domingo, janeiro 20, 2013
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Ao mesclar ficção científica com romance, “Upside Down” (uma co-produção
Canadá/França dirigida pelo argentino Juan Diego Solanas) dá nova roupagem aos
mitos da Queda, tão antigos quanto a humanidade: relatos míticos que tentam relacionar
a dor e sofrimento à queda da humanidade de um estado de pureza e inocência. Em
um engenhoso roteiro, Solanas constrói uma versão literal da Queda ao criar um
universo onde a Lei da Gravidade ao mesmo tempo une e separa dois planetas que não possuem céu ou
horizontes, mas apenas a versão invertida da sua própria sociedade: o opulento
mundo “de cima” que sempre faz lembrar a pobreza do mundo “de baixo”. Mas um
amor proibido desafiará a gigantesca corporação que mantém essa ordem através
da exploração da energia e dos meios de comunicação.
Os
mitos da Queda são tão antigos quanto a história humana. Das tradições das religiões abraâmicas (que se
referem a um estado de transição humana da inocência e obediência a Deus para
um estado de culpa e pecado) às heresias gnósticas (a Queda como uma catástrofe
de dimensão cósmica da qual o homem tenta se libertar), são relatos que tentam
explicar a origem de tanta dor e sofrimento humanos que teria iniciado em algum
momento posterior a Criação.
A
esse mito associa-se o de uma “Era Dourada” derivada da mitologia grega e de
diversas lendas que via o início da humanidade como um estado ideal quando o
gênero humano era puro e imortal. Isso criou o arquétipo do “mito das origens”
presente em obras como a do filósofo francês Rosseau que vai, por exemplo,
influenciar teorias psicopedagógicas: a infância como um momento de feliz espontaneidade e pureza que será perdida na
entrada da fase adulta.
Pois
o filme “Upside Down”, uma coprodução Canadá/França dirigido pelo argentino
Juan Diego Solanas, vai não só se inspirar nessas fontes míticas como também
vai dar uma nova roupagem, dessa vez literal a essa “Queda” – associá-la às
leis gravitacionais através de um engenhoso roteiro que parte das seguintes
premissas:
a) Há muito tempo atrás dois
planetas se aproximaram tanto que quase se tocaram, de tal maneira que os
habitantes de um planeta conseguem ver a superfície do outro planeta com seus
habitantes, prédios, montanhas e nuvens. São planetas gêmeos que juntos
gravitam em torno do Sol;
b) Cada planeta tem suas
próprias leis gravitacionais: toda matéria é puxada pela força da gravidade do
mundo a que pertence e não do outro;
c) Um objeto pesado pode ser
transportado usando a matéria do mundo oposto. É o que se chama “matéria
invertida” que se transforma em uma preciosa fonte de energia;
d) A matéria em contato com
matéria invertida queima após algumas horas;
Dessas
leis físicas surgiram mundos desiguais baseados na exploração e dominação: o
planeta “de cima” é controlado por uma espécie de utopia corporativa que produz
riqueza e bem estar para seus habitantes, enquanto o planeta “de baixo” vive em
um ambiente distópico de pobreza e crise energética. O planeta “de cima” explora
o petróleo barato do mundo inferior para depois revendê-lo a preço exorbitante
enquanto, para sobreviver, os “de baixo” traficam matéria invertida para
aquecer clandestinamente suas casas.
É
terminantemente proibido haver comunicação das pessoas entre os mundos sob
risco de morte sob um pesado esquema de vigilância e controle. A única exceção
é no interior de uma torre que faz o ponto de contato entre os planetas de uma
corporação chamada Transworld onde em gigantescos escritórios invertidos
funcionários de ambos os mundos gerenciam o sistema político e econômico e
criam programas de TV para controle ideológico principalmente do mundo “de
baixo”, fonte de mão de obra e energia baratas.
Mas
um amor que surge na infância entre habitantes dos mundos opostos desafiará as
leis gravitacionais que regem aquela ordem injusta. Aqui a ficção científica se
encontrará com o romance. Adam (Jim Sturguess) e Eve (Kirsten Dunst) se
conhecem em uma infância idílica: ambos vão a uma região montanhosa cujos picos
quase se encontram e se apaixonam. As imagens deles brincando e olhando um para
o outro de cabeça para baixo com um oceano de nuvens intrincado entre eles é
algo de inteiramente novo em termos de imaginário cinematográfico – embora
muitas sequências de “Upside Down” façam lembrar o filme “A Origem” (Inception,
2010).
Um
amor proibido que é logo descoberto: atiradores acertam a corda que fazia Eve
descer, fazendo-a cair de volta para o seu mundo. Ela cai e perde a consciência
e a memória daqueles momentos felizes. Mais tarde, Adam já adulto revê seu amor
de infância na TV participando de quiz show: ela agora é designer gráfico da Transworld-Publicidade,
uma divisão da corporação Transworld. Adam fará de tudo para reencontrá-la e
reviver o amor perdido e proibido da infância.
O mito da Queda de Sophia
O
roteiro de “Upside Down” faz uma interessante aproximação simbólica entre o
mito da Queda e a lei da gravidade na Física. Em postagem anterior discutíamos
a aproximação entre a Filosofia e as contradições da Física (veja links abaixo):
entre atomismo versus monismo e livre-arbítrio versus necessidade. O princípio
unificador universal das leis gravitacionais na física newtoniana (que confina
e organiza o movimento inercial das partículas independentes) corresponderia ao
conflito entre liberdade e necessidade na Filosofia.
O
amor entre Adam e Eve (liberdade) terá que enfrentar a necessidade das leis da
Física que não só organizam aqueles dois mundos como resultou num cosmos
injusto política e economicamente.
Embora
os nomes dos personagens (Adão e Eva) façam uma associação com o mito da Queda
abraâmico (Paraíso-desobediência-pecado-Queda), o elemento da perda da memória
de Eve após uma queda e a corporação Transworld como um demiurgo que aprisiona
e explora energia dos mundos conecta essencialmente à mitologia gnóstica da
Queda de Sophia.
A presença do Mito de Sophia no Cinema
Um dos mais importantes aeons
na mitologia gnóstica, essa personagem é explorada no cinema em três aspectos:
como aquela que decaiu sob o jugo do Demiurgo (em “Upside Down” por meio da amnésia),
como aquela que desperta no protagonista a necessidade da gnose (seu amor
despertará em Adam a necessidade de ruptura da ordem injusta) e como aquela
que, secretamente, doa seu amor e sabedoria aos homens ao contribuir com
importantes padrões arquetípicos à Criação – evitando criar um spoiler, Eve dará uma contribuição final
à revolução dos dois mundos.
Dentro das narrativas gnósticas, a história de Sophia é a história de um
exílio que tem a ver com a própria Criação.
Tendo residido nas elevadas alturas da Plenitude (Pleroma), ela deixou
sua morada e decaiu nos reinos do caos e da alienação. Tendo ficada afastada da
Luz do Pai Primordial, a viu refletida na profundeza do Abismo. À distância,
pensou que fosse a Luz primordial do Pai. Para lá viajou, afastando-se cada vez
mais nas profundezas até que foi finalmente interceptada pelo Limite (Horos).
A partir desse ponto ocorre uma profunda divisão na natureza de Sophia
que corresponderá, a um importante arquétipo da personalidade humana, bastante
explorada no tema da busca da gnose pelos protagonistas dos filmes gnósticos: Seu
ser superior, seu núcleo essencial, tornou-se iluminado e ascendeu misticamente
de volta à Plenitude, enquanto o seu ser inferior permanece na alienação. Assim
como Sophia, estamos divididos em dois: a nossa personalidade humana habita na
confusão e alienação, enquanto o nosso ser eterno partilha do todo e da
sabedoria.
Distante das suas origens e isolada, produz também uma forma híbrida de
consciência: o Demiurgo. Esse verdadeiro filho bastardo de Sophia começa a
construir o seu reino, formado por sete esferas, presidido, cada um deles, por
um Arconte do Tempo, regendo o destino e ajudando a aprisionar os espíritos. A individualidade
inferior de Sophia ajuda, secretamente, a Luz que está presente no mundo,
organizando e animando a criação corrompida das esferas materiais. Tenta, por
diversas formas, lembrar ao homem que, por mais tênue que seja, existe o
vínculo místico da fagulha de luz interior com a Plenitude original.
Em “Upside
Down” Eve perdeu a memória dos felizes momentos de união com sua “alma gêmea”
após a queda no seu mundo. Do passado ficaram na sua mente estranhos sonhos e
pesadelos que a faz sentir que algo está faltando, sem saber o que. Ao mesmo
tempo ela é “prisioneira” na torre da Transworld trabalhando em designer
gráfico da Transworld-Publicidade, estratégia fundamental para a reprodução do
sistema: a lavagem cerebral ideológica.
Seu
estado de divisão e alienação é o que moverá Adam a enfrentar a lei da
gravidade e ir buscá-la em seu mundo invertido e sem fazer aqui um spoiler, Eve, tal qual o mito de Sophia,
trará em seu corpo a fagulha de luz para animar e organizar um cosmos
corrompido.
É
claro que talvez esse tipo de análise soe para muitos leitores como algo arbitrário:
mas será que o diretor sabia disso quando escreveu o roteiro? O ponto não é
esse. Certamente o diretor não é gnóstico e jamais leu o apócrifo “Pistis
Sophia” para inspirar o argumento.
Filmes
como “Upside Down” apenas comprovariam uma tese que sustenta o blog “Cinema
Secreto: Cinegnose”: a de que a subjetividade contemporânea, caracterizada por
sentimentos como alienação, estranhamento, mal estar e exílio (decorrentes das
mazelas de uma sociedade inautêntica), encontraria sua expressão em
protagonistas e narrativas que dão uma nova roupagem a antigos arquétipos, como
esse da Queda. E as mitologias gnósticas parecem ser aquelas que melhor
expressam esses antigos arquétipos na atual indústria de entretenimento.
Ficha Técnica
Título: Upside Down
Dietor: Juan Diego Solanas
Roteiro: Juan Diego Solanas e
Santiago Amigorena
Elenco: Kirsten Dunst, Jim Sturguess, James
Kidnie
Produção: Jouror Productions, Onyx Films,
Studio 37
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
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Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>