sábado, março 02, 2019

Cinegnose em Londrina: na guerra semiótica a esquerda descerá ao abismo para se encontrar


Desde o século passado a direita sempre esteve vários passos à frente ao lançar mão das tecnologias de ponta de cada momento. Lá atrás, nazistas usaram o rádio e o cinema. E hoje o nacionalismo de direita manipula algoritmos, inteligência artificial e mídias de convergência. Somente com uma formação interdisciplinar articulando ciências da comunicação, computação e política será possível a esquerda compreender as diferenças entre as dinâmicas de massificação e viralização, reformulando o ativismo e militância política. A esquerda terá que descer ao abismo simbólico para encontrar a si mesma. Esse foi o tema que dominou o workshop “Guerra Híbrida e Guerra Semiótica” ministrado por este editor do “Cinegnose” no último sábado (23/02) em Londrina/PR. Organizado pela Frente Ampla Pela Democracia, com apoio da Associação dos Professores do Paraná, o evento contou com auditório lotado de acadêmicos, estudantes, ativistas e sindicalistas, com muita curiosidade e entusiasmo para o debate. 
Este humilde blogueiro esteve em Londrina/PR no último sábado (23/02) para abrir a “caixa de ferramentas” de referências teóricas e práticas fornecidas pela Ciência da Comunicação para servir de instrumento de ação naquilo que este “Cinegnose” vem denominado como “guerra semiótica” – episódio brasileiro da estratégia geopolítica de guerra híbrida que a geopolítica norte-americana vem encetando em países estratégicos e sensíveis às suas ações.
Lá encontrei o lotado auditório da Associação dos Professores do Paraná e um público bem heterogêneo (de acadêmicos e estudantes a ativistas e sindicalistas) e disposto ao bom debate – quando a curiosidade pelo saber motiva a busca por ações e alternativas. Um público vivamente disposto a entender a conjuntura atual e como o papel estratégico da Comunicação nesse momento.
Se a comunicação é a criação de um acontecimento, parece que o debate em Londrina alcançou o objetivo – até agora chegam perguntas e colocações através do grupo, criado após o workshop, no WhatsApp chamado “Guerra Híbrida Semiótica”. 
“O que aconteceu?” e “O que fazer?”. Essas duas questões existenciais foram as que nortearam o debate, questões-chave desde os resultados eleitorais do ano passado que parece que ainda não terminou.

Ilusão consensual

Com todo o tempo disponível pela natureza de um workshop, este editor do “Cinegnose” começou definindo os conceitos de “bomba semiótica”, “guerra semiótica” e “guerra híbrida” e, principalmente, uma introdução à ciência da Semiótica. Principalmente a sua latente aplicação política com a noção de “signo”: se o que vemos não é a realidade, mas o signo da realidade, o que entendemos por realidade passa a ser uma “ilusão consensual”. 
Em outras palavras, o que entendemos por realidade passa a ser de natureza perceptiva. O que abre margem à existência de “engenharias” de percepções. Portanto, isso altera o que entendemos por “comunicação”: de informação ou sinalização de um conteúdo (ideologia, discursos, doutrina etc.) passa a ser a criação de acontecimentos, “bombas” que criam repercussões destinadas especificamente a alterar essa ilusão consensual.

O workshop demonstrou como os nazistas no século XX compreenderam bem essa natureza, naquilo que Walter Benjamin chamou de “esteticização da política”: líderes que emulavam personagens do cinema mudo (a “canastrice” na política), ridicularizados no começo, mas que depois se tornaram críveis graças à analogia com a ficção cinematográfica. Hoje a TV faz esse papel – como Bolsonaro foi promovido como um mito tosco em programas de humor como Pânico na TV e CQC para depois virar um personagem ficcional que invadiu a “ilusão consensual” da realidade política.

Massificação e viralização

A partir desse ponto, passamos a manhã de sábado tentando compreender a grande novidade que a guerra híbrida trouxe para a comunicação e a política: a passagem das estratégias de massificação para as dinâmicas de viralização. 
Muitos analistas ainda tomam como idênticos esses dois conceitos, como fossem regidos pelos mesmos princípios da psicologia de massas. Mas são muito diferentes, principalmente quando o workshop apresentou como a tecnologia algorítmica em Inteligência Artificial utilizado pela Cambridge Analytica e o fundo de hedge Renaissance Technologies de Robert Mercer foi decisiva para a vitória de Donald Trump e Bolsonaro – a aplicação dos algorítmicos probabilísticos da área financeira aplicada na mineração e análise de dados para comunicação política estratégica.
Enquanto a massificação implica em panfletagem, doutrinação ou disparo de discursos de forma indiscriminada para a sociedade como um todo, a viralização significa modular o discurso para perfis específicos que, sabe-se, irá compartilhar para sua rede de relações. 
Na realidade, influenciadores ou líderes de opinião já eram conhecidos desde as pesquisas empíricas de recepção de Paul Lazarsfeld nos anos 1930-40 nos EUA. A diferença é que na atualidade a tecnologia de mineração de dados potencializou essa estratégia. 


Métodos dedutivo e indutivo na política

Isso significa que no espectro político há duas maneiras bem distintas de atuação política na comunicação: enquanto a esquerda se orienta por um método dedutivo (parte de valores éticos e morais universais para tentar transformar a realidade – do universal ao particular) a direita é indutiva -  do particular para o universal, da manipulação das percepções e sensações para depois criar uma narrativa política geral.
Enquanto a esquerda se escandaliza ao ver a sociedade ir contra os valores kantianos universais de dignidade, cidadania e liberdade e tenta conscientizar as massas dessa realidade, a direita induz percepções (signos da realidade) para depois criar narrativas “universais” – conspirações comunistas, LGBTs, midiáticas etc. Não à toa que a direita se apropriou da imagem antissistema ou revolucionária que sempre esteve do lado da esquerda.
Por isso, somos capazes de ver o “filósofo” Olavo de Carvalho (guru da “alt-right” tupiniquim) usar o mesmo discurso da esquerda, mas com sinais trocados – por exemplo, denunciar o “autoritarismo dos meios de comunicação” que quer impor o “politicamente correto”, a “ditadura gay”, o “petismo”... 

O que fazer?

A partir desse ponto, o “o que fazer” tomou conta dos debates: como se contrapor ao tripé semiótico no qual se baseia a tática de guerra semiótica da direita? – apropriação (do discurso antissistema, dos símbolos nacionais com a técnica semiótica da iconificação etc.), provocação (formas de comunicação indireta para falar com a maioria silenciosa e não com o interlocutor) e polarização (usar o discurso beligerante para travar qualquer debate público racional).
Discutimos desde a necessidade de modelagem o discurso (direcionar mensagens para perfis ou líderes de opinião para conseguir efeitos virais – o que implicaria entrar na área do “ativismo cibernético”).

E também as polêmicas, por assim dizer, “baterias anti-áereas” contra as bombas semióticas da grande mídia: as táticas de guerrilhas anti-mídia – pegadinhas (“media prank”) e trolagens (“culture jamming”) com o objetivo sistemático de desmoralizar a mídia corporativa.
Principalmente quando sabemos que a mídia clássica ainda tem um importante papel, mesmo com o crescimento das mídias de convergência (smartphones, tablets etc.). Hoje a grande mídia tem um papel de agendamento da pauta e não mais de doutrinação ideológica, como no passado. Daí a importância da existência de uma sistemática ação de guerrilha midiática.
Nesse sentido, a recente trolagem criada pelo ator José de Abreu (se autoproclamando presidente do Brasil, da mesma maneira como a mídia auto empossou Juan Guaidó como presidente da Venezuela) é uma bomba semiótica perfeita. Um exemplo que a esquerda poderia replicar.


Respostas a questões levantadas nos debates no workshop:

(1) Teremos que fatalmente nos apropriarmos dessas armas (elas demandam conhecimento, grana, operadores especializadíssimos e, fundamentalmente, a Munição da Indução, a qual, a ética não tem lá tanta relevância) ou se, descobrindo e construindo Baterias Antiaéreas seria suficiente para resistirmos com danos menores?
Resposta: A direita de hoje possui o mesmo modus operandi do século XX. Se lá o nazifascismo utilizou-se das tecnologias de ponta da época, rádio e cinema, hoje se apropria da inteligência artificial que rendeu milhões para Robert Mercer no mercado financeiro – algoritmos probabilísticos que preveem tendência de ações e títulos. E agora preveem escolhas ideológicas e partidárias de determinados perfis. De alguma maneira, em algum momento, a esquerda terá que se tornar interdisciplinar: sair do campo familiar das ciências humanas e se enveredar pelo ativismo digital no campo das chamadas “ciências exatas”. 
Isso nos leva à questão ética: teremos que usar o mesmo condenável modus operandi de indução da direita? Essa é uma questão que esse humilde blogueiro não tem ainda uma resposta pronta, mas também em algum momento a esquerda terá que lutar no mesmo campo simbólico da direita. A esquerda terá que descer no abismo para encontrar a si mesma.
(2) O que explica que mesmo com o uso dessa arma poderosíssima já em ação em toda a campanha, caso não fosse impedido de disputar a eleição, Lula venceria já no primeiro turno, como indicavam todas as pesquisas a menos de um mês para a eleição?
Resposta: Isso talvez seja relativo. Como demonstrou uma reportagem do insuspeito jornal “El País” sobre os motivos que levaram João Doria Jr a ganhar votos na periferia de São Paulo, para muitos a leitura sobre Lula era meritocrática – um metalúrgico que chegou à presidência pelas vias do mérito e do trabalho, aquele que “começou de baixo”... assim como Doria Jr que chegou à prefeitura de SP... (leia “A metamorfose do eleitor petista da periferia que decidiu votar em Doria” – clique aqui). A promoção “Sebastiana” do mito Lula (como o “salvador” e “conciliador”) pode chegar a essas interpretações bizarras.
(3) Será que para termos uma perspectiva de sucesso à nossa Resistência e consequentes avanços, não é  necessário  juntarmos o aprendizado em identificarmos os disparos desses Mísseis poderosos, aprendermos a operar as Baterias Antiaéreas e, ao mesmo tempo, treinarmos nossas tropas nos quartéis de "média patente" através do resgate de Programas de Formação de Formadores? Programas já desenvolvidos há tempos atrás, com sucesso, pelas Centrais Sindicais nos Sindicatos e CPCs (Centros Populares de Cultura) nas Universidades e comunidades periféricas?
Resposta: Pergunta que faz a gente voltar à primeira questão acima: a partir do ponto em que chegamos, é urgente repensar a formação e formas de atuação política. Na verdade, desde a vitória do nazismo na Alemanha, a esquerda se tornou o cachorro-que-caiu-do-caminhão-de-mudança. Se mal compreendeu o papel do rádio e do cinema naquele contexto entre guerras, o que dirá diante das tecnologias de convergência atuais? Como disse, é necessária uma formação interdisciplinar na atuação política – Ciências da Computação e Comunicação combinadas com a Ciência Política. E muito bom humor, ironia e sagacidade com as “baterias antiaéreas” das pegadinhas e trolagens contra-midiática.
(4) Minha questão que eu gostaria que ele comentasse é a relação da semiótica no Teatro Imagem de Augusto Boal.  Lembro que uma frase que sempre repetimos nas oficinas de Teatro Imagem é que " a imagem é real enquanto imagem".
Resposta: Com o Teatro do Oprimido, Boal focava as linguagens não verbais: pensar com as imagens, sem o uso das palavras, usando o próprio corpo do ator e objetos como forma máxima de expressão. Com isso, Boal queria expandir as possibilidades de expressão do oprimido – imaginação, percepção, relacionamento etc. 
De fato, uma analogia perfeita para a expansão das táticas de ação política em torno da comunicação: não ficar apenas no campo do discurso verbal e de conscientização (método dedutivo) e se aventurar pelo campo semiótico da percepção, da iconificação e da apropriação imaginativa de todo signo, principalmente daqueles produzidos pela própria grande mídia no sentido de invertê-la.
De novo, a trolagem do ator José de Abreu: ridicularizar a autoproclamada posse de Juan Guaidó, tão levada a sério pelo jornalismo corporativo.
A todos os organizadores e participantes do workshop meu sinceros agradecimentos pela oportunidade e contribuições com novas ideias que todos trouxeram ao debate!





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segunda-feira, fevereiro 25, 2019

Série "Boneca Russa": será o Tempo um bug algorítmico ou uma lição moral?

Há na vida apenas essas certezas: de que vamos morrer, que as pessoas que amamos também irão morrer e que eventualmente nossa própria morte fará outros sofrerem. Mas a sociedade nos oferece inúmeras estratégias e ferramentas tecnológicas para esquecermos dessa amarga ontologia. Principalmente para a geração dos millennials, através do individualismo e as bolhas virtuais das redes sociais digitais. Esquecendo que o mundo é muito maior do que pensamos e que nossos atos têm consequências sobre todos que encontramos. Esse é o tema subjacente da série Netflix “Boneca Russa” (2019-): tal qual o filme clássico “O Feitiço do Tempo” (1993), Nadia fica presa em um loop temporal – a cada morte em um ciclo, acorda diante do espelho do banheiro na sua festa de 36 anos. Como explicar o mistério? Apenas um bug nas linhas algorítmicas que compõem a programação do Tempo? Ou algum tipo de lição moral que será obrigada a entender? A saída será a lembrança e a memória.

sexta-feira, fevereiro 22, 2019

Cinegnose discute em Londrina "Guerra Semiótica e Híbrida"


Por que aquilo deu nisso? Por que toda aquela energia das manifestações nas ruas brasileiras, de jovens estudantes e ativistas, que queriam mudar o País (“desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil” eram as faixas mais vistas nas manifestações) resultou num retrocesso geopolítico de deixar atônito jornalistas e pesquisadores estrangeiros? Isso é que o Workshop “Guerra Híbrida e Guerra Semiótica” tentará responder nesse sábado (23/02), em Londrina, Paraná. Este editor do Cinegnose levará elementos teóricos das ciências da comunicação que poderão ser referências para construção de ferramentas e estratégias de ação nas guerras semióticas anti-mídia. Principalmente quando sabemos que grande mídia e novas tecnologias de convergência estão por trás das atuais formas inéditas de ação geopolítica.

terça-feira, fevereiro 19, 2019

Globo adota "a boa notícia é que..." para tentar se salvar do baixo astral nacional


O telejornalismo é um dos principais produtos televisivos. Não importa se as notícias sejam boas ou ruins. No todo, o produto deve garantir uma experiência esteticamente agradável para o espectador. Em suma, ser um “infotenimento”, para atrair prestígio, anunciante e rentabilidade. Porém, a atmosfera pesada desse início de ano baixou nos telejornais: Brumadinho, jovens atletas mortos no incêndio do CT do Flamengo, notícias diárias de feminicídios, câmeras nas ruas mostrando valentões armados disparando e matando em prosaicas brigas de trânsito ou simples disputa de vaga num estacionamento e seguranças matando pobres em supermercados. Conjunções adversativas e adjuntos adverbiais já não dão mais conta de neutralizar o tsunami de tragédias e violência – amenizar as más notícias para garantir a experiência "infotenimento". Agora, repórteres da Globo repetem a expressão “a boa notícia é que...”: encontrar alguma brecha de esperança no "outro lado" das más notícias. A grande mídia perdeu o controle do próprio monstro que criou... 

domingo, fevereiro 17, 2019

Deus e o Diabo querem nossas memórias e identidades em "Coração Satânico"


Em 1987 o filme “Coração Satânico” (Angel Heart) de Alan Parker (“Pink Floyd - The Wall” e “Fama”) alcançou o mesmo impacto de “O Sexto Sentido” de Shymalan: violentas viradas narrativas que comprovam como as nossas certezas em relação à realidade podem sumir em um instante. Porém, no thriller de horror “Coração Satânico” o problema fica mais complexo quando as próprias memórias e a identidade podem nos enganar. Um detetive particular é contratado para encontrar uma pessoa desaparecida. A investigação leva a um mergulho no obscuro mundo de religiões, magia negra e vodu. Mostrando que tanto Deus como o Diabo nos iludem ao criar a impressão de que nossos cultos e rituais nos mantém sob o controle do caos em que vivemos. Filme sugerido pelo nosso leitor infatigável Felipe Resende. 

terça-feira, fevereiro 12, 2019

Avise a esquerda: luta de classes existe, e está em Brumadinho e no CT do Flamengo

Cansada de tantas derrotas nos últimos tempos, a esquerda simplesmente comemora como fosse um gol a forma como a Globo detonou a ministra Damares Alves no quadro “Detetive Virtual” no Fantástico do último domingo. Uma detonação bem seletiva: enquanto a emissora demonstra toda sua indignação e furia investigativa nas questões identitárias e de costumes (vide a caça aos abuso sexuais de João de Deus), as tragédias de Brumadinho e do incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo são encaixadas na narrativa “tragédia-emoção-homenagens” – com direito a Galvão Bueno narrando os nomes dos jovens atletas mortos... Depois de colocar Lula na prisão perpétua e por os militares no Governo, agora o novo papel da Globo é varrer a luta de classes para debaixo do tapete – cônscia de que, a partir de agora, acidentes como esses e a tensão social tenderão a crescer sob o modelo econômico de extrativismo selvagem: vender commodities módicas como ferro, manganês e jovens jogadores. Tudo a baixo custo, no limite da irresponsabilidade. Enquanto isso, sem se ater à tática semiótica de dissonância posta em ação pela parceria Governo/Globo, a esquerda reage de forma reflexa a cada bravata “politicamente incorreta” e esquece da luta de classes.

domingo, fevereiro 10, 2019

O apocalipse foi a própria Criação em "Oblivion"

Se "Matrix" (1999) foi o auge hollywoodiano do gnosticismo pop, “Oblivion” (2013) é outro filme que consegue sintetizar o mito central dos gnósticos: o apocalipse já aconteceu, e foi a própria Criação: um erro cósmico no qual nos tornamos prisioneiros da ilusão e do esquecimento. Tom Cruise é Jack, um técnico de manutenção de drones e robôs cumprindo sua última missão na Terra: conduzir os recursos naturais remanescentes de um planeta devastado para uma lua de Saturno, último refúgio humano. Mas Jack aos poucos começa a questionar os propósitos da sua missão. Principalmente quando a mulher dos seus recorrentes flashs de memória aparece na queda de uma nave.

terça-feira, fevereiro 05, 2019

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O cancelamento da Universal Pictures em exibir o filme “Boy Erased – Uma Verdade Anulada” nos cinemas brasileiros, mesmo sob a justificativa comercial de baixa perspectiva de bilheteria, acendeu a suspeita de autocensura – numa atmosfera política atual pesada e conservadora, uma produção que contesta a chamada “cura gay” não seria conveniente para a distribuidora. Mas o filme “Boy Erased” levanta outra questão tão sombria quanto a “conversão gay”: o projeto “científico” que está por trás – reescrever a própria história da Ciência, assim como o nazismo tentou ao criar um bizarro mix Ciência, Religião e Ocultismo. Depois da economia (neoliberalismo pentecostal) e a política (a direita nacionalista), a Ciência (escolas e universidades) é a última resistência. Da “Terra Plana” à “cura gay”, hoje ridicularizados, agora necessitam do verniz “científico”. Por isso, “Boy Erased” dá um alerta em suas entrelinhas: a Ciência poderá ser reescrita pela Religião.

domingo, fevereiro 03, 2019

A arte vinga-se do capitalismo no filme "Velvet Buzzsaw"

A arte pode ser perigosa e aqueles lucram com isso estão arriscando suas próprias vidas nessa sátira misturada com horror gore na produção Netflix “Velvet Buzzsaw” (2019). Se no filme anterior “O Abutre” o diretor e escritor Dan Gilroy figurava os bastidores da competição por audiência de programas sensacionalistas de TV, em “Velvet Buzzsaw” o alvo é o mundo do mercado das artes: artistas pretensiosos, gananciosos donos de galeria, clientes milionários e, principalmente, temidos críticos de arte – uma crítica publicada pode valer milhões de dólares ou o fim de uma carreira. Até encontrarem um acervo de pinturas e desenhos hipnóticos de um obscuro artista falecido. Uma oportunidade de lucro rápido. Mas um rastro de mortes começa a acompanhar aquelas telas. A fixação fetichista que temos pelas imagens (como, por exemplo, a ilusão de que a Mona Lisa sempre nos observa) é levada ao limite do horror. Como se a arte e as imagens estivessem se vingando da sociedade mercantil que as subjugou.

sábado, fevereiro 02, 2019

A ameaça simbólica de Lula e a Síndrome de Brian da esquerda

“Covardia!”, “desumanidade!”, “barbárie!”. Assim reagiu a esquerda, chocada com a proibição de Lula (prisioneiro há nove meses) participar do velório do seu irmão em São Bernardo do Campo/SP. Até a ditadura militar autorizou que Lula fosse ao velório da mãe, em 1980!, acusa inconformada a esquerda. A Polícia Federal apresentou seis motivos para não conceder o benefício. Em cada um deles, está a evidência de que o atual oponente da esquerda não são mais os toscos militares da ditadura que, ironicamente, permitiam até gestos humanitários. Agora há um atento e utilitarista cálculo dos riscos na guerra semiótica: as repercussões simbólicas de Lula repentinamente aparecer em público, diante das lentes das câmeras. PF e Judiciário são mais zelosos com a ameaça simbólica de Lula do que a esquerda jamais foi – entregou de bandeja sua maior arma semiótica, agora condenada à invisibilidade. Enquanto isso, convive com a sua autoindulgente “síndrome de Brian” (relativo ao filme "A Vida de Brian" do grupo de humor Monty Python), imaginando ainda estar enfrentando os velhos inimigos toscos do passado.  

quarta-feira, janeiro 30, 2019

No filme "Apóstolo" o assassinato e a mentira fundam seitas e religiões

Há um “modus operandi” na fundação de seitas e religiões: um assassinato que se transforma no sofrimento necessário do mártir; e a mentira decorrente dessa narrativa. Em consequência, o Sagrado mistura-se com o profano, e o Divino com a violência. Como é possível emergir amor e compaixão nesse modelo psíquico doentio? Essa é a questão principal do filme “Apóstolo” (“Apostle”, 2018). Um jovem ex-religioso, descrente de tudo após um passado traumático, tem a missão de resgatar sua irmã, raptada por uma estranha seita reclusa em uma ilha. Ele se infiltra entre os seguidores de um profeta enlouquecido, mas estranhamente não consegue determinar, afinal, o quê aquela seita adora. Através do horror gore (nada gratuito, já que o tema do filme é como sangue e violência são a outra face das seitas e religiões), o protagonista mergulha em uma sociedade que se pretendia utópica, mas que revela uma questão bem atual: o flerte da religião com o poder político por meio do Estado Teocrático. Filme sugerido pelo nosso incansável leitor Felipe Resende.

segunda-feira, janeiro 28, 2019

Curta da Semana: "Fake News Fairytale" - quando notícias falsas viram contos de fadas

“Políticos são como mágicos, acenando com as mãos, fingindo que o truque está acontecendo em outro lugar. Enquanto isso, eles nos distraem, escondendo aquilo que está acontecendo diante de nossos olhos.” Essa é a conclusão de “Fake News Fairytale” (2018), um curta sobre como se articulam as noções de verdade, ficção, realidade e ilusão nas fake news, abordadas pela diretora Kate Stonehill como narrativas análogas a contos de fadas. Em um divertido documentário que simula ser um “mockumentary”, baseia-se num caso real: a repentina fama que a pequena cidade de Veles, no interior da Macedônica, ganhou como o centro da “corrida do ouro” das fake news: adolescentes que ganharam muito dinheiro com anúncios em website que publicavam notícias falsas repercutidas nas redes sociais a partir de perfis falsos. E ajudando a vitória de Trump nos EUA. Sem emprego ou futuro, jovens viram a chance de ganhar dinheiro rápido. Essa é a matéria-prima da atual ultradireita nacionalista. 

domingo, janeiro 27, 2019

Rebaixamento dos padrões de inteligência da Revolução Industrial 4.0 criou Bolsonaro

No momento em que o presidente eleito Jair Bolsonaro saiu da sua zona de conforto e se expôs em cenários não controlados como o Fórum Econômico de Davos ou a tragédia humano-ambiental de Brumadinho/MG, revela-se a sua condição limítrofe, com sérias deficiências cognitivas. E diante de pesquisas de opinião cujos resultados se colocam contra as principais linhas da sua “plataforma de governo”, muitos questionaram: mas afinal, como ele foi eleito? Discurso fascista? Anti-petismo? Há um fator ainda não tematizado - as relações intrínsecas entre a chamada “alt-right” (direita alternativa) e as redes sociais não é um mero acaso ou oportunismo. Personagens como Bolsonaro ou Trump são produtos das tecnologias de convergência da Revolução Industrial 4.0. Tecnologias que criaram uma cultura de aplicativos e redes sociais estruturada na noção algorítmica de “Inteligência Artificial”, que consiste em rebaixar os padrões do que entendemos como “inteligência”, enquanto os usuários se tornam simples processadores de informação.

sexta-feira, janeiro 25, 2019

A nova sensibilidade gnóstica do horror no filme "Ghost Stories"

Desde a Era Vitoriana, quando os fenômenos paranormais (mesas girantes, fantasmas, fotografias de ectoplasmas etc.) entraram em cena na cultura Ocidental, as explicações sobre esses eventos sempre estiveram sintonizadas com o “zeitgeist” de cada época. Na virada de século, as tentativas de explicações científicas deram lugar à mistura de fé com espiritualidade. Nesse cenário, a sensibilidade gnóstica começa a se esgueirar pelos filmes de terror, um gênero que sempre foi canônico. Apesar de parecer uma homenagem às velhas antologias cinematográficas de terror, “Ghost Stories” (2017) vai mais além: é um exemplo que segue a linha das violentas viradas narrativas como “Sexto Sentido” e “Os Outros” – a abordagem PsicoGnóstica da paranormalidade, na qual a mente pode ser a nossa principal prisão. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

quinta-feira, janeiro 24, 2019

Ano 2019 é um Vortex Temporal? Como modular a atenção em tempos extremos, por Nelson Job

Este ano de 2019 aparece com recorrência no imaginário especulativo como um ano de "turning point". Parece ter sido privilegiado por obras do passado de cineastas, escritores e médiuns que o elegeram como um ano marcante. Os filmes “Blade Runner” e “O Sobrevivente”, o animê “Akira”, as previsões de Isaac Asimov e de Chico Xavier, todos fazem referência a este ano. Quais as razões disso? 2019 será, de fato, o trampolim de uma Nova Era, como astrólogos e esotéricos do mundo inteiro anunciam, ou será uma completa catástrofe? Podemos entender o ano de 2019 como uma espécie de vortex transtemporal? Forças dos acontecimentos anteriores e do futuro estariam de auto-organizando no tempoNeste artigo, investigaremos essas ocorrências e traçaremos um desdobramento delas.

terça-feira, janeiro 22, 2019

Marketing pós-humano e pós-verdade na ascensão dos influenciadores virtuais

Lentamente uma nova raça de avatares está se infiltrando nos “feeds” das redes sociais: são os influenciadores virtuais – supermodelos lindíssimas, como vidas cheias de música e ativismo social, promovendo marcas famosas de moda. Mas por trás estão algoritmos probabilísticos combinando o trabalho de fotógrafos, computação gráfica e inteligência artificial. Faz parte da chamada “Revolução Industrial 4.0” que nada mais faz do que estender para o século XXI o espírito do velho capitalismo: redução de custos e enxugamento da cadeia produtiva, aumento de lucros e incremento do controle social e político.  Mas para os seguidores dessa nova geração do Marketing de Influência, pouco importa se os influenciadores são reais ou virtuais – se artistas, celebridades e famosos sempre foram simulacros, então chega de intermediários! Assim como as fake news, o marketing pós-humano está criando a pós-verdade: o mix de autodistanciamento irônico e niilismo. Pauta sugerida pela nossa leitora Alana Pinheiro.

sábado, janeiro 19, 2019

"Tempo Compartilhado": Marketing e Publicidade criam a religião do Capitalismo Pentecostal

O pensador alemão Karl Marx teve que escrever muitas páginas para demonstrar que por trás da racionalidade do Capitalismo existia uma gigantesca fantasmagoria – mercadoria, capital e dinheiro apareciam como entidades-fetiches autônomas aos nossos olhos. Hoje, o Marketing e a Publicidade, sem maiores rodeios, diariamente nos mostram que a gestão corporativa e o discurso publicitário se tornaram análogos a seitas ou cultos. O Capitalismo sempre foi uma religião, mas hoje ele é “pentecostal” – é o “american way of management”. O filme mexicano “Tempo Compartilhado” (“Tiempo Compartido”, 2018) mostra as férias frustradas de uma típica família de classe média que acreditava ser possível comprar o Paraíso a preços módicos em suaves prestações. Um resort internacional esconde um propósito sinistro: transformar tanto seus “colaboradores” como clientes em membros de um tipo de seita messiânica no qual o Paraíso religioso se confunde com o próprio turismo.  

quinta-feira, janeiro 17, 2019

A autoabdicação humana no filme "Cam"

Se em “A Rede”, de 1995, o tema do roubo da identidade de bancos de dados era tratado dentro do gênero thriller policial, no filme “Cam” (2018) torna-se agora um evento entre o fantástico e o sobrenatural. Por que o tema da invasão de privacidade sofreu uma guinada de gênero tão radical? Uma jovem que faz “lives” de pornografia softcore, cujo sonho é chegar ao Top 50 de um website erótico, vê uma réplica exata de si mesma roubar sua identidade virtual, substituindo-a. Sem controle do seu “doppelgänger”, sofre as consequências na vida familiar. Porém, seu duplo parece ser mais destemido do que o original, a tal ponto que os limites entre o real e o virtual desaparecem. Se no passado ver o seu duplo no espelho e na fotografia despertava assombro e medo, hoje na cultura das “selfies” e webcams das “lives” em redes sociais o duplo gera inveja e aspiração por uma vida dinâmica, alegre, sem culpas e preocupações. Abdicamos de toda humanidade pela representação algorítmica de nós mesmos. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

terça-feira, janeiro 15, 2019

A vaidade é o pecado predileto do Diabo em "A Casa Que Jack Construiu"

Jack é um engenheiro que sonha em ser arquiteto. Quer sair do anonimato dos cálculos matemáticos para o impacto público da produção de ícones. Arte e Morte andam juntas. E para comprovar sua tese Jack se transforma num cruel e paradoxal serial killer que faz de tudo para chamar a atenção da polícia e da imprensa para suas “obras-primas”. Esse é o filme “A Casa Que Jack Construiu” (2018), do controvertido, diretor Lars von Trier, que discute a atual “arte degenerada” que confunde a produção “artística” com a capacidade de produção imagética viral. Tipo de arte que vai encontrar no fenômeno do serial killer o seu paroxismo. Mas, da pior forma possível, Jack vai descobrir que a vaidade é o pecado mais admirado pelo Diabo.

domingo, janeiro 13, 2019

A conspiranoia pop gnóstica em "Under The Silver Lake"

A cultura pop nada mais representaria do que o abismo geracional entre jovens e adultos? Por trás de cada gesto de revolta seja grunge, punk ou gótico estaria um adulto vigilante através de mensagens criptografadas em músicas? As vertiginosas alusões de “conspiranoia” pop em “Under The Silver Lake” (2018), de David Robert Mitchell (“Corrente do Mal”), conferem uma nova abordagem do tema da paranoia no cinema. Um jovem desocupado tenta investigar o mistério do desaparecimento de sua vizinha para mergulhar no submundo das subcelebridades aspirantes a atores e atrizes em Hollywood e na subcultura de HQs e fanzines que tentam construir uma Teoria Unificada das conspirações. O fio da meada pode levar o espectador a conspirações ao melhor estilo Hitchcock e David Lynch. Mas o fio pode estar desplugado da tomada! Filme sugerido pelo nosso leitor David Góes.

sexta-feira, janeiro 11, 2019

Novo logo revela que Bolsonaro não consegue sair do personagem

Em cinema e teatro fala-se muito de atores que, de tão concentrados no personagem, não conseguem mais sair do papel. Uma análise semiótica da nova identidade visual do Governo Federal revela que nada mais resta para o presidente Jair Bolsonaro do que se manter no personagem da campanha eleitoral – belicoso e provocativo, pronto para criar sempre um novo inimigo.  Para além do ufanismo e da nostalgia idealizada dos governos militares, a nova logomarca revela muito mais uma estratégia de comunicação do que de propaganda clássica – simbolização ou doutrinação ideológica. A marca visual expressa a atual estratégia visual da chamada alt-right (“direita alternativa”): polarização, provocação e apropriação. Assim como a bandeira nacional e a camisa amarela da CBF, agora o último verso do hino nacional foi apropriado. Do simbolismo original da Pátria como “mãe gentil”, foi ressignificado como ícone de polarização: a divisão entre patriotas e antipatriotas.  

quinta-feira, janeiro 10, 2019

Quando a realidade supera a comédia na série "Who is America?"

Como fazer uma sátira política de um país que parece imitar os estereótipos que a própria mídia faz da América? Como fazer humor de um país que já teve um ex-ator de Hollywood como presidente e, o atual, um dublê de empresário e ex-apresentador de reality show de TV? Esse é o desafio do comediante Sacha Baron Cohen na série “Who is America?” (2018-): como satirizar um país no qual a realidade parece superar a comédia. Cohen interpreta cinco hilários personagens que entrevistam e fazem “pegadinhas” em norte-americanos que vão desde desconhecidos até senadores, deputados e juízes dos EUA, através de todo espectro político e cultural. Cada episódio consegue persuadir os entrevistados (seja de esquerda ou direita) a colocar para fora seus extremismos, preconceitos e qualquer coisa bizarra sugerida pelas ainda mais bizarras caricaturas de Sacha Cohen. “Who is America?” mostra que, na atualidade, estar diante de uma câmera é a nova hipnose: ajuda a revelar o pior de nós mesmos.

terça-feira, janeiro 08, 2019

Os dez melhores filmes gnósticos analisados pelo Cinegnose em 2018


Desde 1995, com o filme “Dead Man” com Johnny Deep, a mitologia gnóstica começa a interessar roteiristas e produtores hollywoodianos, trazendo à cena da indústria do entretenimento o “Gnosticismo Pop”- Gnosticismo: conjunto de seitas sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento do início da Era Cristã, séculos III e IV, que apresentavam uma visão mística de Cristo. Por isso, nunca fizeram parte da cultura sancionada pelas instituições, sempre se mantendo em canais subterrâneos ao longo da História. Até o final do século XX. Dando continuidade às análises da presença de narrativas, argumentos e elementos da mitologia gnóstica, o “Cinegnose” apresenta a lista dos dez melhores filmes gnósticos resenhados pelo blog em 2018. Filmes AstroGnósticos, PsicoGnósticos, CronoGnósticos, CosmoGnósticos e TecnoGnósticos.

sábado, janeiro 05, 2019

As guerras táticas da comunicação de Bolsonaro

Guerra econômica, guerra cinética, guerra da informação. Esses três princípios da guerra moderna parecem estar estruturando a tática militar de comunicação do “staff” de Bolsonaro. Em quatro dias desde a posse do capitão da reserva, ficou evidente a linha de continuidade entre a campanha eleitoral e a rotina diária do governo. Marcadas não pela estratégia clássica de propaganda, mas por táticas diversionistas de comunicação: “Marxismo cultural”? “Ideologia de gênero”? Bolsonaro desautorizou Paulo Guedes? Quem é menina ou menino? Quem veste rosa ou azul? A logística da guerra é uma questão de desorientar e criar pânico no adversário – no caso atual, criar dissonâncias e ambiguidades. Com isso, qualquer discussão sobre a “guerra econômica” (“tirar”, “acabar”, “reduzir”, “diminuir” etc.) e a guerra cinética (a guerra ao pan terrorismo narco-político), embora com impactos bem concretos num futuro próximo, está oculta da opinião pública com a proliferação de memes, metamemes e análises da grande mídia que escondem o essencial: a guerra produzida sob o discurso da “terra arrasada”.

quinta-feira, janeiro 03, 2019

O trabalhador precarizado vai ao Paraíso em "Sorry to Bother You"

Uma surreal comédia de humor negro com realismo fantástico e ficção científica inspirado no mundo do telemarketing. “Sorry to Bother You” (2018), filme de estreia de Boots Riley, pode ser tanto o momento atual como aquilo que nos espera em um futuro muito próximo: modernos trabalhadores precarizados que viram máquinas cognitivas de vendas sem quaisquer garantias ou direitos. Cassius Green é um jovem excluído negro que descobre a chave para a ascensão corporativa na RegView, a gigante do telemarketing: encontrar a “voz de branco” interior. Mas tal como “Fausto”, de Goethe, o Diabo vai cobrar algo de volta – algo assustador e surreal que definitivamente fará o protagonista cair “na real” e perceber o cenário entorno.

terça-feira, janeiro 01, 2019

"Black Mirror: Bandersnatch": a realidade se aproxima dos códigos de um videogame

A quinta temporada de “Black Mirror” (2011-) não saiu em 2018. Isso porque o episódio especial “Bandersnatch”, lançado no apagar das luzes do ano, atrasou toda a produção pelo “enorme tempo de criação”, disse o criador Charlie Brooker. Não é para menos: “Bandersnatch”, um híbrido de filme longa-metragem e game interativo, é uma verdadeira síntese do “zeitgeist” gnóstico por trás das descrições da série de como a tecnologia é cada vez mais envolvente e invasiva. Em 1984, Um jovem aspirante a programador profissional de games começa a questionar a realidade ao seu redor na medida em que a ansiedade e paranoia envolvem a elaboração dos códigos – assim como ele escreve a narrativa do game de computador, também a sua realidade cada vez mais se assemelha a um jogo interativo. Mas controlado por quem?

sábado, dezembro 29, 2018

Esquerda desarmada diante das operações psicológicas "alt-right"

Fotos de Bolsonaro e do futuro ministro da Casa Civi, Onix Lorenzoni, cuja angulação e recorte sugerem ao fundo expressões como “anta” ou “traição governa”; vídeo do capitão reformado lavando roupas no tanque; outro vídeo do presidente eleito com a faca na mão em um churrasco debochando do próprio atentado que sofreu. Tudo material distribuído pela assessoria do presidente, pautando a grande mídia e a indignação da esquerda, como matéria-prima para os protestos que acabam virando apenas “metamemes”. Continua em ação uma estratégia muito mais de comunicação do que de propaganda. Uma operação psicológica baseada nos mecanismos de dissonância e ambiguidade diante da qual a esquerda está paralisada e desarmada, incapaz de compreender a linguagem “alt-right”, a ultradireita alternativa, surgida diretamente de sites como o “4chan” (EUA) ou do “Corrupção Brasileira Memes”(CBM, Brasil).  Uma linguagem cuja mão de obra criadora é farta: a geração NEET (Not currently engaged in Employment, Education or Training) ou “Nem-Nem”, cuja desesperança e niilismo ganharam expressão política depois de anos de animações politicamente incorretas como Os Simpsons, Beavis and Butt-head, South Park, American Dad e o Rei do Pedaço.

quinta-feira, dezembro 27, 2018

Algoritmos, novos aliens e psicologia reversa por trás do filme "Bird Box"

Há algum algoritmo do Netflix por trás do filme “Bird Box”? – pergunta-se a crítica especializada. Se algum tipo de Inteligência Artificial elaborou a narrativa do filme baseado em livro homônimo de Josh Malerman, certamente seus algoritmos devem estar bem atualizados com a nova tendência do subgênero “apocalipse alien”: Agora esses seres surgem furtivamente, com estratégias ambíguas que exploram, principalmente, as fraquezas humanas – medo, desconfiança, traição, ambição etc. Dessa vez, o gênio maligno alienígena veio explorar o maior ponto fraco sensorial humano na atual sociedade das imagens, do espetáculo e das mídias: a visão. Como se salvar anulando a visão numa sociedade que nos exalta a ver? “Bird Box” apresenta o ponto fraco da psicologia humana: a psicologia reversa – quando o aviso “não olhe!” torna-se uma persuasiva arma alienígena. 

segunda-feira, dezembro 24, 2018

"Cinegnose" faz nove anos, na direção da primeira década

Em dezembro, o “Cinegnose” completa nove anos de existência, aproximando-se da primeira década de intensas atividades – postagens, cursos e palestras. Em todo esse tempo, o “Cinegnose” passou por dois momentos de mudança: no terceiro aniversário (2012), quando deixamos de ser um site “sobre Gnosticismo” para se tornar “Gnóstico” – a criação de um olhar gnóstico (ontológico, sincromístico, irônico e sintomático) mais amplo para Cinema, Cultura e Sociedade. E agora no seu nono aniversário: esse “olhar gnóstico” coverte-se num pressuposto metodológico para a Teoria da Comunicação, Semiótica e Crítica Ideológica. Por quê?  Porque a realidade é uma ilusão. Mas não uma ilusão qualquer, como “mentira” ou “falsa consciência”. Mas porque a realidade cada vez mais imita roteiros cinematográficos e narrativas ficcionais. Cada vez mais se aproxima do Cinema, a moderna Caverna de Platão.

sábado, dezembro 22, 2018

A ilusão das festas de Ano Novo no filme "Goodbye, 20th Century"

Sombrio, artístico, apocalíptico e surreal. Essas palavras sintetizam “Goodbye, 20th Century” (Zbogum na dvaesetiot vek, 1998), definitivamente um filme para cinéfilos aventureiros. Dirigido por dois diretores macedônios, Darko Mitrevski e Aleksandar Popovski, começa num deserto pós-apocalíptico ao estilo Mad Max para terminar num velório que se degenera em sangue e violência ao som de “My Way”, na versão punk rock de Sid Vicious. Um filme cujo pôster promocional da época resumia o filme da seguinte maneira: “como o Papai Noel, em fúria, destruiu o nosso mundo”.  Uma reflexão para as festas de final de ano de que, na verdade, tanto o Tempo como a “passagem de ano” não existem. São uma persistente ilusão que escondem um eterno retorno. E como esquecemos do principal simbolismo das festas de Ano Novo: a dupla face do deus Janus – uma que olha esperançoso para o futuro; e a outra que procura entender os erros do passado. Assista ao filme aqui no “Cinegnose”.

quinta-feira, dezembro 20, 2018

Em "Uma Noite de Crime 2: Anarquia" o Capitalismo quer eliminar o "excremento social"


São as raras as sequências que superam o filme original. “Uma Noite de Crime 2: Anarquia” (“The Purge: Anarchy”, 2014) é um desses raros casos. Não pela estética que, como no original, emula uma produção B. Mas porque é um perfeito documento do espírito de época atual, pós-globalização, no qual o hiper-capitalismo financeiro procura criar uma nova ordem a partir do rescaldo da crise de 2008: o aumento do "excremento populacional" (idosos, aposentados, inválidos, imigrantes, excluídos, miseráveis, refugiados etc.) que nem mais para serem explorados servem. Se o primeiro filme refletia as reações da ultra-direita contra o “Obama Care”, nessa sequência o roteiro de James DeMonaco reflete a nova ordem pós-globalização: formas invisíveis de controle populacional com o objetivo de exterminar o “excedente humano”. DeMonaco dá ao espectador nessa sequência uma noção mais ampla dos efeitos e propósitos da “Purgação” – a noite anual em que todas as formas de crime são permitidas, sob o pretexto de servir de válvula de escape para a besta interior presente em cada um de nós, garantindo a ordem social. Mas os propósitos de controle social são mais sombrios.

domingo, dezembro 16, 2018

Como envenenar psiquicamente um povo no filme "Os Demônios"


“Os Demônios” (“The Devils”), de Ken Russel, é um filme tão blasfemo, obsceno e relevante hoje quanto foi em 1971. Um terror religioso épico e uma contundente crítica do abuso do poder político. Um filme sobre fatos históricos ocorrido no século XVII (um padre condenado à fogueira acusado de bruxaria), filmado no século XX, mas que continua atual no século XXI: os tribunais eclesiásticos da Inquisição foram muito mais do que produtos do fanatismo religioso. Foram instrumentos de “lawfare” para a dominação política da Igreja. Em “Os Demônios” a Inquisição é um instrumento de uma estratégia mais ampla que hoje chamamos de “Guerra Híbrida”: como envenenar psiquicamente uma cidade através da sua maior vulnerabilidade: um Convento de freiras dominadas pela histeria de massa é o pretexto para derrubar a liderança do padre Urbain Grandier, opositor à monarquia absolutista de Luís XIII e do Cardeal Richelieu.

quinta-feira, dezembro 13, 2018

Satanás é o último dos humanistas em "Últimos Dias no Deserto"


A maior história AstroGnóstica de todos os tempos. De “Jesus Cristo Superstar” a “A Última Tentação de Cristo”, Jesus já foi humanizado de todas as maneiras: dúvidas, tentações, medos etc. Mas nada igual ao despretensioso filme “Ultimos Dias no Deserto” (2015) de Rodrigo Garcia. Nos 40 dias que Jesus passou no deserto orando, jejuando e pedido orientação do seu Pai, a única voz que ouviu foi a de Satanás. Logicamente, o demônio no início vai explorar as fraquezas de uma divindade prisioneira em um corpo humano. Mas Satanás fará (e se revelará) muito mais do que isso. Enquanto Jesus tenta minimizar os conflitos da relação pai e filho de uma família que lhe deu água e abrigo, Satanás mostrará que está sempre um passo à frente. Como se antecipasse todos os pequenos detalhes de uma história que parece já conhecer de antemão. Como se a Criação fosse uma repetição na qual, curioso, Satanás tenta entender o propósito de tudo. Olhando pelo ponto de vista da humanidade prisioneira em uma repetição cósmica. Seria Satanás o último dos humanistas em “Últimos Dias no Deserto”? Filme sugerido pelo nosso leitor Matheus de Alcântara.

quarta-feira, dezembro 12, 2018

Com João de Deus, Manchinha e bonapartismo de Bolsonaro, Globo aperta os nós para 2019

Depois de décadas de controvérsias, acusações de assassinato, pedofilia e abusos sexuais, repentinamente “a verdade bateu à porta”, como disse Pedro Bial, e seu programa deu a partida para a caça ao médium-celebridade João de Deus, com atualizações diárias que já rivalizam com a meganhagem também diária das prisões da PF nas telas. Sabemos que para o jornalismo da Globo não basta apenas a verdade “bater a porta” – é necessário a “verdade” ter timing e oportunismo dentro das estratégias políticas da emissora. Soma-se a isso a também repentina indignação e atualizações diárias sobre o espancamento e morte do cão “Manchinha” em um hipermercado em Osasco/SP, uma notícia que na paginação tradicional dos telejornais seria colocada no bloco das notícias diversas. Tudo na semana do vazamento de movimentação atípica de dinheiro na conta de assessor de Flávio Bolsonaro, pressão da grande mídia por explicações e a resposta “bonapartista digital” de Jair Bolsonaro na sua diplomação no TSE: “o poder popular não precisa de intermediação”, apostando nas novas tecnologias para governar o País sem a grande mídia. Fala-se que a Globo “não dá ponto sem nó”:  quais nós a TV Globo está apertando para 2019 com essas “anomalias” jornalísticas no final do ano?  

domingo, dezembro 09, 2018

A civilização se enxerga no abismo no filme "Cold Skin"

Nietzsche nos alertava que quanto mais olharmos para o abismo, mais ele se parecerá conosco. A co-produção Espanha/França “Cold Skin” (2017), do diretor Xavier Gens, vai desenvolver esse insight do filósofo alemão em um mix de Nietzsche (o abismo da não-razão que espelha a razão humana), Charles Darwin (monstros de uma ilha que parecem negar as leis da evolução) e o horror ao estilo de H. P. Lovecraft com elementos do fantástico. Um meteorologista vai trabalhar em uma ilha nos confins da Terra para lá encontrar o operador de um farol em uma guerra particular com criaturas humanoides que parecem negar toda a racionalidade humana representada nas leis evolucionistas. O simbolismo das luzes do farol que tenta iluminar as trevas é o das luzes da razão humana. Mas, como sempre, o homem esquece que essas mesmas luzes também produzem sombras.

sábado, dezembro 08, 2018

"Coletes Amarelos" na França: a revolução não será televisionada!

Até aqui a grande mídia passa batida para “o déjà vu” dos protestos dos “coletes amarelos” na França: em 2013 as chamadas “Jornadas de Junho” no Brasil foram narradas da mesma maneira como hoje noticiam os protestos franceses – “espontâneos”, “apartidários” e que “começam de forma pacífica, mas que acabam tendo atos de vandalismo...”. Também como em 2013, surgem analistas que veem “o novo” na Política ou “quebra do monopólio da narrativa midiática”. Aqui no Brasil vimos no que deram as Revoluções Populares Híbridas. Na Europa estão sincronicamente conectadas com o tour de Steve Bannon (ex-assessor da campanha de Trump) pelo continente para unificar a direita num “movimento internacional de nacionalistas”. Os “coletes amarelos” são icônicos e as câmeras os amam, saturando de significados suas fotografias e vídeos. A revolução não será televisionada:  a mídia não está relatando o que as pessoas fazem; relatam apenas o que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia para o Capitalismo dar um novo salto – o populismo de direita.

domingo, dezembro 02, 2018

Alarme do Ciberespaço! Tempo Real destruirá a Democracia

Einstein teria falado sobre a “segunda bomba”: A bomba eletrônica, depois da atômica. Uma bomba na qual o que o tempo real é para a informação corresponderia ao que a radioatividade é para a energia. Em artigo de 1995, publicado na “Le Monde Diplomatique”, intitulado “Vitesse et Information: Alerte Dans le Cyberespace!”, o urbanista e pensador francês Paul Virilio alertava para o “grande evento que dominará o século XXI”: a corrosão da Democracia pelo tempo real das redes digitais. Um novo complexo militar que o Pentágono iniciava naquele ano – uma “revolução no exército junto com uma guerra do conhecimento que substituirá a guerra de campo”. Eram os esboços cibernéticos que hoje se transformaram em engenharia política. A vitória de Bolsonaro foi um dos laboratórios da corrosão da representação política pelo tempo real. E agora, os protestos dos “coletes amarelos” na França promete que essa engenharia será global.

sábado, dezembro 01, 2018

Cartografias AstroGnósticas do Além em "Destino Especial"

Um filme que ecoa John Carpenter, Spielberg e Stephen King. “Destino Especial” (Midnight Special, 2016) é muito mais do que um filme AstroGnóstico – categoria de filme gnóstico no qual nossa empatia se volta para aliens exilados nesse mundo tentando retornar para sua casa, como uma metáfora da própria condição humana. Um menino dotado de poderes especiais tenta retornar para seu lar, fora desse mundo, enquanto uma seita religiosa e o Governo tentam capturá-lo. Mas, diferente de muitos outros filmes Astro Gnósticos, o lar distante não está nas estrelas, planetas ou universos alternativos. Mas muito mais perto do que possamos imaginar numa espécie de nova "cartografia do além": se estamos exilados nesse mundo, de onde viemos?

domingo, novembro 25, 2018

Curta da Semana: "Big Data - L1ZY" - os fantasmas que assombram a Internet

Uma típica família de classe média suburbana passa a ser assombrada por um novo dispositivo de Inteligência Artificial. “Big Data – L1zy” é um curta sombriamente satírico ao melhor estilo “Black Mirror”, mas emulando um “infomercial” típico das TVs norte-americanas. “L1zy” é uma paródia de assistentes pessoais inteligentes como Alexa ou Siri – como sob a aparência amigável de vozes sexies, nossas vidas são hackeadas pela mineração de Big Data e algoritmos que probabilisticamente preveem nossas desejos e comportamentos. “Big Data – L1zy” propõe uma amarga reflexão: como a Internet, da utopia da “biblioteca universal” e da “rede de inteligência coletiva” se transformou em um conjunto de plataformas que em segredo sequestra nossos dados pessoais com objetivos mercadológicos e políticos.

quinta-feira, novembro 22, 2018

Arte, Política e Guerra Antimídia em "Art of The Prank"... mas não conte prá esquerda!

“Jornalistas são perigosamente ingênuos... não se interessam pela verdade, mas apenas por uma boa história”, afirma Joey Skaggs no documentário “Art Of The Prank” (2015). Joey Skaggs é um artista plástico que iniciou nos movimentos contraculturais de protestos nos EUA. Quando percebeu que o maior inimigo não era o Governo, mas a grande mídia que o sustenta. A partir dos anos 1970 tornou-se o principal criador de “Media Prank” e “Culture Jamming” – estratégias de guerrilhas semióticas antimídia. Skaggs passou então a criar uma série de personagens e histórias fictícias (pegadinhas) para enganar os jornalistas, revelando como a opinião pública é formada sobre mentiras: o “Bordel para Cachorros”, o “Banco de Esperma de Celebridades”, a “Pílula que cura tudo” produzida a partir de enzimas das baratas etc. CNN, ABC, CBS, todos caíram nas pegadinhas de Skaggs. Até o jornalista Pedro Bial mostrando na Globo a “revolucionária Terapia do Leão” do “célebre” Baba Wa Simba... “Art Of The Prank” mostra didaticamente como se faz uma guerra semiótica: fazer a mídia sentir o gosto do próprio veneno da mentira que ela produz... mas não conte para a esquerda! Dificilmente entenderá...

segunda-feira, novembro 19, 2018

Cultura, prostituição e barbárie no filme "Bibliothèque Pascal"


Uma mulher desesperada em recuperar a guarda da sua filha. Uma mãe que foi vítima de uma rede europeia de prostituição de mulheres e crianças que realiza sequestros no Leste Europeu para o mercado sexual da elite intelectual e corporativa inglesa. Para ter sua filha de volta, deve relatar onde esteve nos últimos dois anos. Ela descreve o cabaré-bordel chamado “Bibliotheque Pascal”, em Liverpool, repleto de estantes com livros e quartos que recriam em tons futuristas e sadomasoquistas cenas literárias das obras de Shakespeare, Nabokov, Wilde, Shaw entre outros. O filme húngaro “Bibliothèque Pascal” (2010) dança nas bordas entre fantasia e realidade, civilização e barbárie. É impossível não lembrar do pensador alemão Walter Benjamin, principalmente nas sequências do cabaré-prostíbulo. Lá a barbárie não parece ser o avesso da civilização, mas um pressuposto dela. O impulso bárbaro parece não estar fora, mas no interior do movimento de criação e transmissão cultural.

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