quarta-feira, agosto 01, 2012

A "materialidade" das produções midiáticas (parte 1): rupturas tecnológicas

Imagine um álbum ao vivo da banda Led Zeppellin como o “The Song Remains the Same” de 1973. O conteúdo (um show no Madson Square Garden, Nova York) foi imortalizado por diversas mídias sucessivas ao longo das décadas: vinil, fita cassete, VHS, CD e, finalmente, mp3. Cada uma dessas mídias criou uma “acoplagem” diferente do usuário com os dispositivos de reprodução: caixas de som, o mono e o stéreo, headphones, tubos catódicos, telas LCD etc. Poderiam essas diferentes “materialidades” das mídias moldarem a qualidade da recepção estética, ideológica ou política do conteúdo transmitido?  Sim, de acordo com a chamada “Teoria da Materialidade da Comunicação” de Gumbrecht.

Certamente uma das linhas de pesquisas atuais sobre produção midiática é a “teoria da materialidade da comunicação” desenvolvida por pesquisadores do departamento de Literatura Comparada da Stanford University. O principal articulador da Teoria das Materialidades é o alemão  Hans Ulrich Gumbrecht, ao lado de um grupo de pesquisadores europeus e norte-americanos como Jeffrey Schnapp, Niklas Luhman, Friedrich Kittler, entre outros. O termo “materialidades” no enfoque da comunicação não significa apresentar uma epistemologia absolutamente nova. Ao contrário, significa encarar, de uma maneira renovada, um aspecto bastante tradicional no fenômeno da comunicação.

Em primeiro lugar, quando se fala em “materialidades da comunicação” significa ter mente que todo ato de comunicação necessita de um suporte material para efetivar-se. Falar de “materialidades” a partir deste aspecto (significantes, suportes, meios etc.) parece tocar num aspecto tão óbvio ou já assentado no campo das discussões teóricas que nem parece ser digna de menção. Porém, esta aparente naturalidade parece ocultar aspectos decisivos: em que aspecto as diferentes mídias ou suportes (ou, então, canais) de comunicação alteram o regime de produção e troca de idéias? As mídias não podem ser consideradas apenas como diferentes sistemas de signos através dos quais os significados são transmitidos, de uma forma neutra e isenta de qualquer interferência. Cada mídia e dotada de uma ambivalência fundamental: por um lado transmite conteúdos e, ao mesmo tempo, altera o regime de produção e recepção e interfere nos próprios processos de recepção sentido das mensagens.


Uma história descritiva das mídias deve deixar de lado qualquer pretensão de buscar sentido no interior do texto, mas deve contentar em descrever as condições históricas e materiais que os textos se originam. Em outras palavras, o que interessa na comunicação é menos a troca de significados ou de idéias sobre algo e muito mais “uma performance posta em movimento por meio de vários significantes materializados (...) as potencialidades e pressões de estilização que reside em técnicas, tecnologias, materiais, procedimentos e meios.”[1]

Este vinil tornou-se CD, fita-cassete e mp3:
as diferentesmídias alteram a recepção estética da música?
Um mesmo conteúdo (suponhamos, um show ao vivo da banda Led Zeppelin) reproduzido e ouvido por sucessivas mídias diferentes em épocas distintas (disco de vinil nos anos 70, o CD no anos 80 e o toca mp3 nos anos 90) certamente produzirá diferentes performances: as diferentes formas de “acoplagem” do usuário com os sucessivos suportes produzirão distintos regimes de produção de sentido. Ouvir o disco de vinil em um aparelho três em um em um toca-discos portátil, ou um CD no aparelho de som do carro ou, então, ouvir um arquivo digital em um toca mp3 portátil criarão diferentes experiências estéticas ou sensoriais com significados ideológicos ou até políticos variados de um mesmo conteúdo que se mantém idêntico ao longo do tempo.

É impossível deixar de perceber aqui a marca do pensamento de  McLuhan, sua conhecida hipótese de que “o meio é a mensagem”, ou seja,  o meio, geralmente pensado como simples canal de passagem do conteúdo comunicativo, mero veículo de transmissão da mensagem, é um elemento determinante da comunicação. A interação entre os sujeitos e tecnologias que desenvolvem constitui a mensagem mais importante do ato da comunicação.

Paradoxalmente, a teoria da materialidade da comunicação surge em um momento de ruptura dos paradigmas tecnológicos modernos, diante de um ambiente cultural e material marcado pela dissolução das antigas “materialidades” como as noções de suporte, referência, tempo e totalidade. Como veremos adiante, as tecnologias pós-modernas rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência tecnológica computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da tecnologia como extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a tecnologia virtualiza o humano. O resultante é um mundo viscoso, menos estruturado, flutuante que Gumbrecht sintetiza em três palavras-chave: destemporalização, destotalização e desreferencialização.

Na primeira noção temos a ruptura com a temporalidade moderna marcada por um fluxo constante que caminha do passado em direção ao futuro. No lugar predomina o eterno presente, um presente infindável onde se experimentam intensidades pontuais, fragmentárias que não se acumulam ao ponto de constituir uma totalização. Temos, dessa maneira, a segunda noção: a desistência das pretensões de universalização de conceitos ou sistemas de pensamento. Por fim, a idéia de desreferencialização, a perda progressiva das certezas oferecidas pelos sistemas de representação ou da própria certeza da existência de um mundo objetivo externo à linguagem. Como veremos as tecnologias do virtual pós-modernas não se limitam a captar ou representar a realidade, mas vão além: simulam, reconstroem e, em um estágio terminal, substituem a própria realidade por modelos computacionais.

 

A “desmaterialização” da tecnologia pós-moderna


A partir do roteiro sugerido pelo quadro comparativo abaixo, vamos procurar traçar este movimento de ruptura nos paradigmas tecnológicos que proporcionou a desmaterialização das noções modernas de suporte e referência. O quadro comparativo refere-se às sucessivas etapas da evolução histórica das tecnologias de produção de imagens. Estudar os sucessivos regimes de produção de imagens é exemplar ao perceber-se a progressiva abstração não só da tecnologia como também da própria manipulação simbólica do real. É neste movimento de alteração dos regimes de produção de imagens que poderemos perceber os processos de destemporalização, desreferencialização e destotalização tal qual, descrito por Gumbrecht, e as novas “acoplagens” e produção de sentidos inaugurados por estas novas tecnologias.


Paradigmas tecnológicos modernos

ETAPAS
SUPORTE
REFERÊNCIA
CODIFICAÇÃO
PICTÓRICO

Tela, paredes, materiais moldáveis
Modelos vivos, natureza morta, etc.
Por signos (ícones)
QUÍMICO

O negativo
A própria luz emanada de objetos e seres vivos
Por signos (índices)
MECÂNICO

Película Celulóide
A luz do mundo exterior, mas agora trabalhada pela cenografia e iluminação de estúdio (verossimilhança)
Por signos (símbolos)

Paradigmas tecnológicos pós-modernos
ETAPAS
SUPORTE
REFERÊNCIA
CODIFICAÇÃO
ELETRÔNICO

Ausência de suporte com o princípio da       "imagem sintética"
Independência relativa do mundo exterior. O primeiro veículo que não necessita da luz natural. Ele próprio já é feito de luz (raios catódicos)
Simulacros de primeira ordem
Proto-digital
VIRTUAL

Ausência de suporte, com o princípio da simulação algorítmica
Independência total do mundo referencial. Na última etapa tecnológica (telemática e infogenética), o modelo algorítmico interfere e substitui o mundo referencial
Digital
Simulacros de segunda ordem

Etapa Pictórica: 

Primeira tecnologia onde artificialmente (por uma relação de similaridade) o homem tenta captar o real: desenho, pintura, escultura, o manuscrito, a escrita. A captação do real realiza-se por meio de um suporte tangível, seja papel, paredes, tela de pintura ou algum material moldável onde se possa, por similaridade, imitar o referente. Ao mesmo tempo, as tecnologias pictóricas têm uma referência com o mundo real. As imagens são feitas a partir de modelos vivos, natureza morta ou algum modelo que pose para o artista. A codificação é por meio de signos icônicos, ou seja, signos cuja relação com o referente é por similaridade.

Etapa Química: 

Inaugurado pela invenção da técnica de revelação fotográfica de imagens por nitrato de prata pelo francês Louis Daguerre em 1835. O processo de captação de imagens através da câmera escura já era conhecido desde o Renascimento, mas a fixação da luz numa superfície sensível (o negativo) para posterior revelação por processos químicos cria uma nova fase dentro da história das tecnologias de comunicação: a fixação da imagem em um suporte e a possibilidade da reprodução em larga escala de uma imagem. Neste regime de produção de imagens novamente está presente a noção de suporte e a referência com o mundo real: sem luz não há fotografia, com exceção, claro, da fotografia digital. Se não houver luz natural é necessário jogar a luz artificial sobre o objeto para fotografá-lo.  De qualquer maneira, o negativo capta e fixa a luz emitida por um objeto real existente no mundo. Por isso, a relação sígnica da fotografia com o objeto será indicial devido a relação de contigüidade entre o suporte o objeto representado.

Etapa Mecânica: 

É a invenção do cinema pelos irmãos Lumiére no final do século XIX com a descoberta da ilusão do movimento com a aceleração mecânica de fotogramas. Aqui também está presente a idéia de suporte (a película) a partir do qual os fotogramas são projetados em uma tela. Porém, alguma coisa começa a mudar no regime de produção de imagens: a referência com o mundo real começa a ficar relativa. Por um lado, o princípio da relação por contigüidade da fotografia continua sendo o princípio do cinema (sem luz refletida pelos objetos do mundo não há revelação de imagens); mas, por outro lado, as imagens começam a ser construídas artificialmente com a descoberta da cenografia, da manipulação da luz nos estúdios e a descoberta do poder simbólico da edição, da montagem e dos planos de câmeras. Com a cenografia mundos distantes podem ser reconstruídos em estúdios, assim como a edição, a montagem e os enquadramentos de câmeras (travelling, close-up, planos gerais etc.) podem criar tensão, suspense, relaxamento ou reflexão no espectador, independente do que a imagem captada em si queria significar. 

O cinema descobre o poder da retórica das imagens, criando uma desconexão relativa com os referentes reais. O próprio dispositivo cinematográfico com a aceleração mecânica de fotogramas baseia-se numa ilusão subliminar de movimento, cria o movimento a partir de uma ilusão ótica: a fixação das imagens no fundo das nossas retinas. Ou seja, o dispositivo cinematográfico vai preparar o terreno para a quebra do paradigma moderno da produção das imagens: das imagens que representam para as imagens que simulam presenças, imagens que não representam a realidade, mas efeitos de realidade. No cinema está o potencial que será plenamente explorado mais tarde pelas tecnologias eletrônicas e digitais pós-modernas.

Em síntese, o paradigma tecnológico Moderno na produção de imagens se caracteriza pela presença do suporte e pela relação com o mundo real, seja por contigüidade ou similaridade. Por terem uma relação sígnica com o mundo (seja indicial, icônica ou simbólica) ainda estão sob o domínio semiótico da representação, embora o cinema já prepare o terreno para a simulação que dominará o paradigma pós-moderno.


Etapa Eletrônica: 

Aqui ocorre a ruptura com o paradigma Moderno. A presença do suporte já não está mais presente com o dispositivo de transmissão televisiva que produz uma imagem sintética, catódica no tubo de imagem. O que vemos no tubo de imagem é uma imagem recuperada, sintetizada, ou seja, uma imagem reconstituída a partir de uma série de transposições: impulso elétrico modulado que sai da câmera no estúdio que se converte em ondas eletromagnéticas que viajam pela atmosfera até ser captada pela antena que reverte em impulsos elétricos; por sua vez, ao chegar ao canhão do tubo de imagens, transforma-se em raios catódicos que bombardeiam os pixels que formarão a imagem na parede interna do tubo. Temos aqui a formação de uma imagem efêmera, composta por elétrons. Se puxarmos o plugue da tomada a imagem desaparecerá para sempre, a não ser que a salvemos no suporte de uma tecnologia “modernista”: no óxido de ferro da fita de vídeo, por exemplo.

Aqui ainda temos a produção de uma imagem final (no tubo de imagens) a partir de uma imagem originalmente produzida de forma “modernista”, analógica no estúdio com uma tradicional câmera escura. Se a imagem inicial parte de um referencial real, da própria luz do objeto captada pela câmera escura, a imagem final será uma imagem sintetizada: a imagem formada no tubo de imagem é a recuperação com o mínimo necessário de informações (525 linhas) da imagem original para ser reconhecida como tal pelo telespectador. 

Ou seja, temos uma imagem de baixa definição em relação ao original formada dentro da câmera escura. Por outro lado, temos, pela primeira vez, uma imagem que não é mais dependente da luz do objeto referencial: a própria imagem já é, ela própria, constituída por luz: os elétrons Por isso a imagem televisiva mostrará cores mais vivas e saturadas que a da própria realidade, mais brilho; as câmeras modernas podem compensar a ausência de luz em um ambiente televisado. O resultado final é um simulacro da imagem original: por um lado ela é sintetizada (ou seja, reduzida a um mínimo de informações necessárias para ter a sua gestalt reconhecida) e, por outro, é mais brilhante, colorida e limpa que a própria realidade.

Filosoficamente, temos aqui um momento importante que marcará o paradigma pós-moderno: a imagem não representa mais o real, mas o supera. Na etapa eletrônica temos a criação dos simulacros de primeira ordem. A codificação da imagem por signos é substituída pelos simulacros. E o que são os simulacros? 

Como veremos mais detalhadamente adiante, enquanto no mundo dos signos as imagens procuram captar ou representar o real, no mundo dos simulacros temos um movimento onde os signos passam a copiar outros signos ou imagens já produzidas, onde essas imagens, verdadeiras cópias da cópia, passam a se caracterizar por um desvio em relação ao real: saturação, exagero, estilização, síntese. 

No caso da TV temos uma imagem que é a cópia de outra imagem anteriormente já produzida (na câmera do estúdio). São os simulacros de primeira ordem: uma primeira cópia de um signo original. Esse novo processo tecnológico inspirou artistas plásticos como Andy Warhol ao criar a chamada Pop Art. Vejamos este pôster chamado Marilyn Monroe. Marilyn jamais posou para Warhol. O artista pegou imagens anteriormente captadas por fotógrafos e já apresentadas no cinema, jornais e revistas e, através da técnica de silk screen, começou a fazer cópias repetidas, saturando ou solarizando traços e cores, produzindo uma Marilyn simulacro. 

Com a proliferação midiática destas imagens cópias da copia, o simulacro passa, por sua vez, a parasitar os objetos reais, a ser a sua contrafação. Com o tempo esquece-se quem foi a Marilyn Monroe real (morena, anônima) para o seu simulacro (loira, glamourosa, com sex-appeal) substituir a Marilyn original. Será o momento dos simulacros de segunda ordem: a contrafação do real substitui o próprio real, signos já sem nenhuma referencia com o mundo referencial, os simulacros perfeitos, a hiper-realidade. Estes simulacros de segunda ordem encontraremos na etapa virtual das tecnologias.


Etapa Virtual: 

Definitivamente encerra-se o conceito de suporte e referência com o mundo real. A informática, a telemática e a infogenética são a fase terminal do desenvolvimento tecnológico onde o real é progressivamente substituído pela sua contrafação. Se não vejamos.

À primeira vista, poderíamos afirmar que o CD, o disco flexível ou o disco rígido do computador seriam suportes. Sim, podem ser considerados suportes no sentido de mídias, mas não no sentido “modernista” do termo. Isso porque o que salvamos nestas mídias não são mais traços análogos com o mundo real (traços, cores, sons etc.), mas uma transcodificação de tudo isso em algoritmos gravados magneticamente. Não temos mais como na tela de pintura, no negativo fotográfico ou na fotografia impressa onde os signos procuram por analogia (contígua ou similar) representar o real: tintas, traços de lápis, ou a própria luz estão impressos nestes suportes. Na tecnologia digital os signos sensíveis do mundo são transcodificados em bytes e algoritmos. Se virmos na tela do computador cores e formas estas nada mais são do que simulações produzidas pela memória RAM. Obedecendo a coordenadas numéricas, a memória RAM simula formas e cores, produzindo uma interface ilusória, virtual. O que é salvo nas mídias digitais nada mais é do que matrizes numéricas ou simbólicas e não signos sensíveis do mundo.

Vejamos o exemplo da passagem do disco de vinil analógico para o som digital em CDs. O som no disco de vinil era prensado a partir de matrizes de registros analógicos de sons gravados. Pela natureza analógica do registro sonoro (a relação indicial do som com o suporte, ou seja, o “peso” das ondas sonoras é gravado numa superfície moldável, assim como pegadas na areia) o som armazenado no suporte é rico, denso, profundo e volumoso, ou seja, carregado de signos sensíveis do mundo sonoro. Não há, aqui, uma transcodificação mas uma representação indicial ou sensível do som, ou seja, por analogia o registro sonoro procura imitar as ondas sonoras. 

Ao contrário, na tecnologia digital esta gravação analógica é sintetizada, não há imitação mas uma transcodificação: reduz a riqueza analógica ao mínimo necessário de informações que, depois, serão transcodificadas em bytes, ou seja, signos fragmentados e desconectados do mundo sensível. Por exemplo, subgraves perdem-se nessa transcodificação numérica; A imposição de uma resposta de freqüência limitada (apenas até 12.000 Hertz) traz como conseqüência a podadura dos harmônicos mais elevados dos tons médios e altos. Portanto as únicas vantagens nesse processo de transcodificação do sensível e analógico para o numérico são de ordem econômica: compactação da informação, redução do tamanho do produto e facilidade de estocagem e transporte. Neste sentido, desaparece o conceito de suporte, ou seja, termina a ambição modernista de representar em um suporte elementos sensíveis do mundo. Temos na tecnologia pós-moderna uma simulação do referencial por meio de matrizes numéricas.

Como conseqüência, a etapa virtual da simulação algorítmica rompe o liame com o mundo não apenas sensível, mas com o próprio objeto representado. Uma fotografia pode ser escaneada ou digitalizada. A partir daí, a imagem, formada digitalmente por uma seqüência de números e símbolos, pode ser livremente manipulada resultando em algo que vai além do referente: o hiper-real. Imagens podem ser retocadas, fotos de dia podem ser tornar noturnas em softwares como o Photoshop, corpos de modelos podem ser reconstruídos a partir de fragmentos de outras fotos anteriormente digitalizadas. É a independência total em relação ao mundo referencial. 

Ou seja, se na etapa eletrônica ainda tínhamos uma produção de imagens que tomava como ponto de partida uma imagem analogicamente produzida (embora o resultado final fosse a imagem hiper-real eletrônica no tubo de imagens, as possibilidades de manipulação e simulação ainda esbarravam em limites dados pela própria existência de um objeto referencial), na etapa virtual o modelo simulado rompe todos os limites físicos.

Filosoficamente as conseqüências são incalculáveis. Estes simulacros de segunda ordem, contrafações que parasitavam os objetos reais, podem atingir uma etapa mais elevada e perigosa: a própria substituição do objeto real pelo seu simulacro. Pessoas começam a tomar o real não a partir dele mesmo mas a partir das suas simulações. Mulheres se matam em dietas insanas ou seqüências intermináveis e torturantes de intervenções estéticas e cirúrgicas para tentar alcançar o corpo digital midiático. Ou, então, na infogenética ou clonagem onde o DNA humano pode ser sequencializado digitalmente para potencialmente, a partir daí, criar matrizes supostamente perfeitas para serem realizadas cópias. Ou seja, o modelo algorítmico não apenas simula o mundo mas poderá substituí-lo a partir de copias que interferirão no real.

Esta ruptura com o paradigma tecnológico moderno vai alterar progressivamente a nossa própria estrutura de percepção cotidiana: tomar o real não a partir dele mesmo mas a partir do seu simulacro. Em uma feira livre chegamos a uma barraca de frutas e vemos uma linda maçã vermelha, brilhante e suculenta. Tão perfeita que não nos conformamos de ser real. “Que maçã linda. Parece até de plástico!” E temos a necessidade de tocá-la para nos certificarmos da sua existência. É a inversão perceptiva pós-moderna. Não percebemos que é o plástico que imita a perfeição da natureza, mas invertemos os referenciais: parece que é a maçã real que imita a sua cópia de plástico. A esta inversão os estudiosos pós-modernos chamam de hiper-realidade.

O hiper-realismo de Las Vegas
Da alteração da estrutura perceptiva dos indivíduos chegamos ao momento em que a própria realidade tangível é alterada ou substituída pelos simulacros. É como se os simulacros tomassem forma material e substituíssem progressivamente a realidade. Este movimento pode ser detectado historicamente com o surgimento da primeira cidade pós-moderna: Las Vegas. Ela pode ser considerada o ponto inaugural do pós-modernismo por vários motivos: primeiro por ter sido uma cidade que não surgiu a partir de atividades produtivas tangíveis ou concretas (comércio e indústria), mas a partir de uma estrutura de serviços que vende mercadorias abstratas, qual sejam, sonhos, ilusões, prazeres, desejos etc. 

Mas, o principal, é que foi uma cidade cujo visual inaugural da imagerie americana foi inspirado no brilho catódico da tela de TV. A profusão estonteante de letreiros luminosos, néons fazem da cidade não um objeto arquitetônico mas cenográfico. À noite ela brilha como uma tela de TV para, de dia, retornar ao deserto. Ou seja, uma construção real inspirada na imagem. Se as tecnologias modernas esforçavam-se em capturar ou representar o real da maneira mais fiel possível, agora no pós-moderno temos a inversão absoluta: as imagens não representam mais o real mas, agora, o próprio real anseia em representar a imagem.

Disneylândia pode ser considerada a segunda cidade pós-moderna na história. Cidade inaugural por criar o conceito de parque temático, essência do hiper-realismo pós-moderno. Nos anos 50 Walt Disney teve um sonho que, para muitos ainda dentro da mentalidade modernista, era uma loucura: trazer para a realidade Mickey, Pato Donald e toda a sua galeria de personagens dos desenhos animados. Mais que isso, Disneylândia e, mais tarde, Epcot Center na Flórida procuram ser a síntese de todas as nacionalidades, etnias e países. Povoados suíços, polinésios, mundos do futuro e do passado, castelos medievais, etc. Ao contrário dos museus que ainda procuram fazer acreditar que o quê se vê reproduz exatamente a realidade, aqui temos a inversão hiper-realista do parque temático. O que se vê não são representações ou estilizações a partir de referentes reais, mas cópias de cópias, ou seja, cópias de imagens midiáticas. Por exemplo, o castelo da Bela Adormecida não foi construído a partir do modelo dos antigos castelos medievais mas a partir das imagens já anteriormente estilizadas pela mídia.

O hiper-realismo do parque temático passa a ser o próprio paradigma das cidades pós-modernas onde arquitetura e cenografia, realidade e ficção, representação e estilização misturam-se. Vejamos o caso da cidade turística de Campos de Jordão em São Paulo. Diferente da sua parte central (o bairro de Abernéssia) composto por construções antigas que datam do início da edificação da cidade, o bairro de Capivari é um verdadeiro shopping center a céu aberto. As fechadas são representações tão exageradamente perfeitas de vilas suíças ou alemãs que temos a sensação de estarmos num filme publicitário sobre chocolate. São vilas hiper-reais: não representações realistas das vilas reais européias, mas cópias de cópias, ou seja, cenografias montadas a partir de modelos midiáticos publicitários.



[1] GUMBRECHT, Hans U. & PFEIFFER, Karl L, Materialities of  Communication. Stanford: Stanford University Press, 1994, p.6.

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