quinta-feira, janeiro 10, 2019

Quando a realidade supera a comédia na série "Who is America?"

Como fazer uma sátira política de um país que parece imitar os estereótipos que a própria mídia faz da América? Como fazer humor de um país que já teve um ex-ator de Hollywood como presidente e, o atual, um dublê de empresário e ex-apresentador de reality show de TV? Esse é o desafio do comediante Sacha Baron Cohen na série “Who is America?” (2018-): como satirizar um país no qual a realidade parece superar a comédia. Cohen interpreta cinco hilários personagens que entrevistam e fazem “pegadinhas” em norte-americanos que vão desde desconhecidos até senadores, deputados e juízes dos EUA, através de todo espectro político e cultural. Cada episódio consegue persuadir os entrevistados (seja de esquerda ou direita) a colocar para fora seus extremismos, preconceitos e qualquer coisa bizarra sugerida pelas ainda mais bizarras caricaturas de Sacha Cohen. “Who is America?” mostra que, na atualidade, estar diante de uma câmera é a nova hipnose: ajuda a revelar o pior de nós mesmos.

Desde a Segunda Guerra Mundial, a imaginação literária tem um sério concorrente: a realidade, cujos eventos cada vez mais superam a ficção em escala, efeitos e estética. Desde o Holocausto e o cogumelo nuclear que devastou cidades durante a guerra, nunca mais a ficção conseguiu superar a realidade.
Por exemplo, o escritor e poeta “maldito” norte-americano Charles Bukowski dizia que tinha que lançar mão do exagero, bizarrices e um humor corrosivo que causasse os sentimentos mais extremos (do ódio e nojo, até o amor e a paixão), para poder superar o impacto dos fatos reais que acabavam superando qualquer imaginação ficcional.
Certamente o comediante Sacha Baron Cohen tinha isso em mente ao estrelar a série Who is America? (2018), apresentada no canal norte-americano Showtime em sete episódios. A premissa da série é explícita: “explorar os diversos indivíduos, desde o infame até o desconhecido através do espectro político e cultural que habitam nossa nação única”. 
Porém, representar um país como os EUA é difícil. Principalmente porque na América estão Hollywood e a gigantesca indústria de entretenimento que irradiam imagens e sonhos para grande parte do planeta. E de tanto fabricar imagens e entretenimentos, acabou acreditando neles. Resultando num país hiper-real cuja realidade tenta imitar a ficção: cidades que viram cenografias e pessoas (políticos, subcelebridades e desconhecidos) que tentam emular clichês e personagens fílmicos e televisivos.  
Séries como a brasileira América, de João Moreira Sales e que foi ao ar pela extinta TV Manchete em 1989, já mostraram isso – representar lugares e pessoas a partir da mitologia cinematográfica do Jazz, do Blues, do automóvel e de uma arquitetura urbana que se assemelha a fachadas cenográficas – sobre a série clique aqui.


Mas o propósito de Who is America? é ainda mais complicado: como fazer uma sátira política, comportamental e de costumes de uma nação que, ela própria, já é um misto e paráfrase e paródia que a própria mídia faz dos EUA?  Afinal, um ex-ator de Hollywood já foi presidente (Ronald Reagan nos anos 1980) e Donald Trump (um dublê de empresário e apresentador de reality show televisivo O Aprendiz) é o atual presidente, cuja performance diária parece a de ser uma paródia de si mesmo.
Em outras palavras: como o comediante Sacha Cohen poderia fazer uma “sátira política” se os próprios personagens do cenário político e cultural atual parecem ser eles próprios paródias de si mesmos? Como a representação cômica poderia superar uma realidade que, de início, já é tragicômica?
Esse parece ser o desafio central de Who is America? Para enfrenta-lo, em muitos momentos Sacha Cohen parte para o “politicamente incorreto” no melhor estilo Bukowski, para despertar raiva, nojo e repulsa. Ou, se é possível, explorar uma linguagem mockumentary híbrida – um mix de “media prank” (pegadinhas) com espécies de brincadeiras ou jogos em que os entrevistados parecem conscientes e aceitam – afinal, estar diante das câmeras em um show de TV é atraente para personagens hiper-reais. 
A crítica parece não ter entendido essa proposta desafiadora da série: acusam o humor “incorreto” de Sacha Cohen de repetitivo e ofensivo. Além de não entender qual o objeto da crítica. Perguntam: afinal, do que se trata Who is America? O fato é que ao longo dos sete episódios, todos os lados do espectro político são ridicularizados: dos liberais democratas “politicamente incorretos” à direita republicana bélica que inacreditavelmente leva à sério as propostas paródicas de Sacha Cohen – por exemplo, armar as crianças a partir dos três anos para enfrentar os atiradores e terroristas muçulmanos que invadem escolas... 


A Série

Como de hábito nos filmes anteriores (Borat, O Ditador, Brüno), Sacha Cohen está quase irreconhecível nas próteses e pesadas maquiagens de cinco personagens que entrevistam desde apoiadores de Trump, um DJ da Flórida, até senadores e políticos como Bernie Sanders, o republicano do Estado da Geórgia Jason Spencer e o ex-juiz do Alabama, Roy Moore.
Cohen é “Billy Wayne Ruddicj Jr. Phd”, teórico da conspiração de extrema direita que emula o conhecido jornalista conspiratório conservador Alex Jones do “Infowars.com”; “Dr. Nira Cain-N’Degeocello”, um professor de extrema-esquerda em estudos de gênero (continuamente pede desculpas por ser hetero), sua esposa chama-se Naomi e seus filhos Harvey Milk e Malala; “Rick Sherman”, um britânico ex-presidiário que tenta se lançar no mundo das artes plásticas e música pop a partir de elementos “criativos” retirados da sua vida na prisão: excrementos e fluidos corporais;
“Erran Morad”, um perito antiterrorismo israelense (que a cada episódio se apresenta como “coronel” ou “brigadeiro”, “capitão” e assim por diante) com métodos nada ortodoxos para combater o “Mal” – terroristas, pedófilos etc.; Gio Monaldo, um playboy fotógrafo de Milão que possui um programa na TV italiana chamado “La Vita Diamante di Gio”. Suas causas de caridade incluem vítimas do Ebola na África e “crianças-soldados”; e “OMGWhizzBoyOMG”, um youtuber que abre caixas de brinquedos colecionáveis enquanto faz entrevista no canal do Youtube.
No primeiro episódio Erra Morad entrevista diversos conservadores (presidente de ligas de armas, lobistas e o senador Trent Lott) defensores dos direitos das armas e da necessidade dos professores se armarem nas escolas para enfrentarem atiradores. Morad é mais radical: propõe um sistema supostamente infalível em Israel – armar e treinar crianças a partir dos três anos, mas crianças “diferenciadas e treinadas”. Phip Van Cleave, presidente da Virgínia Defence League, chega a participar de um “vídeo didático” para crianças proposto por Morad, sobre os benefícios de armas portadas nas escolas e disfarçadas de bichinhos de pelúcia...


Morad também faz uma pegadinha com três apoiadores “red necks” de Trump: como atrair imigrantes ilegais e pedófilos para prendê-los? O exército de Israel sabe como: simula-se uma “Quinceañera” (festa de quinze anos para meninas) para enganar os vilões. Morad faz os apoiadores se disfarçarem de meninas adolescentes (com direito a calcinhas de borracha com simulações de vagina para se tornarem mais atraentes aos “mexicanos pedófilos”), enquanto o terceiro se esconde dentro da piñata com uma câmera de vídeo. Até a polícia chegar e dar uma batida, confundindo os “red necks” com verdadeiros pedófilos.
Billy Wayne Ruddicj Jr. Phd sugere, no episódio seis, ao Diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, Dr. Francis Collins, uma “Agenda Transgênero” – uma conspiração da indústria agroquímica de, por meio da gordura “trans”, transformar as pessoas em transgênero.
Ou ainda a pegadinha no DJ de Miami (episódio 5) cometida pelo ex-presidiário Rick Sherman, apresentando-se como o “DJ Solitária”, com sua música eletrônica sampleada a partir de amostras de sons da prisão: mijada na latrina, vômitos, sons de esfaqueamentos, gritos e gemidos de sodomização. O DJ e promotor de casas noturnas, Jake Inphamous, acha tudo muito inovador e radical e o leva para um show. Sherman está ansioso pelas “mamadas”: sexo oral das “croupiers” enquanto o DJ pilota a mesa de som...   

Orgulho do próprio preconceito 

O que Who is America?  nos mostra de forma espantosa (e até chocante) é como os entrevistados demonstram ser orgulhosos de seus preconceitos e dispostos a acreditar em qualquer coisa bizarra, desde que estejam sincronizados com suas visões de mundo.


A capacidade de Sacha Cohen persuadir as pessoas a colocar seus extremismos (seja de esquerda ou direita) em exibição chega a ser sombriamente engraçada – Cohen encontrar pessoas que achem verossímil crianças de três anos portarem armas porque “neurologicamente” apresentam uma “reposta mais rápida do que a dos adultos”, é tragicômico.
  Ou a forma como um “terapeuta espiritual” do Las Vegas Enlightnment Center dá assistência e compreensão ao plano do “politicamente correto” Dr. Nira: assim como a esposa, também quer dar a luz a um “bebê” (na verdade uma boneca de plástico, para espiar a culpa de ser um homem hetero), só que através do seu reto com a ajuda de uma “doula”, uma assistente de parto holística e, portanto, “correta”  – as cenas são grotescas.
Who is America?muitas vezes é ultrajante e de mau gosto. Mas, assim como o insight de Charles Bukowski, a hipérbole e o excesso (combinados com uma estranha linguagem de mockumentary híbrido com pegadinhas) parecem ser o único caminho para superar o próprio surrealismo que domina a vida real.
Nos sete episódios, nunca sabemos se os entrevistados estão de fato conscientes do jogo ou se, de fato, estão sendo pegos de surpresa – alguns como Sarah Palin e Joe Walsh demonstraram publicamente o descontentamento por terem sido enganados. 
Mas, pouco importa: o mais interessante na série é como a câmera se transformou na nova hipnose que releva o nosso inconsciente. Se lá no século XIX Freud usava a hipnose como ferramenta para revelar o retorno do reprimido, hoje a câmera, ao lado de uma equipe de produção, já é o suficiente para revelar o pior de nós mesmos.


Ficha Técnica 


Título: Who is America?
Diretor: Sacha Baron Cohen, Payman Benz
Roteiro:  Sacha Baron Cohen, Aaron Geary, Daniel Gray Longino
Elenco:  Sacha Baron Cohen, Matt Gaetz, Bernie Sanders, Philip Van Cleave, Joe Walsh entre outros
Produção: Spelthorne Community Television
Distribuição: Showtime Networks
Ano: 2018
País: EUA

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