quarta-feira, janeiro 09, 2013
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Ao contrário dos filmes tradicionais sobre
viagem no tempo onde a atração principal são sempre os aparatos tecnológicos, no
filme independente “Safety Not Guaranteed” (2012) a máquina do tempo é apenas o
pretexto para a narrativa apresentar insights
reveladores do estranhamento de pessoas em relação ao mundo moderno e nas
maneiras de escapar e expressar seu descontentamento. E também diferente dos clichês
da “segunda chance” nas viagens ao passado, nesse filme a suposta existência de
uma máquina do tempo é a oportunidade de uma espécie de “transcendência
espiritual mundana” baseado na ruptura da prisão existencial de “perdedores” em
uma sociedade vazia de sentido.
Viagem
no tempo é um tema recorrente no cinema. Na concepção clássica encontramos até
os anos 1970 o viajante como uma mera testemunha de eventos do passado e do
futuro que não podem ser alterados. Os protagonistas lutam contra a seta do
tempo e podem até morrer, mas fatos providenciais sempre impedem que a História
seja alterada. A série de TV “O Túnel do Tempo”(1966-67) ou o filme “Um Século
em 43 minutos” (1979) são bons exemplos.
A
partir da trilogia “De Volta para o Futuro” nos anos 1980 temos uma viagem no
tempo paradoxal: podemos voltar ao passado e criarmos futuros alternativos,
novos presentes e até confrontarmos com o “paradoxo dos gêmeos”. O cinema passa
a explorar o tema da “segunda chance”: a viagem no tempo torna-se uma esperança
para alterarmos as causas dos maléficos efeitos que enfrentamos. Dor, culpa,
arrependimento poderiam ser consertados, às vezes com nefastas consequências
como no filme “Efeito Borboleta” (Butterfly Effect, 2004).
Já
o filme independente “Safety Not Guaranteed” (um típico produto do Instituto
Sundance), primeiro longa de Colin Trevorrow, parece criar um contraponto nessa
trajetória do Tempo no cinema: o filme não é sobre viagem no tempo, mas é de
viagem no tempo no sentido mais amplo do termo. A possível existência de uma
máquina do tempo serve apenas de pretexto para os protagonistas revelarem em
relação ao passado nostalgia, experiência de perdas, culpa e remorso. Ao longo
da narrativa vemos ambíguos indícios ou pistas sobre a construção de uma
máquina do tempo, o que parece ser apenas mais uma estória que revela a problemática
relação dos protagonistas com o passado.
“Safety
Not Guaranteed” é centrado na reportagem investigativa sobre um pequeno anúncio publicado nos
classificados em um jornal no estado de Washington convidando candidatos a
fazer parte de um experimento de viagem no tempo – supostamente o argumento do
roteiro é baseado em um caso real. O anúncio termina com uma advertência:
“traga suas armas. Segurança não é garantida”. A partir do número da caixa
postal indicada no anúncio, um cínico e amargo repórter chamado Jeff (Jake
Jonhson) do Backwood Home Magazine auxiliado por dois estagiários (a jovem Darius
– Aubrey Plazza – e um nerd hindu Amal – Karan Soni) vão a um decadente resort
em baixa estação no litoral em busca do autor do insólito anúncio.
A
narrativa é centrada na jovem Darius, recém-formada e que vê o mundo como vazio
e sem sentido e, por isso, tem uma estranha sensação nostálgica por épocas em
que não viveu: tudo que é legal se foi: astecas, dragões, elfos... ?”, diz.
Aliás, todos os personagens parecem viver nos interstícios da sociedade. Em
outras palavras, são “losers”: solitários, subempregados, virgens, todos
parecem possuir uma relação de alienação e estranhamento em relação à
sociedade.
Os
integrantes da investigação parecem ver na suposta possibilidade de viagem ao
passado uma forma de resgatar algo perdido que os salve do estado de alienação:
Darius sente-se culpada pela morte da mãe quando tinha 14 anos, Jeff vê na
investigação uma forma de reencontrar-se com um amor da juventude etc.
A
investigação leva ao encontro do autor do anúncio, Kenneth (Mark Duplass), um
solitário estoquista em um supermercado que passa o tempo tentando explicar aos
colegas de trabalho o paradoxo quântico do gato morto de Schrödinger - experimento imaginário onde em uma caixa coloca-se um gato,
isótopo radioativo e um dispositivo que libera o veneno pelo contador Geiger.
Pela lógica quântica, paradoxalmente o gato deverá estar morto e vivo
simultaneamente.
Em todo filme sobre
viagem no tempo a principal atração sempre são os aparatos tecnológicos que
criam todas as situações dramáticas. Ao contrário, nesse filme são apenas mostrados
indícios, diagramas, peças, pistas da possível existência de uma máquina: de
concreto, um personagem paranoico, misteriosamente perseguido por homens que
parecem agentes do governo e que passa o tempo livre treinando tiro com armas
como treinamento para a viagem no tempo e um propósito – voltar a 2001 e evitar
a morte de uma namorada da juventude.
Viajantes,
detetives e estrangeiros
Em postagem anterior
(veja links abaixo) descrevíamos como a indústria de entretenimento expressa a
subjetividade contemporânea em torno de três personagens arquetípicos: o viajante,
o detetive e o estrangeiro. Três personagens protagonistas da pós-modernidade.
Em suas narrativas aparecem, em geral, como prisioneiros em um universo hostil,
estrangeiros dentro do seu próprio país, uma estranha sensação de deslocamento,
de não fazer parte de um mundo decadente e corrompido.
Em “Safety Not Guaranteed” claramente os
protagonistas se estruturam em torno desse conjunto arquetípico. Para começar,
todos são estrangeiros: melancólicos, a estranha sensação de deslocamento e
alienação os torna habilitados em perceber o estranho e o bizarro em um ambiente
familiar e comum. Por isso o filme oferece insights
reveladores do estranhamento de pessoas em relação ao mundo moderno e nas
maneiras de escapar e expressar seu descontentamento.
Ao mesmo tempo são detetives: assim como no
clássico personagem do detetive nos antigos filmes noir, ao investigar as origens e motivações de um bizarro anúncio
os repórteres do jornal de Seattle descobrirão que aquilo tem uma relação
existencial com suas próprias vidas. Na verdade, toda a investigação irá se
reverter em uma jornada de autoconhecimento.
No final, a promessa da viagem temporal como
promissora grande fuga de uma realidade de alienação e descontentamento. Essa
parece ser a novidade que “Safety Not Guaranteed” oferece ao tema viagem no
tempo: a possível viagem não é uma promessa de “segunda chance”, mas
simplesmente a grande escapada da rotina vazia e sem sentido.
A gnose da viagem no tempo
Embora o anúncio de
Kenneth prometa uma viagem a 2001 para tentar salvar a vida de uma namorada da
juventude, na verdade oferecerá uma jornada de autoconhecimento para todos os
personagens – ajudar a expressar o descontentamento com a vida do presente.
Por isso a virtude de “Safety Not Guaranteed” é
evitar que o autoconhecimento caia no parâmetro da autoajuda, tão comum nos
filmes tidos como espiritualistas hollywoodianos – como em “Em Algum Lugar do
Passado” (1980) ou “Amor Além da Vida” (1998). Os protagonistas não veem a
volta ao passado como uma ferramenta para criar uma nova chance, mas simplesmente
a busca de uma fresta, uma passagem de fuga para a prisão em que constitui a
sociedade em que vivem.
Isso fica claro
após o auge climático do filme onde ocorre uma sucessiva quebra de ordens - o “nerd”hindu
perde a virgindade, Jeff tem uma noite de sexo com o amor perdido da juventude
e Daren se identifica com a paranoia e o vazio existencial de Kenneth e acaba
se apaixonando por ele. Tudo parece terminado com o retorno à ordem representado
pela ligação enfurecida da editora-chefe do jornal de Seattle cobrando resultados
da investigação jornalística e alertando para o prazo de fechamento da matéria.
No final a existência ou não da máquina do
tempo (isso o leitor terá que ver no filme) será o momento da gnose ou
iluminação espiritual: algo ao mesmo tempo trágico, cômico e de estranha
transcendência espiritual para todos.
A estética do chamado
movimento “indie” de filmes de baixo orçamento sobre personagens losers que se inspiram em trilha musical
folk com letras sobre perdas e desilusões (“Pequena Miss Sunshine”, “Another
Earth”, “Juno” etc.) tem oferecido excelentes roteiros onde vemos ótimos
exemplos de uma espécie de moderna transcendência espiritual mundana onde a
gnose é experimentada com o movimento de ruptura da prisão existencial. No caso
de “Safety Not Guarateed”, a promessa de ruptura está na promessa da suposta existência
de uma máquina do tempo.
Ficha Técnica:
Título: Safety Not Guaranteed
Diretor: Colin treverrow
Roteiro: Derek Connolly
Elenco: Aubrey Plaza, Mark Duplass, Jake Johnson,
Mary Lynn Rajskub e Karan Soni
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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