terça-feira, outubro 01, 2024

O horror do fardo da autoconciência e da obsolescência em 'A Substância'


Filmes críticos sobre como nos sentimos (em particular, as mulheres) esmagados por padrões de beleza impossíveis e pela hiperfixação da sociedade na juventude não é novidade. Mas “A Substância” (The Substance, 2024) não é uma crítica genérica: a diretora Coralie Fargeat abre fogo contra a cultura atual das promessas prét-à-porter de beleza e juventude – a cultura Ozempique. Com a propaganda que promete a chance de “se sentir como você mesmo novamente”, barato e com resultados rápidos. Uma atriz premiada que se tornou cinquentona vê sua vida perder o controle ao ser discretamente afastada pela indústria do entretenimento sempre em busca de “carne nova”. Espelhos e sociedade da imagem criam o fardo da autoconsciência e da obsolescência. E um conto de horror corporal que lembra os filmes de Cronenberg e o banho de sangue final de “Carrie” de Brian de Palma.

Eles só te querem quando você tem 17 
Quando você tem 21
Não é mais divertido
Eles tiram uma foto polaroid e te deixam ir
(“Seventeen”, Ladytron)

 

A arte parece sempre antecipar aquilo que mais tarde a Ciência irá confirmar. Em 1930, o escritor russo-americano Vladimir Nabokov publica o romance “The Eye”. Uma estória sobre um suicida que após a morte passa o tempo se esgueirando pelas ruas de Berlim observando os vivos. Ele fica obcecado em acompanhar a vida das pessoas. 

Então, ele chega a uma conclusão sombria: a maioria das pessoas se vê através dos olhos dos outros, isto é, através das histórias que achamos que eles inventam sobre nós a partir dos vislumbres que têm de nossas vidas.  Nabokov fecha o livro de forma pessimista: na verdade, não existimos, mas sim os milhares de espelhos que nos refletem.

Décadas depois, sociólogos como Talcott Parsons chegariam a uma conclusão parecida: os papéis sociais que desempenhamos no cotidiano são resultantes de uma “colagem de expectativas” – desempenhamos aquilo que achamos que os outros esperam de nós.

A metáfora dos espelhos de Nabokov não é por menos. A década de 1930 já construía as bases da sociedade das imagens do século XX com o crescimento do cinema e a expansão da fotografia como registro privilegiado da realidade.

Isso se soma ao fardo da autoconsciência que essa sociedade acabou criando. Se no passado tínhamos apenas poças d’água para nos mirarmos, hoje a fotografia, selfies na Internet, a videoconferência no Zoom e a estética da proliferação dos espelhos (das fachadas espelhadas na arquitetura aos espelhos no design de ambiente para dar uma sensação de espaços interiores maiores) criam o fardo de acompanhar o nosso próprio envelhecimento.

Por isso, acirra ainda mais esse efeito de “colagens de expectativas”: Somos mais capazes do que nunca de criar uma versão ideal de nós mesmos, ou seja, aquela que achamos que outras pessoas querem olhar.

Esse fardo da autoconsciência produz a demanda para todo um mercado de intervenções médicas que alteram a aparência — drogas, procedimentos, uma injeção disso, um laser daquilo — e que estão mais acessíveis do que nunca. 



Esse estado de coisas cria uma ansiedade coletiva que também atinge Elizabeth Sparkle (Demi Moore), a protagonista de A Substância (The Substance, 2024), de Coralie Fargeat. Uma atriz (com um Oscar para coroar sua carreira) que se tornou cinquentona e vê toda a sua existência escapar do seu controle quando recebe em seu luxuoso apartamento algumas dezenas de rosas e um cartão de nota superficial agradecendo-a por seus anos no estúdio. (“Você foi incrível!” diz cartão — com ênfase em “FOI”).

Mas para sorte (ou maldição) de Elizabeth, estamos vivendo a era Ozempic - uma dose rápida promete perda de peso que parecia impossível de alcançar sem passar por complicadas cirurgias há apenas alguns anos. Com a propaganda que promete chance de “se sentir como você mesmo novamente”, tudo mais barato e com resultados rápidos.  

Filmes críticos sobre como nos sentimos (em particular, as mulheres) esmagados por padrões de beleza impossíveis e pela hiperfixação da sociedade na juventude não é novidade. Mas A Substância não é uma crítica genérica: Coralie Fargeay abre fogo sobre a cultura atual das promessas prét-à-porter de beleza e juventude aqui e agora. 

O que começa como um experimento em direção a um novo começo para Elizabeth, rapidamente se deforma com consequências não intencionais. A Substância faz referência ao horror corporal de David Cronenberg em filmes como The Brood, onde um cientista louco experimenta em uma mulher grávida com resultados terríveis, Re-Animator de Stuart Gordon, que também apresenta uma gosma verde neon que se assemelha à Substância do filme, 

Ou ainda O Homem Invisível de James Whale, que segue uma maravilha médica que deu errado, e Carrie de Brian De Palma, na maneira como usa grandes quantidades de sangue e destruição para ilustrar a dor de uma garota oprimida por uma indústria de entretenimento sedenta por carne nova, enquanto é comandada por homens senis.

O Filme

 A abertura do filme é altamente simbólica: vemos a estrela de Elizabeth Sparkle, gravada a concreto e metal na Calçada da Fama em Hollywood, sendo desgastada ao longo do tempo pelas intempéries, até surgirem rachaduras.



O filme sugere que ela foi inclusive premiada com um Oscar. Hoje não tem mais espaço na indústria hollywoodiana. Ela apresenta um programa de fitness e aeróbica em uma rede de TV. Sentimos um ponta de melancolia nos olhos de Elizabeth. Ela sabe que está chegando ao fim.

E esse dia chegou. O executivo caricatural Harvey (Dennis Quaid) já decretou a aposentadoria de Elizabeth, procurando alguma garota nova em folha para elevar a audiência do programa matinal – com Elizabeth, o programa está ganhando uma atmosfera de atração televisiva matinal para donas de casa de meia idade. 

Mas então descobre uma maneira de mudar completamente sua vida. Um estranho conta discretamente a ela sobre um tratamento misterioso chamado “The Substance”, que vem em uma caixa cheia de seringas e líquidos. Uma vez administrado, “The Substance” promete que “uma versão melhor de si mesmo” surgirá.

Acontece que a promessa do misterioso produto é muito literal. Sozinha em seu banheiro espaçoso e de azulejos, Elisabeth dá à luz (pelas costas) um eu mais jovem, glamorosa e sensual (Margaret Qualley), que se chama Sue e faz testes para o antigo programa de Elisabeth na TV.

Harvey fica extasiado e mal consegue se conter quando vê seu collant rosa brilhante, seu sorriso, sua bunda perfeitamente arredondada. O novo programa atualizado agora chama-se “Pump It Up With Sue”, e é um sucesso magnífico.

Este é um triunfo inicial para Elisabeth. Mas as coisas logo ficam distorcidas. Elisabeth e Sue “são uma”, como lembram continuamente os materiais instrucionais da “The Substance”. Enquanto Sue está na ativa, Elizabeth jaz sem sentido no chão do banheiro. Eles devem trocar o lugar a cada sete dias, se alternado numa “perfeita harmonia”, como diz o material publicitário.



O problema é que Sue é cada vez mais adorada e cobiçada pela indústria do entretenimento. Então ela passa mais tempo como Sue, retirando o elemento chamado “Estabilizador” do corpo de Elisabeth, que começa a murchar horrivelmente.

Quando Elizabeth retorna ao controle, ela pensa acabar com o experimento. O problema é que ela se odeia. Seu apartamento é cercado de espelhos, e de sua ampla janela do apartamento ela vê o enorme outdoor no qual vê Sue em um provocante collant promovendo o programa “Pump It Up With Sue”.  

Este é um filme muito sangrento e muitas vezes bombástico. E muito menos a coisas são lógicas e verossímeis. É tudo metáfora, nem um pouco destinado a uma análise literal. Especialmente quando se trata de como Sue e Elisabeth compartilharem uma mesma consciência.

Mas também A Substância cria uma espécie de humor trash quanto mais as coisas ficam estranhas para Elisabeth e para Sue. 

No final, as coisas se tornam tão monstruosas e loucas em um gigantesco banho de sangue que lembra bastante a sequência final de Carrie, A Estranha.

De um lado temos o fardo da autoconsciência de Elizabeth, que a faz entrar em guerra contra si mesma. E do outro, a indústria do entretenimento comandada por executivos, investidores e acionistas. Como o filme ironicamente faz questão de acentuar, todos homens e idosos. Comandando uma indústria que exige constante suprimento de “carne nova”.

É essa angústia da obsolescência planejada que move o filme. Ironicamente, a propaganda da “The Substance” cobra do usuário uma “consciência equilibrada”: os dois eus pertenceriam a um único ego.

Lembrando os comerciais das bets viciantes na TV: “jogue, mas com responsabilidade”. Como cobrar “equilíbrio” em um negócio intrinsicamente doentio?



O Olhar Masculino

Mas A Substância também está interessada — talvez mais do que qualquer coisa — no que muitas vezes foi chamado de “olhar masculino” que cria o estereótipo do “feminino” ao seu bel prazer. 

A maneira como a câmera olha abertamente para o corpo de Sue, correndo lentamente para cima e para baixo em seu enquadramento, de uma maneira iluminada, nítida e brilhante que lembra principalmente a pornografia. Vimos dezenas de atrizes filmadas dessa maneira – é a fetichização, fragmentação ou objetificação do corpo feminino.

O contraste da abertura do filme, com o show de aeróbica com Elizabeth Sparkle, com o enquadramento aberto, mostrando os movimentos sensuais das bailarinas (erotismo), e os planos fechados no traseiro, pernas, olhos e boca de Sue em “Pump It Up” (a pornografia) é evidente. 

A indústria do entretenimento e sua obsolescência planejada não quer mais o belo e o erótico. A economia da atenção que agora norteia as mídias exige o olhar pornográfico, fragmentador e objetificador – sex exploitation.

Mas o aumento dos corpos deformados, sangue e exagero tornam o filme, quanto mais caminha para o fim, satírico.

No final, A Substância tem um quê autorreferencial à própria carreira de Demi Moore, uma atriz que se notabilizou pelo sex appeal como o grande chamativo dos seus filmes – dos assédios ardentes contra Michael Douglas em Assédio Sexual (1994) a comédias eróticas como Striptease (1996).

Agora, na casa dos 60 anos, faz uma performance arrojada e visceral como Elizabeth Sparkle. Como se vivenciasse na vida real os dramas da protagonista de A Substância

 

 

Ficha Técnica 

Título: A Substância

Diretor: Coralie Fargeat

Roteiro: Coralie Fargeat

Elenco: Demi Moore, Margaret Qualley, Dennis Quaid

Produção: Working Title Films, A Good Story

Distribuição:  MUBI, Metropolitan Film Exports

Ano: 2024

País: EUA

 

 

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