segunda-feira, fevereiro 25, 2019

Série "Boneca Russa": será o Tempo um bug algorítmico ou uma lição moral?

Há na vida apenas essas certezas: de que vamos morrer, que as pessoas que amamos também irão morrer e que eventualmente nossa própria morte fará outros sofrerem. Mas a sociedade nos oferece inúmeras estratégias e ferramentas tecnológicas para esquecermos dessa amarga ontologia. Principalmente para a geração dos millennials, através do individualismo e as bolhas virtuais das redes sociais digitais. Esquecendo que o mundo é muito maior do que pensamos e que nossos atos têm consequências sobre todos que encontramos. Esse é o tema subjacente da série Netflix “Boneca Russa” (2019-): tal qual o filme clássico “O Feitiço do Tempo” (1993), Nadia fica presa em um loop temporal – a cada morte em um ciclo, acorda diante do espelho do banheiro na sua festa de 36 anos. Como explicar o mistério? Apenas um bug nas linhas algorítmicas que compõem a programação do Tempo? Ou algum tipo de lição moral que será obrigada a entender? A saída será a lembrança e a memória.

Duas coisas temos certeza em nossas vidas: a de que ao nascermos a morte fará parte do acordo de permissão para andarmos nesse plano da existência; e de que eventualmente as pessoas que amamos nos deixarão e a nossa própria morte causará dor nas pessoas próximas a nós.
São certezas amargas, mas lançamos mãos de uma série de estratégias, que a própria sociedade fornece, para esquecermos dessa natureza existencial. E a chamada geração dos millennials (uma geração conectada e globalizada pela Internet) talvez seja aquela mais bem aparelhada tecnologicamente para esquecer desse acordo que subjaz a nossa existência: criou uma nova forma de individualismo baseada nas bolhas virtuais que construímos nas redes interativas digitais.
Uma vida afluente, com linhas de tempos repletas postagens, selfies e comentários rápidos e superficiais, criando uma estranha ilusão de imortalidade: a sensação de eterno presente.
Se no clássico O Feitiço do Tempo (1993) tínhamos uma comédia dramática eminentemente moral (Bill Murray era um mesquinho e egoísta que merecia uma boa lição – ficar preso num loop temporal), na série Netflix Boneca Russa (2019-) temos o mesmo tema de protagonistas presos no tempo, porém numa perspectiva mais existencial: dois jovens adultos millennials ficarão prisioneiros na própria literalidade do eterno presente que marca a mentalidade dessa geração – presos em um loop temporal cuja morte em cada ciclo faz apenas retornar a uma cena do mesmo dia: a festa de aniversário e um desencanto amoroso.
Tudo se passa no East Village contemporânea de Manhattan, numa festa de aniversário repleta de millennials criativos e descolados. Presa numa misteriosa cilada temporal, a aniversariante terá que fazer uma jornada detetivesca dentro de sua própria vida, para tentar juntar os fragmentos de amores e perdas esquecidos numa vida que até aquele momento se resumia a um presente extenso hedonista.


Uma jornada introspectiva, numa narrativa que explora o arquétipo gnóstico do Detetive – os protagonistas não só descobrirão que lembrar aquilo que foi esquecido é a única maneira para se livrar do ciclo vicioso morte/retorno, como também uma verdade freudiana: aquilo que o homem mais teme não é a morte, mas a solidão.

O Filme

Nadia (Natasha Lyonne) é uma designer de games e programadora de computadores. Ela está comemorando o aniversário de 36 anos em uma concorrida festa organizada pela sua amiga Maxine (Greta Lee). Misantropa, desconfiada e sempre cínica, a solitária Nadia vive uma vida hedonista de sexo, álcool e muitos cigarros.
Depois de deixar a festa acompanhada por um parceiro de sexo casual, Nadia parte à procura de seu gato perdido. Atravessando uma rua sem olhar para os lados, Nadia é atropelada por um carro e morre. Para despertar no banheiro do apartamento da festa, diante do espelho enquanto convidados batem na porta. 
A primeira explicação desse lapso temporal que vem à mente de Nadia está no cigarro de maconha graciosamente oferecido pela anfitriã Maxime – certamente aquele cigarro estava turbinado com cocaína ou cetamina.
As semelhanças com Feitiço do Tempo terminam aqui: ao invés de usar a sua recém-encontrada vida eterna (Nadia morrerá sucessivas vezes, sempre despertando em frente ao mesmo espelho ao som da música “Gotta Get Up” de Harry Nilson) para tirar vantagens, ela se transforma numa espécie de investigadora privada determinada a encontrar o evento gatilho que disparou esse loop temporal.


O mistério ficará ainda mais complicado quando conhece Allen (Charlie Bernett), um neurótico compulsivo e solitário que também é prisioneiro da mesma cilada temporal – sempre morre para acordar diante do espelho do banheiro de seu apartamento, escovando os dentes.
Agora o desafio é entender qual a ligação entre Nadia e Allen. O que não será fácil: os dois têm personalidades diametralmente opostas – enquanto ela é uma cética sempre com uma tirada de humor ácida entre as tragadas no cigarro, ele é obsessivo compulsivo e romântico: sofre uma desilusão amorosa depois que descobriu que sua namorada o traia.
Essa premissa simples (ter que morrer para renascer) confere a Boneca Russa um interessante humor negro – as mortes são sempre de alguma forma cômicas – vazamento de gás, explosões, táxis em alta velocidade, engasgada por ossos de frango, pescoço quebrado em quedas em escadas ou portas que se abrem de porões em calçadas etc. 
Quanto mais loops vivencia, mais Nadia começa a relembrar o passado não só para evitar as situações que levaram a morte em ciclos anteriores – são hilárias as sequências em que ela evita certas escadas para evitar quebrar o pescoço, como em vezes anteriores.
Nadia também começa a lembrar dos seus traumas familiares na infância, deixando evidente ao espectador que, tal como uma boneca russa, por trás das diversas camadas se esconde algo sombrio e horrível.


Um “bug” ou lição moral?

Como não poderia deixar de ser, Nadia e Allen têm pressupostos diferentes para investigar o problema. Como programadora de games, Nadia acredita que tudo pode ser explicado de forma análoga a um bug no script de um game – o programa tem que ser rodado sucessivas vezes até encontrar a linha de algoritmos defeituosa.
Para Allen, o que está em jogo é algum tipo de lição moral que deverá  obrigatoriamente compreender para se livrarem do castigo do Tempo. Como o leitor observará, a sucessão dos oito curtos episódios (com menos de 30 minutos cada) parece levar a narrativa para uma combinação entre os dois métodos explicativos. 
Se O Feitiço do Tempo tratava de um tema eminentemente moral (a reforma íntima necessária para que Bill Murray se transformasse numa pessoa melhor para o Tempo voltar a andar para frente), aqui em Boneca Russa a abordagem é muito mais ontológica e existencial. Há algo de estrutural naquele loop que independe de quaisquer julgamentos éticos ou morais. Daí porque a série confronta Allen e Nadia, dois personagens completamente opostos.


Assim como cada boneca desconhece a existência das demais, embora encaixadas uma dentro da outra, da mesma maneira se coloca a solução do mistério: relembrar e o papel da memória são as peças-chave no quebra-cabeças narrativo.
Dessa forma, a série Boneca Russa entra no campo eminentemente gnóstico: a prisão dos sucessivos ciclos de nascimento/morte/reencarnação é mantida através da ignorância e esquecimento. Lembrança e memória são fundamentais para não cairmos nos mesmos erros dos ciclos anteriores. 
E o individualismo é uma das armadilhas que nos prendem a essa Roda do Samsara budista – o carma não é automaticamente queimado pelo sofrimento. É preciso algo mais, como sugere a série: se somos todos companheiros nessa cela temporal, devemos nos ajudar mutuamente. 
É isso que Nadia e Allen ocasionalmente descobrirão, o núcleo espiritual de toda a trama: o individualismo millennial de Nadia será desafiado quando ela cairá em si de que o mundo dela é muito maior do que pensava e que suas ações têm consequências sobre todos os outros que encontra a cada ciclo.
Nada mais gnóstico e, ao mesmo tempo, com forte acento freudiano: somos aquilo que não queremos lembrar, a cena traumática que nos prende em comportamentos repetitivos e obsessivos. Mas, mesmo assim, tememos muito mais a solidão do que a própria morte.


Ficha Técnica 


Título: Boneca Russa
Criadores: Leslye Headland, Natasha Lyonne, Amy Poehler
Roteiro:  Leslye Headland
Elenco:  Natasha Lyonne, Charlie Barnett, Greta Lee, Elizabeth Ashley
Produção: 3 Arts Entertainment, Netflix
Distribuição: Netflix
Ano: 2019
País: EUA

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