Imagine um álbum ao vivo da banda Led Zeppellin
como o “The Song Remains the Same” de 1973. O conteúdo (um show no
Madson Square Garden, Nova York) foi imortalizado por diversas mídias sucessivas
ao longo das décadas: vinil, fita cassete, VHS, CD e, finalmente, mp3. Cada uma
dessas mídias criou uma “acoplagem” diferente do usuário com os dispositivos de
reprodução: caixas de som, o mono e o stéreo, headphones, tubos catódicos,
telas LCD etc. Poderiam essas diferentes “materialidades” das mídias moldarem a qualidade da recepção estética, ideológica ou política do conteúdo transmitido? Sim, de acordo com a chamada “Teoria da
Materialidade da Comunicação” de Gumbrecht.
Certamente uma
das linhas de pesquisas atuais sobre produção midiática é a “teoria da
materialidade da comunicação” desenvolvida por pesquisadores do departamento de
Literatura Comparada da Stanford University. O principal articulador da Teoria
das Materialidades é o alemão Hans
Ulrich Gumbrecht, ao lado de um grupo de pesquisadores europeus e
norte-americanos como Jeffrey Schnapp, Niklas Luhman, Friedrich Kittler, entre
outros. O termo “materialidades” no enfoque da comunicação não significa
apresentar uma epistemologia absolutamente nova. Ao contrário, significa
encarar, de uma maneira renovada, um aspecto bastante tradicional no fenômeno
da comunicação.
Em primeiro
lugar, quando se fala em “materialidades da comunicação” significa ter mente
que todo ato de comunicação necessita de um suporte material para efetivar-se.
Falar de “materialidades” a partir deste aspecto (significantes, suportes,
meios etc.) parece tocar num aspecto tão óbvio ou já assentado no campo das
discussões teóricas que nem parece ser digna de menção. Porém, esta aparente
naturalidade parece ocultar aspectos decisivos: em que aspecto as diferentes
mídias ou suportes (ou, então, canais) de comunicação alteram o regime de
produção e troca de idéias? As mídias não podem ser consideradas apenas como
diferentes sistemas de signos através dos quais os significados são
transmitidos, de uma forma neutra e isenta de qualquer interferência. Cada
mídia e dotada de uma ambivalência fundamental: por um lado transmite conteúdos
e, ao mesmo tempo, altera o regime de produção e recepção e interfere nos
próprios processos de recepção sentido das mensagens.
Uma história
descritiva das mídias deve deixar de lado qualquer pretensão de buscar sentido
no interior do texto, mas deve contentar em descrever as condições históricas e
materiais que os textos se originam. Em outras palavras, o que interessa na
comunicação é menos a troca de significados ou de idéias sobre algo e muito
mais “uma performance posta em movimento por meio de vários significantes
materializados (...) as potencialidades e pressões de estilização que reside em
técnicas, tecnologias, materiais, procedimentos e meios.”[1]
Este vinil tornou-se CD, fita-cassete e mp3: as diferentesmídias alteram a recepção estética da música? |
Um mesmo conteúdo
(suponhamos, um show ao vivo da banda Led Zeppelin) reproduzido e ouvido por
sucessivas mídias diferentes em épocas distintas (disco de vinil nos anos 70, o
CD no anos 80 e o toca mp3 nos anos 90) certamente produzirá diferentes
performances: as diferentes formas de “acoplagem” do usuário com os sucessivos
suportes produzirão distintos regimes de produção de sentido. Ouvir o disco de
vinil em um aparelho três em um em um toca-discos portátil, ou um CD no
aparelho de som do carro ou, então, ouvir um arquivo digital em um toca mp3
portátil criarão diferentes experiências estéticas ou sensoriais com
significados ideológicos ou até políticos variados de um mesmo conteúdo que se
mantém idêntico ao longo do tempo.
É impossível
deixar de perceber aqui a marca do pensamento de McLuhan, sua conhecida hipótese de que “o
meio é a mensagem”, ou seja, o meio,
geralmente pensado como simples canal de passagem do conteúdo comunicativo,
mero veículo de transmissão da mensagem, é um elemento determinante da
comunicação. A interação entre os sujeitos e tecnologias que desenvolvem
constitui a mensagem mais importante do ato da comunicação.
Paradoxalmente, a
teoria da materialidade da comunicação surge em um momento de ruptura dos
paradigmas tecnológicos modernos, diante de um ambiente cultural e material
marcado pela dissolução das antigas “materialidades” como as noções de suporte,
referência, tempo e totalidade. Como veremos adiante, as tecnologias
pós-modernas rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência
tecnológica computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da
tecnologia como extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a
tecnologia virtualiza o humano. O resultante é um mundo viscoso, menos
estruturado, flutuante que Gumbrecht sintetiza em três palavras-chave:
destemporalização, destotalização e desreferencialização.
Na primeira noção temos a ruptura com a temporalidade moderna marcada
por um fluxo constante que caminha do passado em direção ao futuro. No lugar
predomina o eterno presente, um presente infindável onde se experimentam
intensidades pontuais, fragmentárias que não se acumulam ao ponto de constituir
uma totalização. Temos, dessa maneira, a segunda noção: a desistência das
pretensões de universalização de conceitos ou sistemas de pensamento. Por fim,
a idéia de desreferencialização, a perda progressiva das certezas oferecidas
pelos sistemas de representação ou da própria certeza da existência de um mundo
objetivo externo à linguagem. Como veremos as tecnologias do virtual
pós-modernas não se
limitam a captar ou representar a realidade, mas vão além: simulam, reconstroem
e, em um estágio terminal, substituem a própria realidade por modelos
computacionais.
A “desmaterialização” da tecnologia pós-moderna
A partir do roteiro sugerido
pelo quadro comparativo abaixo, vamos procurar traçar este movimento de ruptura
nos paradigmas tecnológicos que proporcionou a desmaterialização das noções
modernas de suporte e referência. O quadro comparativo refere-se às sucessivas
etapas da evolução histórica das tecnologias de produção de imagens. Estudar os
sucessivos regimes de produção de imagens é exemplar ao perceber-se a
progressiva abstração não só da tecnologia como também da própria manipulação
simbólica do real. É neste movimento de alteração dos regimes de produção de
imagens que poderemos perceber os processos de destemporalização,
desreferencialização e destotalização tal qual, descrito por Gumbrecht, e as
novas “acoplagens” e produção de sentidos inaugurados por estas novas
tecnologias.
Paradigmas tecnológicos modernos
ETAPAS
|
SUPORTE
|
REFERÊNCIA
|
CODIFICAÇÃO
|
PICTÓRICO
|
Tela, paredes, materiais moldáveis
|
Modelos vivos, natureza morta, etc.
|
Por signos (ícones)
|
QUÍMICO
|
O negativo
|
A própria luz emanada de objetos e seres vivos
|
Por signos (índices)
|
MECÂNICO
|
Película Celulóide
|
A luz do mundo exterior, mas agora trabalhada pela cenografia e
iluminação de estúdio (verossimilhança)
|
Por signos (símbolos)
|
Paradigmas tecnológicos pós-modernos
ETAPAS
|
SUPORTE
|
REFERÊNCIA
|
CODIFICAÇÃO
|
ELETRÔNICO
|
Ausência de suporte com o princípio da "imagem sintética"
|
Independência relativa do mundo exterior. O
primeiro veículo que não necessita da luz natural. Ele próprio já é feito de
luz (raios catódicos)
|
Simulacros de primeira ordem
Proto-digital
|
VIRTUAL
|
Ausência de suporte, com o
princípio da simulação algorítmica
|
Independência total do mundo
referencial. Na última etapa tecnológica (telemática e infogenética), o
modelo algorítmico interfere e substitui o mundo referencial
|
Digital
Simulacros de segunda ordem
|
Etapa Pictórica:
Primeira tecnologia onde artificialmente
(por uma relação de similaridade) o homem tenta captar o real: desenho,
pintura, escultura, o manuscrito, a escrita. A captação do real realiza-se por
meio de um suporte tangível, seja papel, paredes, tela de pintura ou algum
material moldável onde se possa, por similaridade, imitar o referente. Ao mesmo
tempo, as tecnologias pictóricas têm uma referência com o mundo real. As
imagens são feitas a partir de modelos vivos, natureza morta ou algum modelo
que pose para o artista. A codificação é por meio de signos icônicos, ou seja,
signos cuja relação com o referente é por similaridade.
Etapa Química:
Inaugurado pela invenção da técnica de
revelação fotográfica de imagens por nitrato de prata pelo francês Louis Daguerre
em 1835. O processo de captação de imagens através da câmera escura já era
conhecido desde o Renascimento, mas a fixação da luz numa superfície sensível
(o negativo) para posterior revelação por processos químicos cria uma nova fase
dentro da história das tecnologias de comunicação: a fixação da imagem em um
suporte e a possibilidade da reprodução em larga escala de uma imagem. Neste
regime de produção de imagens novamente está presente a noção de suporte e a
referência com o mundo real: sem luz não há fotografia, com exceção, claro, da
fotografia digital. Se não houver luz natural é necessário jogar a luz
artificial sobre o objeto para fotografá-lo.
De qualquer maneira, o negativo capta e fixa a luz emitida por um objeto
real existente no mundo. Por isso, a relação sígnica da fotografia com o objeto
será indicial devido a relação de contigüidade entre o suporte o objeto
representado.
Etapa Mecânica:
É a invenção do cinema pelos irmãos
Lumiére no final do século XIX com a descoberta da ilusão do movimento com a
aceleração mecânica de fotogramas. Aqui também está presente a idéia de suporte
(a película) a partir do qual os fotogramas são projetados em uma tela. Porém,
alguma coisa começa a mudar no regime de produção de imagens: a referência com
o mundo real começa a ficar relativa. Por um lado, o princípio da relação por
contigüidade da fotografia continua sendo o princípio do cinema (sem luz
refletida pelos objetos do mundo não há revelação de imagens); mas, por outro
lado, as imagens começam a ser construídas artificialmente com a descoberta da
cenografia, da manipulação da luz nos estúdios e a descoberta do poder
simbólico da edição, da montagem e dos planos de câmeras. Com a cenografia
mundos distantes podem ser reconstruídos em estúdios, assim como a edição, a
montagem e os enquadramentos de câmeras (travelling,
close-up, planos gerais etc.) podem
criar tensão, suspense, relaxamento ou reflexão no espectador, independente do
que a imagem captada em si queria significar.
O cinema descobre
o poder da retórica das imagens, criando uma desconexão relativa com os
referentes reais. O próprio dispositivo cinematográfico com a aceleração
mecânica de fotogramas baseia-se numa ilusão subliminar de movimento, cria o
movimento a partir de uma ilusão ótica: a fixação das imagens no fundo das
nossas retinas. Ou seja, o dispositivo cinematográfico vai preparar o terreno
para a quebra do paradigma moderno da produção das imagens: das imagens que representam para as imagens que simulam presenças, imagens que não representam
a realidade, mas efeitos de realidade. No cinema está o potencial que será
plenamente explorado mais tarde pelas tecnologias eletrônicas e digitais
pós-modernas.
Em síntese, o
paradigma tecnológico Moderno na produção de imagens se caracteriza pela presença
do suporte e pela relação com o mundo real, seja por contigüidade ou
similaridade. Por terem uma relação sígnica com o mundo (seja indicial, icônica
ou simbólica) ainda estão sob o domínio semiótico da representação, embora o
cinema já prepare o terreno para a simulação que dominará o paradigma
pós-moderno.
Etapa Eletrônica:
Aqui ocorre a ruptura com o paradigma
Moderno. A presença do suporte já não está mais presente com o dispositivo de
transmissão televisiva que produz uma imagem sintética, catódica no tubo de
imagem. O que vemos no tubo de imagem é uma imagem recuperada, sintetizada, ou
seja, uma imagem reconstituída a partir de uma série de transposições: impulso
elétrico modulado que sai da câmera no estúdio que se converte em ondas
eletromagnéticas que viajam pela atmosfera até ser captada pela antena que
reverte em impulsos elétricos; por sua vez, ao chegar ao canhão do tubo de
imagens, transforma-se em raios catódicos que bombardeiam os pixels que formarão a imagem na parede
interna do tubo. Temos aqui a formação de uma imagem efêmera, composta por
elétrons. Se puxarmos o plugue da
tomada a imagem desaparecerá para sempre, a não ser que a salvemos no suporte
de uma tecnologia “modernista”: no óxido de ferro da fita de vídeo, por
exemplo.
Aqui ainda temos
a produção de uma imagem final (no tubo de imagens) a partir de uma imagem
originalmente produzida de forma “modernista”, analógica no estúdio com uma
tradicional câmera escura. Se a imagem inicial parte de um referencial real, da
própria luz do objeto captada pela câmera escura, a imagem final será uma
imagem sintetizada: a imagem formada no tubo de imagem é a recuperação com o
mínimo necessário de informações (525 linhas) da imagem original para ser
reconhecida como tal pelo telespectador.
Ou seja, temos uma imagem de baixa
definição em relação ao original formada dentro da câmera escura. Por outro
lado, temos, pela primeira vez, uma imagem que não é mais dependente da luz do
objeto referencial: a própria imagem já é, ela própria, constituída por luz: os
elétrons Por isso a imagem televisiva mostrará cores mais vivas e saturadas que
a da própria realidade, mais brilho; as câmeras modernas podem compensar a
ausência de luz em um ambiente televisado. O resultado final é um simulacro da
imagem original: por um lado ela é sintetizada (ou seja, reduzida a um mínimo
de informações necessárias para ter a sua gestalt
reconhecida) e, por outro, é mais brilhante, colorida e limpa que a própria
realidade.
Filosoficamente,
temos aqui um momento importante que marcará o paradigma pós-moderno: a imagem
não representa mais o real, mas o supera. Na etapa eletrônica temos a criação
dos simulacros de primeira ordem. A codificação da imagem por signos é
substituída pelos simulacros. E o que são os simulacros?
Como veremos mais
detalhadamente adiante, enquanto no mundo dos signos as imagens procuram captar
ou representar o real, no mundo dos simulacros temos um movimento onde os
signos passam a copiar outros signos ou imagens já produzidas, onde essas
imagens, verdadeiras cópias da cópia, passam a se caracterizar por um desvio em
relação ao real: saturação, exagero, estilização, síntese.
No caso da TV temos
uma imagem que é a cópia de outra imagem anteriormente já produzida (na câmera
do estúdio). São os simulacros de primeira ordem: uma primeira cópia de um
signo original. Esse novo processo tecnológico inspirou artistas plásticos como
Andy Warhol ao criar a chamada Pop Art. Vejamos este pôster chamado Marilyn Monroe. Marilyn jamais posou
para Warhol. O artista pegou imagens anteriormente captadas por fotógrafos e já
apresentadas no cinema, jornais e revistas e, através da técnica de silk screen, começou a fazer cópias
repetidas, saturando ou solarizando traços e cores, produzindo uma Marilyn
simulacro.
Com a proliferação midiática destas imagens cópias da copia, o
simulacro passa, por sua vez, a parasitar os objetos reais, a ser a sua
contrafação. Com o tempo esquece-se quem foi a Marilyn Monroe real (morena,
anônima) para o seu simulacro (loira, glamourosa, com sex-appeal) substituir a Marilyn original. Será o momento dos
simulacros de segunda ordem: a contrafação do real substitui o próprio real,
signos já sem nenhuma referencia com o mundo referencial, os simulacros
perfeitos, a hiper-realidade. Estes simulacros de segunda ordem encontraremos
na etapa virtual das tecnologias.
Etapa Virtual:
Definitivamente encerra-se o conceito de
suporte e referência com o mundo real. A informática, a telemática e a
infogenética são a fase terminal do desenvolvimento tecnológico onde o real é
progressivamente substituído pela sua contrafação. Se não vejamos.
À primeira vista,
poderíamos afirmar que o CD, o disco flexível ou o disco rígido do computador
seriam suportes. Sim, podem ser considerados suportes no sentido de mídias, mas
não no sentido “modernista” do termo. Isso porque o que salvamos nestas mídias
não são mais traços análogos com o mundo real (traços, cores, sons etc.), mas
uma transcodificação de tudo isso em algoritmos gravados magneticamente. Não
temos mais como na tela de pintura, no negativo fotográfico ou na fotografia
impressa onde os signos procuram por analogia (contígua ou similar) representar
o real: tintas, traços de lápis, ou a própria luz estão impressos nestes
suportes. Na tecnologia digital os signos sensíveis do mundo são
transcodificados em bytes e algoritmos. Se virmos na tela do computador cores e
formas estas nada mais são do que simulações produzidas pela memória RAM.
Obedecendo a coordenadas numéricas, a memória RAM simula formas e cores,
produzindo uma interface ilusória, virtual. O que é salvo nas mídias digitais
nada mais é do que matrizes numéricas ou simbólicas e não signos sensíveis do
mundo.
Vejamos o exemplo
da passagem do disco de vinil analógico para o som digital em CDs. O som no disco de vinil
era prensado a partir de matrizes de registros analógicos de sons gravados.
Pela natureza analógica do registro sonoro (a relação indicial do som com o
suporte, ou seja, o “peso” das ondas sonoras é gravado numa superfície
moldável, assim como pegadas na areia) o som armazenado no suporte é rico,
denso, profundo e volumoso, ou seja, carregado de signos sensíveis do mundo
sonoro. Não há, aqui, uma transcodificação mas uma representação indicial ou
sensível do som, ou seja, por analogia o registro sonoro procura imitar as
ondas sonoras.
Ao contrário, na tecnologia digital esta gravação analógica é
sintetizada, não há imitação mas uma transcodificação: reduz a riqueza
analógica ao mínimo necessário de informações que, depois, serão
transcodificadas em bytes, ou seja, signos fragmentados e desconectados do
mundo sensível. Por exemplo, subgraves perdem-se nessa transcodificação
numérica; A imposição de uma resposta de freqüência limitada (apenas até 12.000
Hertz) traz como conseqüência a podadura dos harmônicos mais elevados dos tons
médios e altos. Portanto as únicas vantagens nesse processo de transcodificação
do sensível e analógico para o numérico são de ordem econômica: compactação da
informação, redução do tamanho do produto e facilidade de estocagem e transporte.
Neste sentido, desaparece o conceito de suporte, ou seja, termina a ambição
modernista de representar em um suporte elementos sensíveis do mundo. Temos na
tecnologia pós-moderna uma simulação do referencial por meio de matrizes
numéricas.
Como conseqüência,
a etapa virtual da simulação algorítmica rompe o liame com o mundo não apenas
sensível, mas com o próprio objeto representado. Uma fotografia pode ser
escaneada ou digitalizada. A partir daí, a imagem, formada digitalmente por uma
seqüência de números e símbolos, pode ser livremente manipulada resultando em
algo que vai além do referente: o hiper-real. Imagens podem ser retocadas,
fotos de dia podem ser tornar noturnas em softwares como o Photoshop, corpos de modelos podem ser reconstruídos a partir de
fragmentos de outras fotos anteriormente digitalizadas. É a independência total
em relação ao mundo referencial.
Ou seja, se na etapa eletrônica ainda tínhamos
uma produção de imagens que tomava como ponto de partida uma imagem
analogicamente produzida (embora o resultado final fosse a imagem hiper-real
eletrônica no tubo de imagens, as possibilidades de manipulação e simulação
ainda esbarravam em limites dados pela própria existência de um objeto
referencial), na etapa virtual o modelo simulado rompe todos os limites
físicos.
Filosoficamente
as conseqüências são incalculáveis. Estes simulacros de segunda ordem,
contrafações que parasitavam os objetos reais, podem atingir uma etapa mais
elevada e perigosa: a própria substituição do objeto real pelo seu simulacro.
Pessoas começam a tomar o real não a partir dele mesmo mas a partir das suas
simulações. Mulheres se matam em dietas insanas ou seqüências intermináveis e
torturantes de intervenções estéticas e cirúrgicas para tentar alcançar o corpo
digital midiático. Ou, então, na infogenética ou clonagem onde o DNA humano
pode ser sequencializado digitalmente para potencialmente, a partir daí, criar
matrizes supostamente perfeitas para serem realizadas cópias. Ou seja, o modelo
algorítmico não apenas simula o mundo mas poderá substituí-lo a partir de
copias que interferirão no real.
Esta ruptura com
o paradigma tecnológico moderno vai alterar progressivamente a nossa própria
estrutura de percepção cotidiana: tomar o real não a partir dele mesmo mas a
partir do seu simulacro. Em uma feira livre chegamos a uma barraca de frutas e
vemos uma linda maçã vermelha, brilhante e suculenta. Tão perfeita que não nos
conformamos de ser real. “Que maçã linda. Parece até de plástico!” E temos a
necessidade de tocá-la para nos certificarmos da sua existência. É a inversão
perceptiva pós-moderna. Não percebemos que é o plástico que imita a perfeição
da natureza, mas invertemos os referenciais: parece que é a maçã real que imita
a sua cópia de plástico. A esta inversão os estudiosos pós-modernos chamam de
hiper-realidade.
O hiper-realismo de Las Vegas |
Da alteração da
estrutura perceptiva dos indivíduos chegamos ao momento em que a própria
realidade tangível é alterada ou substituída pelos simulacros. É como se os
simulacros tomassem forma material e substituíssem progressivamente a
realidade. Este movimento pode ser detectado historicamente com o surgimento da
primeira cidade pós-moderna: Las Vegas. Ela pode ser considerada o ponto
inaugural do pós-modernismo por vários motivos: primeiro por ter sido uma cidade
que não surgiu a partir de atividades produtivas tangíveis ou concretas
(comércio e indústria), mas a partir de uma estrutura de serviços que vende
mercadorias abstratas, qual sejam, sonhos, ilusões, prazeres, desejos etc.
Mas,
o principal, é que foi uma cidade cujo visual inaugural da imagerie americana foi inspirado no brilho catódico da tela de TV.
A profusão estonteante de letreiros luminosos, néons fazem da cidade não um
objeto arquitetônico mas cenográfico. À noite ela brilha como uma tela de TV
para, de dia, retornar ao deserto. Ou seja, uma construção real inspirada na
imagem. Se as tecnologias modernas esforçavam-se em capturar ou representar o
real da maneira mais fiel possível, agora no pós-moderno temos a inversão
absoluta: as imagens não representam mais o real mas, agora, o próprio real
anseia em representar a imagem.
Disneylândia pode
ser considerada a segunda cidade pós-moderna na história. Cidade inaugural por
criar o conceito de parque temático, essência do hiper-realismo pós-moderno.
Nos anos 50 Walt Disney teve um sonho que, para muitos ainda dentro da
mentalidade modernista, era uma loucura: trazer para a realidade Mickey, Pato
Donald e toda a sua galeria de personagens dos desenhos animados. Mais que
isso, Disneylândia e, mais tarde, Epcot Center na Flórida procuram ser a
síntese de todas as nacionalidades, etnias e países. Povoados suíços,
polinésios, mundos do futuro e do passado, castelos medievais, etc. Ao
contrário dos museus que ainda procuram fazer acreditar que o quê se vê reproduz
exatamente a realidade, aqui temos a inversão hiper-realista do parque
temático. O que se vê não são representações ou estilizações a partir de
referentes reais, mas cópias de cópias, ou seja, cópias de imagens midiáticas.
Por exemplo, o castelo da Bela Adormecida não foi construído a partir do modelo
dos antigos castelos medievais mas a partir das imagens já anteriormente
estilizadas pela mídia.
O hiper-realismo
do parque temático passa a ser o próprio paradigma das cidades pós-modernas
onde arquitetura e cenografia, realidade e ficção, representação e estilização
misturam-se. Vejamos o caso da cidade turística de Campos de Jordão em São Paulo. Diferente
da sua parte central (o bairro de Abernéssia) composto por construções antigas
que datam do início da edificação da cidade, o bairro de Capivari é um
verdadeiro shopping center a céu
aberto. As fechadas são representações tão exageradamente perfeitas de vilas
suíças ou alemãs que temos a sensação de estarmos num filme publicitário sobre
chocolate. São vilas hiper-reais: não representações realistas das vilas reais
européias, mas cópias de cópias, ou seja, cenografias montadas a partir de
modelos midiáticos publicitários.
[1] GUMBRECHT, Hans U. & PFEIFFER,
Karl L, Materialities of Communication. Stanford:
Stanford University Press, 1994, p.6.