sexta-feira, setembro 27, 2024

O Diabo brincalhão e perverso do gótico americano em 'Longlegs - Vínculo Mortal'


O Diabo é brincalhão e perverso. Se ele quer dominar mesmo o mundo porque não ataca de uma vez o Vaticano, possuindo cardeais e o Papa? Não! Ele prefere possuir crianças ou atormentar um vigário qualquer em uma paróquia distante. Por isso o Diabo é uma figura próspera no gótico americano, repleto de famílias puritanas e fundamentalistas cristãos imersos na castidade paranoica. Todo o hype em torno do thriller de terror “Longlegs - Vínculo Mortal” (Longlegs, 2024) era verdadeiro, ao combinar os tropos principais do gótico americano com a figura do Detetive pós-moderno, cuja lógica e intuição é incapaz de solucionar o enigma de um serial killer com motivações ocultistas satânicas. Porque o próprio detetive é a parte principal do problema. “Longlegs” lembra “O Silêncio dos Inocentes”. Mas sem a bússola que Lecter representava para a Clarice. O Detetive está só, sugado cada vez mais pelo “vínculo mortal”.

Uma coisa que incomoda no subgênero de terror em torno de possessão, satanismo e ocultismo é que o Diabo não tem o menor plano de conquistar o mundo. Se ele estivesse numa guerra aberta contra Deus ele certamente atacaria o Vaticano: tentaria possuir cardeais e, talvez, o próprio Papa – o suposto representante direto de Deus na Terra.

Mas não! O Diabo parece ser mais brincalhão e divertido do que isso. Ele que apenar atentar famílias comuns, possuir crianças inocentes. No máximo, atormentar um padre em alguma paróquia isolada.  Para quê? Apenas por diversão? Para mostrar para Deus que sua criação é fraca e patética?

Ou será que Deus não existe mesmo? E o Diabo é o verdadeiro demiurgo que criou a Terra para ser o seu playground?

É essa a sensação que o incômodo e apavorante thriller de terror Longlegs - Vínculo Mortal (Longlegs, 2024) passa ao espectador. Mesmo para aqueles mais acostumados com esse subgênero do terror: em cada cena, Deus parece estar ausente. Não há redenção, saída. Apenas tentativas de minimizar as perdas fazendo algum tipo de acordo com “aquele que está lá embaixo”.

“Você reza todo dia?... Não! Sem problemas! Não adianta mesmo...”. Diz a certa altura do filme a mãe da protagonista a sua filha, uma crente que tentou fazer algum tipo de barganha com o Diabo para salvar a família. Que cobrou um alto preço que deu origem a uma série de assassinatos seriais.

Se em postagem anterior sobre o filme Os Fantasmas Ainda se Divertem, de Tim Burton, afirmávamos que o diretor consegue transformar em entretenimento os principais tropos do gótico americano, aqui em Longlegs vemos o oposto extremo: o gótico americano em todo o seu esplendor aterrorizante.





O gótico americano na literatura no cinema se difere do congênere europeu principalmente por ter surgido numa sociedade puritana. O Fantástico e o medo do desconhecido se confundem com dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência etc. Mas, principalmente, a incapacidade do protagonista gótico de superar a perversidade pelo pensamento racional, sendo sugado pela loucura e paranoia.

Nesse ponto, o gótico americano e encontra com o papel desempenhado pelo Detetive pós-moderno. 

No personagem clássico que surgiu do romance policial, de Sherlock Holmes e Hercule Poirot, respectivamente personagens fictícios dos escritores Conan Doyle e Agatha Christie, encontramos detetives arquetípicos: são grandes fãs da ordem e do método. Para eles, a investigação deve ser tratada como uma ciência exata, portanto, tratada de forma fria, sem emoção. Dirigida unicamente pelo raciocínio analítico, o método dedutivo e as habilidades intelectuais.

Ao lado do cientista, o detetive era a quintessência da Modernidade – não só por ser o protagonista do romance policial e de suspense (gêneros diretamente relacionados com o nascimento das sociedades das multidões criadas pela Revolução Industrial) mas principalmente por encarnar a racionalidade, a objetividade e a imparcialidade de um investigador que vê a realidade como um livro aberto pronto para ser decodificado, revelando a sua verdade.

Mas o princípio quântico da incerteza de Werner Heisenberg (1901-1976) veio abalar essa certeza, constituindo-se numa das descobertas cujas consequências foram muito além do campo da Física, impactando a cultura.

Esse princípio quântico da incerteza está lá no gênero fílmico noir, na construção seminal do novo personagem do Detetive nos thrillers policiais de mistério do século XX - embora ele tente manter a racionalidade, objetividade e imparcialidade da investigação, sempre ao final acaba descobrindo que ele próprio é uma peça do mistério que precisa ser solucionado. Sempre há algo que o arrasta para alguma coisa deixada solta em seu próprio passado. O Detetive faz parte do próprio objeto que tenta investigar.



Por isso, a racionalidade e frieza do Detetive são ineficazes, passando a ser tragado pelo próprio enigma que pretende resolver.

Esse é o “vínculo mortal” que nos informa o título em português dado a Longless.

O Filme

Portanto, para falarmos sobre Longlegs, temos que começar pela protagonista, a detetive do FBI, a Agente Lee Harker (Maika Monroe). 

Em muitos aspectos, Longlegs lembra o filme O Silêncio dos Inocentes. Mas sem a bússola que Hannibal Lecter representava para a Agente Clarice na caça do serial killer Buffalo Bill. Lee Harker está só, sendo sugada cada vez mais pelo “vínculo mortal”.

Seus colegas do FBI descrevem o Agente Lee Harker como “altamente intuitiva”. E se o termo soa como o codinome dado pela agência federal para algo ligeiramente sinistro, é porque é mesmo. Harker pode não ser sociável (ela prefere ficar sozinha em sua cabana forrada de madeira, semelhante a um caixão, do que se envolver em conversas de socialização), mas ela tem instintos estranhos e eficazes ao ler uma cena de crime. 

Será, ao mesmo tempo, para Lee Harker, uma dádiva e uma maldição.

Harker faz sua estreia como agente do FBI e seu superior, o Agente Carter (Blair Underwood) recruta Harker para trabalhar em um caso não arquivado e confuso. Carter espera que suas habilidades “meio psíquicas” possam ajudar a fazer a investigação avançar novamente.



O que ele não poderia ter previsto é o fato de que a presença dela atua como um catalisador, atraindo a figura sombria conhecida como “Longlegs” (um Nicolas Cage completamente arrepiante) – uma figura grotesca e obcecada por glam rock que está implicado em uma série de assassinatos em massa que se estende por décadas.

Logo na abertura do filme conhecemos o vilão de pesadelo conhecido como Longlegs. Ele é o esquisito de uma cidade pequena composto por uma grande peruca assustadora e maquiagem protética assustadora para um comicamente aterrorizante Nicolas Cage.

As autoridades estão perplexas com Longlegs, um serial killer supostamente líder de uma seita satânica que nunca pôs o dedo em suas vítimas. Todos os seus crimes parecem ser assassinatos-suicídios claros, nos quais um marido e pai matam sua família antes de tirar a própria vida. Mas em cada cena de crime Longlegs deixa para trás uma carta, escrita em um código que lembra o “Assassino do Zodíaco”, que deixa claro que haverá ainda mais assassinatos.

De todos os filmes que inspiraram Longlegs, a influência mais clara é O Silêncio dos Inocentes, com seus jogos de gato e rato e assassinatos em série sangrentos; Harker é basicamente a Clarice Starling do psicopata Longlegs. Mas, enquanto Hannibal Lecter era um médico psiquiatra com seu método dedutivo que dava dicas para Starling, em Longlegs o “Dr. Lecter” é um ocultista satânico que apenas faz a Agente Harker afundar ainda mais no caos. 



Reforçando a conexão entre os dois filmes, Longlegs é ambientado nos anos 90, o que explica a ausência de telefones celulares e as fotos do presidente Bill Clinton nos escritórios do FBI.

A cena de abertura onde são apresentados Longlegs e a Agente Harker na infância mostra um dos principais tropos do gótico americano: a ameaça da infância corrompida que paira sobre ela e a sua mãe, Ruth Harker (Alicia Witt), uma fundamentalista cristã que, para salvar a sua própria filha, terá que fazer uma barganha com o Diabo (Longlegs se diz representante, aqui em cima, daquele que domina “lá embaixo”).

O próprio nome do assassino em série, “Longlegs”, é uma alusão à inocência infantil ameaçada: “pernas longas”, como a percepção do ponto de vista de uma criança quando um adulto se aproxima dela.

É emblemática a passagem do filme em que, num interrogatório, Longlegs diz que o Inferno deu risadas quando a menina Harker cresceu e decidiu se tornar detetive do FBI – de início, o papel do detetive (personagem símbolo da modernidade pela profissão apegada à lógica e a racionalidade) já está condenado ao fracasso quando investiga um caso no qual a própria investigadora é o pivô. 

A infância de Harker é a peça fundamental para a solução do mistério

É a própria negação pós-moderna dos fundamentos de todo edifício lógico: a objetividade do investigador.


 

Ficha Técnica 

Título: Longlegs

Diretor: Osgood Perkins

Roteiro: Ogood Perkins

Elenco: Maika Monroe, Nicolas Cage, Blair Underwood

Produção: C2 Motion Picture Group, Cweature Features

Distribuição:  Diamond Films

Ano: 2024

País: EUA

 

 

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