domingo, setembro 15, 2013

O cacoete jornalístico e a agenda invisível


Continuando nossa incansável e perigosa busca de “bombas semióticas” na mídia, encontramos outra de uma nova espécie, dessa vez involuntária, produzida por uma espécie de cacoete jornalístico: o furor em estabelecer conexões, religações ou cadeias de causa-efeito entre notícias distantes. O que o Jornal “Hoje” da TV Globo quis nos dizer ao aproximar a notícia de um incêndio em uma fábrica no interior de São Paulo com a sessão do tempo prevendo altas temperaturas e baixíssima umidade? De tanto forçar a barra na interpretação do noticiário político e econômico a partir de uma espécie de agenda nacional e global invisível que reina nas redações das grandes mídias, acabou criando um "modus operandi", um cacoete em que mesmo os "fatos diversos" acabam sendo involuntariamente tratados da mesma forma pelos jornalistas - como a materialização de um script político-ideológico pré-estabelecido.

Quinta-feira, 12 de setembro de 2013. O telejornal “Hoje” da TV Globo já havia apresentado os primeiros blocos noticiosos das chamadas hard news (política e economia) e entrava na sua parte final com o que se chama em jornalismo faits divers (fatos diversos – notícias locais, curiosidades, cultura, tempo etc.). De repente, entra um link ao vivo: incêndio de grandes proporções em uma fábrica de bebedouros na cidade de Itu, interior de São Paulo. Atrás do repórter vemos grossos rolos de fumaça negra subindo a dezenas de metros de altura contra um profundo céu azul. Corta para o estúdio. Sandra Annenberg imediatamente convoca a jornalista do tempo Michelle Loreto e pergunta: “vai cair alguma gota de chuva naquela região?”. Michelle responde negativamente e explica apresentando em um mapa as zonas de alta pressão e temperaturas elevadas esperadas para grande parte do país. Após a rápida previsão do tempo, Sandra Annenberg finaliza com uma expressão grave: “é... e não chove há uma semana naquela região...”


                Curiosa e estranha relação de aproximação entre um fato diverso e a coluna da previsão do tempo. O costumeiro “e agora a previsão do tempo...” (forma tradicional de estabelecer uma separação entre sessões do telejornal) foi suspensa nessa particular edição do telejornal “Hoje” para sugerir uma estranha relação de causa-efeito entre um incêndio e a previsão do tempo. Estranha relação, pois essa aproximação metonímica entre um fato e a coluna do tempo pode sugerir várias interpretações:
(a) uma possível chuva poderia ajudar a combater o incêndio?
(b) o tempo seco criou condições para que ocorresse o incêndio?
(c) se estivesse um tempo chuvoso ou úmido não haveria o incêndio?
(d) Sandra Annenberg apenas tentou dar um dinamismo à narrativa fazendo uma ligação direta entre a notícia do incêndio e a sessão do tempo para arrancar o espectador da tradicional preguiça de pós-almoço?

Para Ignácio Ramonet, mais importante que
as notícias, é a forma como
elas são dispostas
na pauta de um telejornal
Certa vez, o jornalista e sociólogo espanhol Ignácio Ramonet disse que mais importante do que as próprias notícias, é a forma como elas são dispostas na pauta do telejornal: as aproximações acabam sugerindo conexões e relações de causa-efeito entre fatos que, de outra forma, seriam meras informações isoladas. Ou, o inverso: notícias cujas conexões são críticas são afastadas, esvaziando seus significados. Aproximações ou afastamento de notícias dentro da pauta do telejornal acabam criando novas significações que, muitas vezes, podem ter motivações político-ideológicas.

A metereologia e a ditadura


As relações inusitadas entre as condições atmosféricas e a política já ocorreram no Brasil. Conta-se que durante a ditadura militar na década de 1970, a paranoia governamental em relação à ordem era tamanha que até notícias sobre as altas temperaturas acima de 40° no verão carioca eram censuradas. Achavam que isso poderia criar algum tipo de comoção pública e desordem.

                Certamente nesse caso particular da edição de quinta-feira não houve uma proposital motivação político-ideológico. Essa bomba semiótica involuntária do telejornal acabou revelando outra coisa, uma espécie de tique nervoso, de cacoete que parece incontrolável ao jornalismo atual: a presunção da catástrofe. De tanto forçar a barra na aproximação das hard news à pauta ou agenda nacional e global que parece reinar nas redações das grandes mídias, acabou criando um modus operandi, um cacoete em que mesmo as notícias diversas acabam sendo tratadas da mesma forma – como confirmações cotidianas dessa agenda político-ideológica.

Conexões, História e efeitos de realidade


                Ignácio Ramonet aponta algumas características do jornalismo atual: o furor por conexões, a crença de que a TV mostra “a história acontecendo” e a elaboração de “efeitos de realidade” (veja RAMONET, Ignácio. A Tirania da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 1999). As transmissões ao vivo e as tecnologias de transmissão via satélite criaram no jornalismo um
Acreditamos que a História
acontece na TV
furor de conectar, entrar em cadeia, religar. Correspondentes em várias partes do país ou do mundo simultaneamente entram em cadeia como, por exemplo, nas manifestações de rua no último sete de setembro. Para Ramonet, isso cria a necessidade do repórter permanecer sempre próximo do link ao vivo, impedindo-o de ir na busca da informação.

                Isso conduz à segunda característica: a dependência do jornalismo em relação às imagens e à tecnologia faz acreditar que a TV é a “história acontecendo” – a certeza ontológica de que mostrar é fazer compreender em uma só mirada. Toda História se manifestaria através de um rico material visual, levando à seguinte conclusão: ver é compreender.

                Por isso uma série de efeitos de realidade é destacada para reforçar esse realismo histórico: close no rosto de vítimas, depoimentos emocionados, desabafos, protestos etc.

                O furor das conexões, a teoria da “História acontecendo”, os efeitos de realidade somados à agenda invisível que permeia as redações dos grandes veículos criam essa ansiedade em querer conectar qualquer notícia ao script. No seu íntimo, o jornalista acredita nessa teoria da História televisionada: toda imagem deve ter um sentido porque é histórica, tem um significado em si mesmo. Por isso, as notícias devem ser constantemente religadas, aproximadas umas das outras para se criar blocos de sentido.

                Por que a aproximação entre um sinistro isolado no interior de São Paulo com a previsão do tempo de todo território nacional? Se a câmera mostra um incêndio, isso não pode ser um fato isolado. Deve ter um por que, um sentido que será dado por essa agenda invisível. De tanto fazer isso intencionalmente nas hard news, essa operação semiótica acaba se repetindo inconscientemente nas notícias diversas.

A agenda invisível


A grosso modo e rapidamente podemos dividir essa agenda invisível pré-existente que reina nas grandes redações em Agenda Nacional e Agenda Global.

1. Agenda Nacional

1.1. A corrupção e a perda dos valores morais é o mal que corrói o Estado e a Política, levando a ineficiência da máquina estatal que produz um efeito cascata de aumento de impostos e do chamado custo Brasil. A escalada de manifestações em todo País seria um “basta!” dos brasileiros a esse estado de coisas;

1.2. – Em nome dessa recuperação dos valores morais, a Justiça deve ser mais dura, punitiva e intolerante. Por isso a redução da maioridade penal é necessária e deve ser sempre lembrada a cada notícia de contravenções praticada por menores. Nos últimos meses, há uma endêmica onda midiática de notícias sobre menores praticando crimes, exterminando a própria família e liderando arrastões;

1.3. – A cada matéria que conta a trajetória de anônimos que ficaram ricos graças a um pequeno comércio, blog, ideia ou conceito, vem a associação com o ideário do empreendedorismo, da liberdade de ser o próprio patrão etc. Histórico de fracassos não são mostrados, a não ser que a matéria consiga conectá-los ao fatores do item um;

1.4. – O noticiário econômico basicamente é orientado para a confirmação do seguinte script: ressurgimento da inflação, a falta de política industrial, descontrole cambial, crescimento dos juros, estratosférica carga tributária;

1.5. – Aquecimento da economia e do consumo é visto com desconfiança por ser uma notícia potencialmente negativa: notícias sobre o crescimento do endividamento, a ausência de educação financeira familiar ganham destaque. Isso alimenta o chamado jornalismo adversativo: o consumo cresceu, mas... aumentou o endividamento da população. O PIB cresceu esse mês, mas... caiu em relação ao mesmo período do ano passado.

2. Agenda Global

2.1. – Cada “anomalia” atmosférica (um tornado que se divide em dois, recorde de temperaturas no verão ou de nevascas no inverno, etc.) é apressadamente associada à pauta do Aquecimento Global. O cacoete metonímico em aproximar rapidamente um incêndio isolado com a sessão da previsão do tempo é um efeito involuntário dessa ansiedade nervosa por conexões. Notícias sazonais de queimadas em estações secas desde a Califórnia (principalmente quando se aproximam de mansões de celebridades) até o Planalto Central brasileiro seria a confirmação dessa marcha histórica para a catástrofe;

2.2. – Notícias sobre fome e pobreza são conectadas com regiões secas e falta de água. Desperdício de alimentos, água e energia são sempre os motivos apontados – as fontes naturais se esgotam. Nada se fala sobre a transformação desses recursos em mercadorias e a carência artificialmente provocada pelas próprias leis de mercado. O script da fragilidade da Natureza e da escassez é a justificativa subliminar para a mercantilização generalizada como pretexto para a utilização “racional” dos recursos. Basta acompanhar o depoimento do atual presidente da Nestlé de que a água “não é um direito humano básico” e de que a única solução para a questão global da água seria a privatização;

2.3. – Todos os problemas políticos e econômicos globais são reduzidos a um eixo conflituoso básico: o choque cultural entre o fundamentalismo e intolerância religiosa islâmica versus tolerância democrática do Ocidente;

2.4. – Esse script do choque de culturas se expande para o conflito entre modernidade (liberalismo econômico, globalização financeira etc.) versus atraso (nacionalismo de esquerda, comunismo, governos trabalhistas, populismo etc.).

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