segunda-feira, agosto 06, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Criada nos anos 1950, a revista MAD sempre foi carregada de sátira e
crítica social. Chegou a ser investigada pelo FBI na era da Guerra Fria. Mas
parece que tudo ficou para trás: o vídeo-clip “Flammable” (paródia do clip “Firework”
da cantora pop Katy Perry) do programa “MAD TV” do canal infantil Cartoon
Network consegue ser mais conservador que o produto pop original. Para nossa
surpresa exploram a mitologia gnóstica libertária da centelha divina e da
condição humana prisioneira ao associá-la à situação de marionetes controladas
e manipuladas. Porém, as autoridades (bombeiros e policiais) nos alertam:
cuidado com o que vocês sonham. Vocês podem ser presos!
Férias com crianças em casa nos
reservam sempre surpresas. Principalmente ao acompanhar junto com elas os canais
infantis. Para minha surpresa deparei-me com o programa “Mad TV” no Cartoon
Network. Baseado na antiga revista MAD o programa humorístico de esquetes satiriza
filmes, atores e a cultura pop norte-americana.
Lia a revista Mad na minha
adolescência nos anos 1970 que, de tão bem sucedida no mercado brasileiro
naquela época, passou a fazer sátiras de novelas, mini-séries e filmes
brasileiros. Por isso, acompanhei com grande curiosidade para ver se ainda
mantinha o espírito irreverente e, principalmente, contestador e anárquico da
revista, sintonizada que estava com a contracultura e quadrinhos underground da
época.
Um dos esquetes era um
videoclip chamado “flammable” estrelado por marionetes, uma paródia do clip
“firework” da cantora norte-americana Katy Perry.O vídeo começa com uma marionete parodiando
Katy Perry ("Katy Puty") caminhando até uma varanda. Ela começa a cantar sobre como as
pessoas são deprimidas e sombrias porque se veem como marionetes feitas de
papel reciclado, sempre controladas e contidas. No entanto, ela exorta a todos
que libertem o calor e o brilho que existem dentro delas. No entanto isso acaba
sendo destrutivo porque as marionetes do clip de fato são feitas de papel e
cera e começam a pegar fogo e derreter. No final, Katy Perry é presa por um
policial e os demais personagens terminam queimados e derretidos.
O que torna interessante não só
a paródia como o próprio vídeo-clip original de Katy Perry é que utilizam uma
evidente simbologia gnóstica: a centelha divina e a gnose - conhecimento
profundo que possibilitaria o encontro da essência eterna no interior do homem pela
via do coração. Uma realidade que embora seja sempre ativa, somente pode ser
conhecida através da experiência e da vivência, jamais podendo ser assimilada
de forma abstrata ou discursiva.
A "centelha divina" e o desejo por liberdade
Em ambos os vídeos essa
centelha é representada por fogos de artifícios que saem do chakra cardíaco, na
altura do peito. E da mesma forma, ambos os vídeos iniciam com situações de
alienação e estranhamentos de seres humanos nesse mundo (tristeza e
melancolia), sendo que na paródia da Mad TV essa situação de alienação aproxima-se
muito mais do Gnosticismo ao associar a condição humana com a de marionete – a
concepção gnóstica de que somos prisioneiros no cosmos físico como a criação de
uma divindade enlouquecida (o Demiurgo) que cria dispositivos e artimanhas
(culto ao poder, ambição, hedonismo etc.) para nos deter e extrair de nós essa
centelha divina que trazemos.
Mas a diferença está no final:
enquanto no clip original Katy Perry termina como uma mensageira das boas
novas, na paródia da Mad TV ela é presa por um policial como uma espécie de
terrorista por propagar ideias que geram mortes e caos.
Vejamos a letra da música “Inflammable”
da paródia da Mad TV:
Você já se sentiu como não fosse realmente real? Apenas
uma marionete resultante de um torpe negócio Você sempre pensa que é apenas um
adereço
Uma coisa animada feita de papel reciclado Você sempre
pensou que eles ficavam com toda a glória
Quando na verdade do que eles gostam é do seu jeito
engraçado Eu tenho novidades para você, sem precisar ficar triste
Porque há um brilho em você... Você só tem que liberar o
calor, para acender a luz tão brilhante e livre
Mas tenha cuidado porque você é inflamável Feito de
argila, papel e lã
Você pode facilmente inflamar ou derreter Quando irei
aprender
A não dar mais início a incêndios Ouça o bombeiro Fique
atento aos seus sonhos Ou você vai destruir tudo
Os primeiros versos têm uma
evidente inspiração na mitologia gnóstica primeiro ao associar a condição
humana de marionete “resultante de um torpe negócio” (a prisão e manipulação no
cosmos físico) e, segundo, a possibilidade de uma saída ao liberar de dentro de
si o brilho e o calor (centelha divina por meio da gnose).
Mas todo esse ideário
emancipador é revertido num até interessante humor metalinguístico: os
protagonistas são feitos de papel reciclado e cera, altamente inflamáveis. Não
suportam tanto “calor”. Mas os versos finais terminam com uma advertência:
“fique atento aos seus sonhos, ou destruirá tudo”. Tome cuidado com os seus
sonhos, pois podem ser perigosos e as autoridades (bombeiros e policias) estão
sempre atentas. No final, a mensageira das boas novas, Katy Perry, é levada
presa por um policial.
Os sonhos de uma marionete se
libertar são frustrados pela condição ficcional (cera e papel reciclado) e pela
repressão das autoridades.
MAD: crítica e sátira social
Criada nos anos 1950, a revista
MAD sempre foi carregada de sátira e crítica social. Chegou a ser proibida pelo
governo norte-americano e investigada pelo FBI. Para MAD nada era sagrado ou
tabu e fazia questão de ridicularizar a política e a religião. Por exemplo, um
dos quadrinhos era “Spy versus Spy”, um espião todo de branco e um todo de preto
criado por Antonio Prophias. Um tentava eliminar o outro, demonstrando o
ridículo da Guerra Fria da época entre EUA e URSS.
Por isso, foi surpreendente
encontrar uma paródia tão conservadora de um vídeo-clip pop quanto da Katy
Perry. Ironicamente “Flammable” consegue ser mais conservador do que um produto
pop, uma inversão do que sempre foi no passado a revista MAD.
Ironicamente, o que é sugerido no clip “Firework” (a centelha divina
gnóstica) é explicitado na paródia ao associar a condição humana como a de
marionetes manipuladas e prisioneiras. Porém, a explicitação libertária da
mitologia gnóstica é abatida pelo clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”:
forma de fixar e abater as fantasias do público de forma ritualizada pela
indústria do entretenimento evitando que tais
necessidades sejam experimentadas em vivências reais. Sonhos, desejos, loucuras
proibidas, etc. são desenvolvidos nos produtos de massa conseguindo a
fascinação, mas vão até certo ponto.
Marcondes Filho localiza uma das
origens desta ritualização do desejo no público em antigos filmes musicais como Cantando na
Chuva (Singin' in the Rain,1952) principalmente na famosa seqüência
onde Gene Kelly canta e dança na chuva simbolizando a alegria que rompe
temporariamente com as normas sociais:
"Gene Kelly, aliás,
termina de dançar, quase se desculpando, no momento exato em que aparece um
guarda de rua: diante da lei, da ordem, da moral, é preciso retomar ao mundo. O
ponto‑limite é aquele que faz as ações convergirem para um esquema ritualizado,
isto é, fantasias emocionais do receptor (ou do espectador do cinema), que
foram excitadas, terminam num esquema convencional, outras vezes no lenga-lenga
viciado das canções populares: o esquema reconstrói a ordem e devolve o
receptor, neutralizado, ao seu mundo” (MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão: a vida pelo vídeo. São Paulo: Ática, 1988 p. 39-40)
Tempos conservadores esse
em que vivemos onde cada vez mais produtos para públicos infantis (mas com
linguagens que atrai igualmente adultos como no caso do humor metalinguístico
de “Flammable”) nos apresenta mensagens de advertências, resignação e
exortações à renúncia dos próprios sonhos e desejos (como no caso da animação “Era
do Gelo 4” analisado em postagem anterior – veja links abaixo)!
É surpreendente perceber
que se a mitologia gnóstica no passado em filmes como “Show de Truman”, “Matrix”
e “Vanilla Sky” foram exploradas de forma crítica e desafiadora, agora vemos um
produto de entretenimento que explora a simbologia gnóstica como diagnóstico de
uma realidade diante da qual devemos, afinal, nos conformar. Compare os video-clips abaixo:
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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