiário econômico basicamente é orientado para a
confirmação do seguinte script: ressurgimento da inflação, a falta de política
industrial, descontrole cambial, crescimento dos juros, estratosférica carga
tributária;
1.5. – Aquecimento da economia e do consumo é visto com
desconfiança por ser uma notícia potencialmente negativa: notícias sobre o
crescimento do endividamento, a ausência de educação financeira familiar ganham
destaque. Isso alimenta o chamado jornalismo adversativo: o consumo cresceu,
mas... aumentou o endividamento da população. O PIB cresceu esse mês, mas...
caiu em relação ao mesmo período do ano passado.
2.1. – Cada “anomalia” atmosférica (um tornado que se divide
em dois, recorde de temperaturas no verão ou de nevascas no inverno, etc.) é apressadamente
associada à pauta do Aquecimento Global. O cacoete metonímico em aproximar
rapidamente um incêndio isolado com a sessão da previsão do tempo é um efeito
involuntário dessa ansiedade nervosa por conexões. Notícias sazonais de queimadas
em estações secas desde a Califórnia (principalmente quando se aproximam de
mansões de celebridades) até o Planalto Central brasileiro seria a confirmação
dessa marcha histórica para a catástrofe;
2.2. – Notícias sobre fome e pobreza são conectadas com
regiões secas e falta de água. Desperdício de alimentos, água e energia são
sempre os motivos apontados – as fontes naturais se esgotam. Nada se fala sobre
a transformação desses recursos em mercadorias e a carência artificialmente
provocada pelas próprias leis de mercado. O script da fragilidade da Natureza e
da escassez é a justificativa subliminar para a mercantilização generalizada
como pretexto para a utilização “racional” dos recursos. Basta acompanhar o
depoimento do atual presidente da Nestlé de que a água “não é um direito humano
básico” e de que a única solução para a questão global da água seria a
privatização;
2.3. – Todos os problemas políticos e econômicos globais são
reduzidos a um eixo conflituoso básico: o choque cultural entre o fundamentalismo
e intolerância religiosa islâmica versus tolerância democrática do Ocidente;
2.4. – Esse script do choque de culturas se expande para o
conflito entre modernidade (liberalismo econômico, globalização financeira
etc.) versus atraso (nacionalismo de esquerda, comunismo, governos trabalhistas,
populismo etc.).