domingo, janeiro 20, 2013

A mitologia da Queda é renovada em "Upside Down"

Ao mesclar ficção científica com romance, “Upside Down” (uma co-produção Canadá/França dirigida pelo argentino Juan Diego Solanas) dá nova roupagem aos mitos da Queda, tão antigos quanto a humanidade: relatos míticos que tentam relacionar a dor e sofrimento à queda da humanidade de um estado de pureza e inocência. Em um engenhoso roteiro, Solanas constrói uma versão literal da Queda ao criar um universo onde a Lei da Gravidade ao mesmo tempo une e separa dois planetas que não possuem céu ou horizontes, mas apenas a versão invertida da sua própria sociedade: o opulento mundo “de cima” que sempre faz lembrar a pobreza do mundo “de baixo”. Mas um amor proibido desafiará a gigantesca corporação que mantém essa ordem através da exploração da energia e dos meios de comunicação.

Os mitos da Queda são tão antigos quanto a história humana.  Das tradições das religiões abraâmicas (que se referem a um estado de transição humana da inocência e obediência a Deus para um estado de culpa e pecado) às heresias gnósticas (a Queda como uma catástrofe de dimensão cósmica da qual o homem tenta se libertar), são relatos que tentam explicar a origem de tanta dor e sofrimento humanos que teria iniciado em algum momento posterior a Criação.

A esse mito associa-se o de uma “Era Dourada” derivada da mitologia grega e de diversas lendas que via o início da humanidade como um estado ideal quando o gênero humano era puro e imortal. Isso criou o arquétipo do “mito das origens” presente em obras como a do filósofo francês Rosseau que vai, por exemplo, influenciar teorias psicopedagógicas: a infância como um momento de feliz  espontaneidade e pureza que será perdida na entrada da fase adulta.

Pois o filme “Upside Down”, uma coprodução Canadá/França dirigido pelo argentino Juan Diego Solanas, vai não só se inspirar nessas fontes míticas como também vai dar uma nova roupagem, dessa vez literal a essa “Queda” – associá-la às leis gravitacionais através de um engenhoso roteiro que parte das seguintes premissas:


a) Há muito tempo atrás dois planetas se aproximaram tanto que quase se tocaram, de tal maneira que os habitantes de um planeta conseguem ver a superfície do outro planeta com seus habitantes, prédios, montanhas e nuvens. São planetas gêmeos que juntos gravitam em torno do Sol;
b) Cada planeta tem suas próprias leis gravitacionais: toda matéria é puxada pela força da gravidade do mundo a que pertence e não do outro;
c) Um objeto pesado pode ser transportado usando a matéria do mundo oposto. É o que se chama “matéria invertida” que se transforma em uma preciosa fonte de energia;
d) A matéria em contato com matéria invertida queima após algumas horas;

Dessas leis físicas surgiram mundos desiguais baseados na exploração e dominação: o planeta “de cima” é controlado por uma espécie de utopia corporativa que produz riqueza e bem estar para seus habitantes, enquanto o planeta “de baixo” vive em um ambiente distópico de pobreza e crise energética. O planeta “de cima” explora o petróleo barato do mundo inferior para depois revendê-lo a preço exorbitante enquanto, para sobreviver, os “de baixo” traficam matéria invertida para aquecer clandestinamente suas casas.

É terminantemente proibido haver comunicação das pessoas entre os mundos sob risco de morte sob um pesado esquema de vigilância e controle. A única exceção é no interior de uma torre que faz o ponto de contato entre os planetas de uma corporação chamada Transworld onde em gigantescos escritórios invertidos funcionários de ambos os mundos gerenciam o sistema político e econômico e criam programas de TV para controle ideológico principalmente do mundo “de baixo”, fonte de mão de obra e energia baratas.

Mas um amor que surge na infância entre habitantes dos mundos opostos desafiará as leis gravitacionais que regem aquela ordem injusta. Aqui a ficção científica se encontrará com o romance. Adam (Jim Sturguess) e Eve (Kirsten Dunst) se conhecem em uma infância idílica: ambos vão a uma região montanhosa cujos picos quase se encontram e se apaixonam. As imagens deles brincando e olhando um para o outro de cabeça para baixo com um oceano de nuvens intrincado entre eles é algo de inteiramente novo em termos de imaginário cinematográfico – embora muitas sequências de “Upside Down” façam lembrar o filme “A Origem” (Inception, 2010).

Um amor proibido que é logo descoberto: atiradores acertam a corda que fazia Eve descer, fazendo-a cair de volta para o seu mundo. Ela cai e perde a consciência e a memória daqueles momentos felizes. Mais tarde, Adam já adulto revê seu amor de infância na TV participando de quiz show: ela agora é designer gráfico da Transworld-Publicidade, uma divisão da corporação Transworld. Adam fará de tudo para reencontrá-la e reviver o amor perdido e proibido da infância.

O mito da Queda de Sophia


O roteiro de “Upside Down” faz uma interessante aproximação simbólica entre o mito da Queda e a lei da gravidade na Física. Em postagem anterior discutíamos a aproximação entre a Filosofia e as contradições da Física (veja links abaixo): entre atomismo versus monismo e livre-arbítrio versus necessidade. O princípio unificador universal das leis gravitacionais na física newtoniana (que confina e organiza o movimento inercial das partículas independentes) corresponderia ao conflito entre liberdade e necessidade na Filosofia.

O amor entre Adam e Eve (liberdade) terá que enfrentar a necessidade das leis da Física que não só organizam aqueles dois mundos como resultou num cosmos injusto política e economicamente.

Embora os nomes dos personagens (Adão e Eva) façam uma associação com o mito da Queda abraâmico (Paraíso-desobediência-pecado-Queda), o elemento da perda da memória de Eve após uma queda e a corporação Transworld como um demiurgo que aprisiona e explora energia dos mundos conecta essencialmente à mitologia gnóstica da Queda de Sophia.

A presença do Mito de Sophia no Cinema


Um dos mais importantes aeons na mitologia gnóstica, essa personagem é explorada no cinema em três aspectos: como aquela que decaiu sob o jugo do Demiurgo (em “Upside Down” por meio da amnésia), como aquela que desperta no protagonista a necessidade da gnose (seu amor despertará em Adam a necessidade de ruptura da ordem injusta) e como aquela que, secretamente, doa seu amor e sabedoria aos homens ao contribuir com importantes padrões arquetípicos à Criação – evitando criar um spoiler, Eve dará uma contribuição final à revolução dos dois mundos.

Dentro das narrativas gnósticas, a história de Sophia é a história de um exílio que tem a ver com a própria Criação.

Tendo residido nas elevadas alturas da Plenitude (Pleroma), ela deixou sua morada e decaiu nos reinos do caos e da alienação. Tendo ficada afastada da Luz do Pai Primordial, a viu refletida na profundeza do Abismo. À distância, pensou que fosse a Luz primordial do Pai. Para lá viajou, afastando-se cada vez mais nas profundezas até que foi finalmente interceptada pelo Limite (Horos).

A partir desse ponto ocorre uma profunda divisão na natureza de Sophia que corresponderá, a um importante arquétipo da personalidade humana, bastante explorada no tema da busca da gnose pelos protagonistas dos filmes gnósticos: Seu ser superior, seu núcleo essencial, tornou-se iluminado e ascendeu misticamente de volta à Plenitude, enquanto o seu ser inferior permanece na alienação. Assim como Sophia, estamos divididos em dois: a nossa personalidade humana habita na confusão e alienação, enquanto o nosso ser eterno partilha do todo e da sabedoria.

Distante das suas origens e isolada, produz também uma forma híbrida de consciência: o Demiurgo. Esse verdadeiro filho bastardo de Sophia começa a construir o seu reino, formado por sete esferas, presidido, cada um deles, por um Arconte do Tempo, regendo o destino e ajudando a aprisionar os espíritos. A individualidade inferior de Sophia ajuda, secretamente, a Luz que está presente no mundo, organizando e animando a criação corrompida das esferas materiais. Tenta, por diversas formas, lembrar ao homem que, por mais tênue que seja, existe o vínculo místico da fagulha de luz interior com a Plenitude original.

Em “Upside Down” Eve perdeu a memória dos felizes momentos de união com sua “alma gêmea” após a queda no seu mundo. Do passado ficaram na sua mente estranhos sonhos e pesadelos que a faz sentir que algo está faltando, sem saber o que. Ao mesmo tempo ela é “prisioneira” na torre da Transworld trabalhando em designer gráfico da Transworld-Publicidade, estratégia fundamental para a reprodução do sistema: a lavagem cerebral ideológica.

Seu estado de divisão e alienação é o que moverá Adam a enfrentar a lei da gravidade e ir buscá-la em seu mundo invertido e sem fazer aqui um spoiler, Eve, tal qual o mito de Sophia, trará em seu corpo a fagulha de luz para animar e organizar um cosmos corrompido.

É claro que talvez esse tipo de análise soe para muitos leitores como algo arbitrário: mas será que o diretor sabia disso quando escreveu o roteiro? O ponto não é esse. Certamente o diretor não é gnóstico e jamais leu o apócrifo “Pistis Sophia” para inspirar o argumento.

Filmes como “Upside Down” apenas comprovariam uma tese que sustenta o blog “Cinema Secreto: Cinegnose”: a de que a subjetividade contemporânea, caracterizada por sentimentos como alienação, estranhamento, mal estar e exílio (decorrentes das mazelas de uma sociedade inautêntica), encontraria sua expressão em protagonistas e narrativas que dão uma nova roupagem a antigos arquétipos, como esse da Queda. E as mitologias gnósticas parecem ser aquelas que melhor expressam esses antigos arquétipos na atual indústria de entretenimento.  

Ficha Técnica

  • Título: Upside Down
  • Dietor: Juan Diego Solanas
  • Roteiro: Juan Diego Solanas e Santiago Amigorena
  • Elenco: Kirsten Dunst, Jim Sturguess, James Kidnie
  • Produção: Jouror Productions, Onyx Films, Studio 37
  • Distribuição: Millennium Entertainment
  • Ano: 2012
  • País: Canadá/França




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