“Mulher na Lua” (Frau
im Mond, 1929), último filme mudo de Fritz Lang (“Metrópolis, 1927), foi o primeiro
esforço no cinema em abordar o tema da viagem espacial de forma séria e
cientificamente crível. E também o primeiro exemplo de convergência entre a
agenda tecnocientífica e o cinema: Hermann Oberth, presidente da Sociedade
Alemã para a Viagem Espacial, não só deu consultoria científica como construiu
um protótipo de foguete para as filmagens. Acreditava que Lang daria
publicidade e dinheiro à causa da viagem espacial, uma verdadeira mania popular
na década de 1920 na Alemanha. Mas, secretamente, as estórias sobre “perigosas
vacas lunares” e “naves misteriosas entre os anéis de Saturno” das HQs e pulp
fictions da época prepararam o imaginário das vanguardas artísticas para a
irracionalidade e destruição dos mísseis V2 de Hitler.
A nata da vida intelectual,
literária e política alemã estava naquela noite de 15 de outubro de 1929 em
Berlin na premiére do filme “Mulher na Lua” de Fritz Lang. Dois anos depois do
lançamento de “Metrópolis”, Lang recebia os cumprimentos por mais uma obra
prima futurística, não tão sombria quanto a anterior, mas que representava o
auge de uma verdadeira mania popular que tomava conta da Europa,
particularmente da Alemanha: os foguetes e o sonho da viagem espacial.
Entre a plateia estava Hermann
Oberth, a autoridade mundial em astronáutica e na época presidente da Sociedade
Alemã para Viagem Espacial ou “VfR” (formado por grupo de cientistas, entre
eles Werner Von Braun, na época com 17 anos e que mais tarde não só lideraria o
projeto dos foguetes militares nazis como também o projeto da NASA que levaria
o homem à Lua) que não só deu a consultoria científica ao roteiro como
construiu o protótipo de foguete chamado “Model B” para as filmagens. Ele
acreditava que o filme daria publicidade e dinheiro suficientes para construir
um foguete real, o que não aconteceu.
Mas o filme de Lang levou ao mainstream o que era uma verdadeira
febre popular na década de 1920 com HQs, pulp fictions e magazines que contavam
histórias de “perigosas vacas lunares”, “naves solitárias perdidas entre os
anéis de Saturno”, e a exploração do “ouro lunar”.
“Mulher na Lua” talvez seja o
primeiro exemplo de convergência entre a agenda tecnocientífica e o imaginário
cinematográfico. O apuro científico do filme (pela primeira vez um sci fi mostra gravidade zero, foguetes
em estágios, roupas espaciais e o “efeito estilingue” aplicado ao foguete pela
proximidade das órbitas Terra-Lua) deu tal realismo e verossimilhança ao tema que
levou a VfR a procurar no Exército alemão o apoio às experiências. Assim como, mais tarde com os nazistas no poder, Hitler
consideraria os mísseis de Von Braun como a “arma da vingança”.
Outro famoso exemplo dessa
convergência é entre o filme “2001 – Uma Odisséia no Espaço” de Stanley Kubrick
e a agenda espacial da NASA: o cientista espacial Frederick Ordway trabalhou
simultaneamente no projeto espacial norte-americano e na consultoria ao filme
de Kubrick. Um ano depois do lançamento
de “2001” a NASA colocava o primeiro homem na Lua – o que fez alimentar a imaginação
conspiratória de que o pouso na Lua nunca ocorreu, a não ser nos efeitos
especiais para a TV.
Apesar do sonho das viagens
espaciais ser acalentado por cientistas russos e norte-americanos desde o
século XIX, por que foi na Alemanha na década de 20 e 30 que transformou-se em
uma verdadeira moda popular manifestado através de diversas mídias? Qual a
natureza dessa convergência entre cinema e agenda tecnocientífica? Espírito de
época? Engenharia de opinião pública? Conspiração?
O Filme
“Mulher na Lua” começa mostrando
a trajetória do astrônomo e professor Georg Manfeldt, considerado um maluco pela
sociedade científica por defender a ideia de uma expedição à Lua para explorar abundantes
reservas de ouro que ele acredita existirem lá. Wolf Helius, chefe de uma
empresa de aeronáutica, é o único a levar à sério as teses do professor e oferece
a Manfeldt recursos para organizar uma viagem espacial.
Assim que Helius anuncia seus
planos, um americano chamado Walter Turner,representante de um cartel
internacional encabeçado pelos cinco pessoas mais poderosas do mundo que
controlam as reservas de ouro do planeta, rouba as notas Manfeldt e Helius e os
chantageia, permitindo-lhe participar da expedição. Helius também concorda em
levar seu parceiro de negócios Hans Windegger e sua noiva a astrônoma Friede
Velten, por quem Helius secretamente deseja. O foguete é construído e lançado.
Eles pousam na Lua e em breve encontrarão as fontes abundantes de ouro. No
entanto, a expedição é ameaçada tanto pela traição de Turner como pela covardia
de Windegger.
Para além do realismo
científico, “Mulher na Lua” é um filme surpreendente: primeiro, é incrivelmente
longo para a época dos filmes mudos (quase duas horas e meia) – as versões em
inglês foram editadas para 90 minutos.
Segundo, Lang apresenta um hábil
senso de humor como as sequências do rato de estimação que o professor Manfeldt
leva para a viagem e o garoto clandestino no foguete que leva uma mochila
repleta de revistas HQs e pulp ficitons sobre monstros espaciais e viagens
interestelares.
Terceiro, a assustadora
composição do vilão Walter Turner com um topete muito semelhante a Hitler. Isso
quatro anos antes de Hitler ascender à vida política nacional como Chanceler na
Câmara do Reichstag.
E por último o imaginário
conspiratório que move a narrativa (a conspiração dos “cinco homens mais
poderosos que controlam o ouro do mundo”, como o filme se refere nos
intertítulos) que foi, afinal, o mote do nacionalismo anti-semita da doutrina
Nazi. Isso sem falar no ambíguo final ao mostrar os modernos Adão e Eva alemães
que ficam na Lua em um acampamento cujo destino implícito será a colonização do
satélite terrestre – seria uma alusão ao pan-germanismo e a necessidade do
retorno aos verdadeiros valores nacionais do povo, terra, família e sangue?
A dialética das vanguardas artísticas
Essa ambiguidade e convergência
do filme “Mulher na Lua” com a agenda tecnocientífica da época remete ao que o
pesquisador espanhol Eduardo Subirats chama de “dialética das vanguardas
artísticas” do início do século XX: a utopia racionalista da máquina tal qual
como defendida pela arte e arquitetura das vanguardas do início do século XX
(futurismo, Bauhaus, etc.) como princípio absoluto para a constituição da
cultura como sujeito histórico ou um messias involuntariamente teria alimentado
um projeto de dominação, irracionalidade e destruição (Veja SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. São Paulo:
Nobel, 1986).
Para Subirats ninguém expressou
tão vivamente essa constelação como o cinema expressionista alemão onde ora a
máquina se reveste de elementos mitológicos e religiosos críticos como em “Metrópolis”
(a indústria estilizada como um Moloch, o falso ídolo bíblico que devorava aos
que lhe rendiam culto), ora como um princípio civilizador da modernidade na
figura do foguete em “Mulher na Lua”.
O projeto dos mísseis balísticos
V2 comandado por Von Braun no final da II Guerra Mundial quando tudo estava
perdido para os Nazis e a astronáutica passou a ser vista como “arma de
vingança”, seria o ápice dessa dialética que dá o que pensar: não seria o caso
de afirmar que as vanguardas intelectuais da época chocaram o ovo da serpente ao
estilizar a tecnologia e a política?
Nessa perspectiva, o fato de
grupos de artistas futuristas italianos irem voluntariamente lutar no front à
favor do fascismo não foi surpreendente: foi o resultado da ambiguidade de uma
agenda artística que preconizava a provocação, o choque, o escândalo e a
destruição como únicos caminhos para o surgimento de uma nova cultura.
Por outro lado, o filme “Mulher
na Lua” é um documento do “espírito de época” da Alemanha pós I Guerra Mundial.
Segundo o livro “The Nazi Rocketeers, Dreams of Space and Crimes of War” de
Dennis Piszkiewicz, foguetes e viagens espaciais capturaram a imaginação da
opinião pública e de jovens cientistas na Alemanha da época porque tornaram-se fantasias escapistas diante de uma realidade ultrajante para o nacionalismo
alemão – depressão econômica e caos político acompanhado das humilhações de um
país derrotado na I Guerra Mundial.
“Mulher na Lua” é o último filme
mudo de Fritz Lang. Lá encontramos todas as características do expressionismo
alemão (o medo psicológico produzido pelo olhar do personagem para o
contracampo, contrastes fortes de luz e sombra, o disfarce, o cinismo e as
atmosferas opressivas de intrigas) que, nos EUA, serão a matéria-prima de um gênero
crítico que desbravará o submundo de bêbados, perdedores e mulheres fatais da
sociedade norte-americana: o filme noir.
Ficha Técnica
- Título: Mulher na Lua (Frau im Mond)
- Diretor: Fritz Lang
- Roteiro: Thea Von Harbou, Fritz Lang
- Elenco: Klaus Pohl, Willy Fritsch, Gustav von Wangenheim
- Produção: Universum Film (UFA), Fritz Lang Film
- Distribuição: Kino Vídeo
- Ano: 1929
- País: Alemanha